5418

- Tem calma, pá! E, eu, que já me preparava para lhe virar as costas e sair dali, estaquei, contrariado.
- Precisamos da tua ajuda.
- O Velho diz que sabes o que isto é. Disse o coronel, já próximo, esticando o braço para mostrar um quadrado de papel meio amassado, com um número inscrito e duplamente sublinhado.
- O que eu sei sabe o Velho também! Tudo o que sei foi ele que me ensinou. Respondi-lhe de supetão.
- Pois, não sei. Ele disse que não sabia, mas que tu saberias. Retorquiu o oficial superior.
- E os nossos amigos da ilha também não sabem. Não fazem ideia do que seja. Quer dizer, pode ser muitas coisas, qualquer coisa. Apenas um número de quatro algarismos, é muito vago. Já testamos tudo. As relações são muito ténues. As hipóteses são infinitas.
- Porque raio terá ele dito isso? Disparei, franzindo os sobrolhos em manifestação de estranheza pela afirmação e, simultaneamente, de desagrado pela presença dos antigos “camaradas de armas” do Serviço de Informações. Peguei no papel que o meu antigo comandante de companhia estendia e examinei o conteúdo.
- Que é que ele sabe da minha situação actual? Sabe em que me ocupo?
- Sabe que trabalhas em Fotografia, sim.
- Sabe que trabalho em Fotografia. Em informação. Em...grafismos. Então não se tratará de um cripto normal. O Velho acha que não será nada de matemática, nenhum código permutável. Aposta em algo relacionado com a minha área.
Olhei demoradamente para os quatro algarismos juntinhos, o número 5418. Por baixo, duas linhas quase paralelas, em sublinhado firme. O cérebro vazou-se-me de repente. Não encontrava significado para a merda de um número de quatro algarismos anotado num bocado de papel manhoso.
- Lamento. Não me ocorre nada. Apresentado assim, sem mais, não chega. Pode ser tanta coisa.
Continuei a olhar o papel e percebi o tipo de entendimento que fará o boi quando olha para um palácio. Grafismos. A ideia da hipotética relação que o velho estabelecera rebolava-me nos neurónios, mas não curto-circuitava nada. Cansado, baixei o braço e retirei de cena o malfadado e enigmático papelote.
A uns três metros de distância, junto à entrada da sala de reuniões, um jovem imaculadamente fardado de branco, com o galão de luneta distintivo dos subtenentes da Armada olhava-me, estático. Lembrou-me uma noiva angelical. Estive prestes a mandar-lhe um piropo provocador, que faria rir os participantes da reunião subitamente interrompida pela incursão daquele mini-destacamento de quatro militares de aspecto estranho. Os outros envergavam fatos de combate, sem quaisquer distintivos que não um discreto bordado no peitoral esquerdo, um símbolo quase ininteligível, mas que eu bem conhecia.
O coronel, de cabelo platinado, olhos profundos e feição grave concluiu, fixando-me intensamente nos olhos.
- Ok! Então não podes ajudar.
Rodou nos calcanhares, pediu desculpa aos presentes, pela inesperada interrupção e, sem dar tempo a interpelações de esclarecimento pela atitude, deu dois passos em direcção à saída. Parou ao ouvir o meu ténue:
- Espere lá. Será que o Velho aposta mesmo que isto é um grafismo?
Algarismos... dois riscos, duas linhas.
- Que é que anda sobre duas linhas, coronel?
Nem dei tempo para a resposta do oficial superior:
- Que é que anda sobre duas linhas e é identificado por um número de quatro algarismos?
- Os comboios?! Excalmou ele.
- Um comboio da C.P., sim. Tentem a lista de composições da CP. Talvez exista o número 5418.
Já “a noiva”, de olhar siderado, teclava no telemóvel para a pergunta que recolheu como resposta de alguém do outro lado do feixe hertziano:
- Composição da CP, tráfego regional... Porto/Lisboa, ou Coimbra...
Era, de facto, um comboio.
Agora, de semblantes avivados, a equipa precipitava-se, a um tempo, para a saída do edifício centenário. Já na ombreira da porta, o coronel lançou a questão final:
- Olha lá, só para confirmar, isto diz-te alguma coisa: “a mãe e a filha do eleito”?
Olhei-o, frontalmente, e respondi serenamente:
- A mãe e a filha do profeta. A mãe, e a filha favorita de Maomé tinham o mesmo nome, Fat’ma. Fátima!
- Pois, bate certo. Fizeste o mesmo raciocínio que o Velho.
- Vamos! Exclamou enfaticamente para os homens que o acompanhavam. E saíram, apressados. Não sem que, antes, o jovem marinheiro se aproximasse, de sorriso aberto e mão estendida, solicitando um cumprimento há muito esperado e que, supostamente, muito o honrava. Apertei, com pouca convicção e meio entediado, a mão firme que me apresentava. Nunca nutri grande apreço por quem me admira. Não acredito que seja capaz de me ensinar algo de interessante ou importante, pois se valoriza tanto o pouco que sei e sou.
Nem me preocupei com mais lucubrações sobre os enigmas. Embora desabituado, rapidamente voltei aos tempos em que as questões se sucediam em catadupa, sem que nos preocupássemos com uma resposta final. Essa não era a nossa preocupação. Seria a de outrem, mas não a nossa. Não passávamos de simples brain-stormers, pesquisadores de pepitas no meio de uma imensa cascalheira de palavreado, preocupados em produzir discursos sintéticos, por vezes esterilmente incoerentes, outras vezes mais enigmáticos do que o problema que os despoletava. Mais tarde, alguém recolheria as peças e montaria o puzzle.
Próximo da cidade, as pás de um helicóptero agitavam o ar num ruído sincopado, grave e intimidador de máquina poderosa. Depois, o som foi-se diluindo noutros ares, mais distantes.
Não voltaram.
Que alívio.

3 comentários:

todos disse...

Mas que raio é isto, estiveste na 5ª Divisão?

éf disse...

não sejas parvo. em 82 isso já não existia.
:p

Anónimo disse...

que cena