Ficções para César



Este é um escrito do início de 2006, meio esquecido num CD de arquivo, cumprido que foi o seu desígnio de produzir reacção para aquilatar da falsidade da pessoa a quem foi remetido. Um escrito apressado, executado num par de dias e revisto num terceiro.

Uma daquelas coincidências que envolvem nomes próprios, daqueles comuns entre nós, propiciou, mais tarde, a uma mente venenosa, a oportunidade de responder – com a calúnia e a mentira – ao incómodo que lhe provoquei com os meus comentários críticos fundamentados em factos do quotidiano (factos que se desenrolaram, repetidamente, à vista de uns tantos). E o incómodo dos meus comentários, produzidos em ambiente restrito, conduziram tal mão pressurosa a alçar o escrito a César apresentando-o como um gozo à sua augusta pessoa. Fundamentando a sua teoria no paralelismo dos nomes das personagens do escrito com o do imperante e outros da sua família.
Há mais sobre o assunto, e outros assuntos conexos que se poderão revelar. Por agora, aqui fica o texto que nunca teve pretensão de atacar ninguém, mas tão-somente produzir uma reacção e, nisso, cumpriu o objectivo.
Em resultado, verifico que esta imprudente gente é tão subtil como um paquiderme, achando que os seus actos não são perceptíveis. São-no, e como algazarra de megafones de feirantes.
Para publicar o texto optei por não arriscar atiçar a volubilidade imperial e mais retaliações; assim, substitui os nomes próprios de algumas personagens. Aqui fica, para que a perversa criatura não pense que me come por parvo – é óbvio que a sonsa a que me refiro não tem personificação neste texto, nem nada a ver com o enredo ficcionado que aqui se desenrola; tão-pouco foi a destinatária do mesmo. Serviu-se dele, apenas, para provocar a ira augusta sobre a minha pessoa. E conseguiu-o, em parte. Enfim, talvez um dia as actas finais dêem conta dos pormenores do negócio. Até lá, fica mais esta peça de ficção.



Nas Mãos de Eva



Cap. 1 - Cenário

Apresentou-se no edifício principal da Câmara Municipal a meio da manhã. Após oito meses de quase inactividade esta era a oportunidade para voltar a contar com um salário certo, afastando o espectro de uma vida miserável e de um futuro dúbio. O funcionário observou-o de alto a baixo, detendo-se por momentos na impressionante máquina fotográfica que Pedro segurava na mão esquerda.
- Tenho uma entrevista marcada com o Director de Recursos Humanos. Explicou.
- Mas, tem mesmo uma marcação?
Pedro entregou-lhe a carta que trazia consigo e o funcionário leu o conteúdo até encontrar a referência à entrevista.
- Muito bem. Vou ver se o senhor doutor já chegou.
Discou um número no telefone interno e pouco depois anunciava a presença do fotógrafo e recebia as instruções que repetiu a Pedro.
– O senhor doutor vai recebê-lo. Disse, indicando a escadaria larga, luminosa e sobriamente decorada.
– Por aqui, faça favor! Pedro seguiu-o e, transposto o primeiro lanço de escadas, flectiu à esquerda cruzando um corredor deserto. Franqueou a porta de mogno envernizado e entrou num exíguo e antiquado gabinete. O Chefe da Divisão de Recursos Humanos da autarquia algarvia era um homem idoso, de cabelos grisalhos, de fisionomia austera, ocultando parte da sua personalidade atrás de uns óculos enormes de estilo démode. Pela idade do homem, Pedro imaginou que estaria a cumprir o acréscimo de tempo para atingir a reforma, imposição recente do novo Governo. Aceitou o convite e ocupou a cadeira em frente da secretária. Numa voz suave e pausada, o funcionário superior indagou:
- Então, o senhor acha que preenche os requisitos do nosso anúncio? Sabe do que se trata, claro. Foi-nos solicitado que contratássemos um fotógrafo com experiência de estúdio pois temos um enorme trabalho para realizar na área do património artístico da autarquia, o que inclui os acervos dos vários museus. Tenho aqui o seu curriculum e, de facto, constato que já trabalhou em registo de imagem ligado à publicidade. Não sei se será exactamente a mesma coisa, porque de Fotografia nada entendo, mas considerando o facto do outro candidato, muito jovem, apenas ter experiência de foto-repórter, ao serviço de jornais, e não sendo isso o que procuramos...
O homem levantou os olhos do dossier que acabara de consultar e fixou Pedro, esperando um comentário.
- Sim, o tipo de trabalho de que precisam não apresenta dificuldades de maior. Talvez nalgum caso pontual sejam necessários recursos técnicos mais exigentes mas, em princípio, não vejo dificuldade alguma em desempenhar este trabalho.
- Muito bem - volveu o homem.
- Sabe que se trata de um contrato de um ano. Pela nossa parte poderá entrar já no início do próximo mês. Aguarde o nosso contacto, certamente durante a próxima semana. Deseja colocar alguma questão?
Pedro disse que não, pois já conhecia as condições existentes na Câmara, em resultado de algumas conversas que tivera com um amigo, funcionário da autarquia. Sabia com o que contar.
Agradeceu, estendeu a mão e um sorriso ao Chefe da Divisão que também se levantara para o cumprimentar, embora sem retribuir o sorriso. Mantinha a postura austera e reservada.
Pedro atravessou a Praça e encaminhou-se para a pastelaria mais próxima. Um café chega para comemorar, até porque os trocos que tilintavam no bolso não chegavam para muito mais.
Pedro é um homem de quarenta anos, de constituição mediana, cabelo escuro e curto, rosto escanhoado e liso, nariz rectilíneo que conduz aos olhos negros, um pouco profundos. Um mediterrânico típico. Extrovertido e um tanto brincalhão, Pedro raramente transmite essa imagem, mercê do semblante grave que ostenta, mesmo em postura descontraída.
À mesa do Café reflecte sobre o trabalho que em breve irá iniciar. É coisa fácil, para si, experiente em trabalhos de estúdio, trabalhos a sério, infinitamente mais exigentes e rigorosos do que aquele. A instituição é grande, tem mais de mil funcionários, distribuídos por vários departamentos, divisões e secções, com muita gente jovem e dinâmica. Um ambiente novo, diferente do universo restrito de duas ou três pessoas em que sempre trabalhara. Entrado na meia-idade sente-se, porém, ainda com energia e vitalidade suficientes para encetar esta nova etapa na sua vida. E, de qualquer modo, mantém-se na Fotografia, a sua ocupação de sempre, a sua paixão, a sua profissão desde que abandonara a Faculdade, deixando por concluir o último ano de Antropologia.
Relembra os primeiros passos nas reportagens de casamentos aqui, na sua terra, e depois nos jornais da capital, em simultâneo com a frequência da universidade numa convivência que se revelou fatal para os estudos, perseguindo políticos e futebolistas, registando gente que assistia, com lágrima ao canto do olho, à demolição da sua barraca, em nome da requalificação urbana e da luta contra a indigência, as multidões em manifestação ruidosa ostentando cartazes e lançando impropérios contra os governantes. Depois, o estúdio, com as raparigas escanzeladas, sonhadoras com o brilho dos flashes e um futuro nas passerelles da moda, os miúdos irrequietos, que na época das matrículas escolares lhe invadiam o estúdio, posando enfadados para o passe do bilhete de identificação, os trabalhos de publicidade de apartamentos, rapidamente construídos em novas urbanizações surgidas como cogumelos, alterando a paisagem periférica da cidade, reduzindo o horizonte visual e a luz natural na sua galeria.
Depois chegou o advento do Digital, e a derrocada do trabalho fotográfico, tal como existira durante mais de um século. Uma nova geração de fotógrafos, ligados ao universo da Internet e do audiovisual, com uma nova linguagem imagética e uma vertiginosa velocidade de produção. E, num ápice, ser Fotógrafo perdeu a especificidade que a profissão antes possuíra. A Fotografia encetou a sua segunda revolução rumo à universalização do uso, após a democratização fotográfica protagonizada pela comercialização dos modelos Kodak dos anos 30 e 40, que permitiram a prática fotográfica a milhões de pessoas. Agora, o mundo dos computadores e dos códigos binários traziam a independência em relação ao processamento fotográfico e às casas da especialidade. Qualquer um podia controlar, em sua casa, todo o processo fotográfico, desde o registo à impressão final. Era o mundo a mudar, e ele sentia-o.
Após um interregno de largos meses, em que sobrevivera à custa de alguns trabalhos esporádicos de casamentos e baptizados, eis que recuperava a segurança de um trabalho com salário certo.
A semana passou lentamente, como os dias longos de ventania, em que encontrara nos livros, que em tempos mais abonados comprara compulsivamente e agora preenchiam, uns por cima dos outros, todas as prateleiras da sua pequena biblioteca, o refúgio para uma vida que sentia vazia.
Desta vez não foi uma carta, mas o telefonema de uma voz feminina e apressada, certamente ansiosa pelo fim-de-semana que se aproximava. Informou-o que o contrato seria assinado na segunda-feira e que deveria dirigir-se à Divisão de Recursos Humanos logo de manhã, pelas nove horas.
O fim-de-semana passou lentamente, entediante, mas Pedro sentia-se feliz.
Assinado o contrato, iniciou funções imediatamente. Apresentam-lhe João, um jovem com pouco mais de vinte anos, designado para o apoiar e que, conhecendo já os cantos à casa, seria o seu auxílio na identificação das secções e dos locais onde se encontravam as peças a fotografar.
Como local de trabalho fora-lhe destinado uma antiga loja de roupas, no piso térreo de um velho edifício fronteiro ao da autarquia, que a Câmara adquirira recentemente, para ali instalar, no futuro, um serviço de atendimento público que permitisse servir os munícipes em horário mais alargado, para além das dezassete horas, o término do dia de trabalho na instituição. Ainda com esse serviço em fase de estudo, o imóvel, centenário, degradado pelo tempo e pela falta de cuidados do anterior proprietário, servia cabalmente para a execução do seu trabalho. A sala, ampla, com mais de quarenta metros quadrados, possuía uma montra por onde antes se exibiam fatos, casacos e vestidos que a moda da capital ditava e que a província insistia em acompanhar. Agora, com a vidraça translúcida, transformada pelas enormes folhas de papel vegetal aí coladas, a luz suave e difusa constituía matéria-prima de qualidade para o registo fotográfico. Uma secretária, duas cadeiras, um computador e um velho estirador de desenho foram ali colocados para receber a actividade fotográfica. Pedro trouxera parte do seu equipamento de estúdio, resgatado à húmida garagem emprestada por um amigo e onde guardara todo o equipamento desde que encerrara o seu estúdio. Tripés, reflectores, difusores e projectores de iluminação, entre outros equipamentos e apetrechos. E a sua máquina, que o acompanhava para todo o lado, modelo recente da novel tecnologia digital, superior à que lhe distribuíram para o serviço contratado. Com ela, realizava os trabalhos mais exigentes e as episódicas sessões com amigos, a quem acabava por oferecer as imagens, devidamente gravadas num CD.
Os primeiros meses de trabalho passam-se a fotografar obras de arte que decoravam as paredes, os gabinetes e outros espaços do edifício do Concelho, pinturas e esculturas de autores, consagrados ou desconhecidos. Nesta actividade, quase solitária, em que apenas João denunciava a presença de uma companhia quando lhe colocava alguma questão sobre Fotografia, motivada pelo desejo de um dia se dedicar a tal arte, o contacto com o restante pessoal limitava-se aos cumprimentos de cortesia ou a retribuir os sorrisos furtivos de algumas colegas mais simpáticas. João trazia-lhe as peças a fotografar, as mais pequenas, ou acompanhava-o aos locais onde estas se encontravam quando não era possível transportá-las. Aí deparava, amiúde, com problemas de iluminação que urgia resolver de forma a garantir um registo fotográfico aceitável. Nestas condições, o contacto com os outros funcionários era reduzido, acontecendo apenas nos breves momentos em que frequentava a cafetaria. Não estava obrigado à rigidez do horário das pausas para o pequeno-almoço ou para o café da tarde, mas a necessidade de estabelecer contacto com aquele universo que integrara recentemente levava-o a atravessar a rua, transpor os corredores do velho edifício camarário e tomar um café no ambiente descontraído do convívio com os colegas. De início fora alvo de risos reservados por parte de algumas das colegas mais jovens, estagiárias ou auxiliares. Pedro reflectiu sobre esse hábito das mulheres, que sempre encontram numa nova cara motivos para cochichos, segredos e risos discretos.


Cap. 2 – Contacto

Numa tarde de Verão, uma jovem mais desinibida interpelou-o no átrio da cafetaria. Queria saber se ele também fotografava modelos. Estava interessada num book de apresentação pois tencionava participar num concurso de revelação de novos talentos, promovido por uma revista de moda. Era uma jovem bonita, morena, de cabelos longos, rosto claro, mas com um olhar triste. Mais uma, entre as milhares que acalentam os sonhos de beleza incentivados pelos sucessos das top-models que desfilam nos ecrãs televisivos e vêem a sua vida exposta e escalpelizada nas páginas das revistas.
Pedro respondera-lhe que não sendo fotógrafo de moda podia realizar tal trabalho, pois não apresentaria dificuldade especial, mas que não esperasse resultados como os que via nas revistas pois ali não contava com um estúdio equipado para esse tipo de registos.
A rapariga agradeceu com um sorriso encimado por um novo brilho nos olhos, que momentaneamente afastaram a sua expressão de tristeza, e prometeu visitá-lo no seu estúdio.
E depois dela, e de uma amiga que a acompanhara, Pedro fotografou mais uma dezena de colegas que, entre o desejo de se verem expostas nas páginas centrais de uma revista de moda e o prazer da inocente vaidade feminina saciada numa simples sessão fotográfica, se prestaram a posar para a sua máquina. No fim pedia-lhes autorização para apresentar as fotos numa página de Internet que possuía, onde já figuravam muitas outras fotos de locais, monumentos e gente que fotografara nos últimos anos, um pouco por todo o concelho. Em breve integrou também colegas menos jovens, algumas impressionadas com a qualidade dos retratos, rendidas à edição digital que reduzia rugas e retirava anos de vida. E Pedro sentia um enorme prazer neste entretenimento. Sempre olhara a Fotografia como uma contestadora do oblívio que a morte exerce sobre cada ser. Numa foto, cada pessoa perpetua-se e desafia a sua condição transitória, tocando a eternidade. E agora, este novo desafio de redescobrir nos rostos a beleza que o tempo teima apagar, ou a tentativa de revelar as belezas interiores de cada pessoa, tarefas ambíguas e difíceis mas, para Pedro, profundamente aliciantes.
Escassos meses volvidos e muitos quadros e peças de arte registados, o fotógrafo recebe uma circular da Divisão de Recursos Humanos convidando-o a participar numa acção de formação na área da informática. Pretendia-se ampliar os conhecimentos dos funcionários na utilização de computadores e programas nas mais variadas aplicações. Era mais um desses cursos com fundos comunitários. Aceitou, até porque tinha disponibilidade e uma acção destas permitia-lhe evoluir num campo em que apenas adquirira conhecimentos básicos, impostos pela sua conversão apressada à Fotografia Digital.
E foi aí, nessas aulas, frente ao ecrã de um computador que travou conhecimento com uma colega deslumbrante que nunca antes vira, talvez devido à dimensão da instituição e à grande quantidade de gente que a integrava, talvez por a rapariga trabalhar noutro edifício sedeado longe do seu, nas imediações do maior pólo turístico do concelho, em zona de praias, hotéis, bares, e intensa vida nocturna.
O acaso juntara-os lado a lado, num diálogo frontal com os computadores, omnipresentes e exigentes de atenção, mas por onde paulatinamente despontaram os sorrisos de simpatia e a troca de breves considerações relacionadas com a matéria informática.
Inevitavelmente a atenção de Pedro centrou-se nas mãos da jovem. Pequenas e delicadas, de uma alvura extraordinária, como que emprestadas de um ser angelical. O sorriso gentil e a atitude comedida e reservada fizeram o resto. Pedro ficou encantado com a rapariga com quem conviveu todos os fins de tarde, durante as duas semanas do curso. E ela acabou por permitir que ele lhe fotografasse as mãos, descansadas sobre o teclado, como duas pombas brancas serenamente pousadas num telhado, exibindo-se, cautelosamente, aos pombos que esvoaçam em redor.
O breve curso terminou e Pedro regressou à rotina quotidiana, agora num desinteresse monótono, esgotada a novidade dos primeiros dias. Sentia um vazio estranho dentro de si.



Cap. 3 – O Feitiço

E fez-se luz. A jovem fechou os olhos e sorriu, enervada pelo clarão. Pedro desligou o flash e retirou-o da máquina, decidido a continuar a sessão recorrendo apenas à iluminação natural que atravessava a enorme montra da antiga loja e invadia a sala com uma luz melíflua. Estava maravilhado com a jovem e as poses que ensaiara frente à objectiva, sentada na cadeira colocada estrategicamente no centro do estúdio. Era um verdadeiro modelo, revelando não só a autêntica beleza como uma indiscutível fotogenia natural.
Eva, descendente remota de goeses, não denuncia, porém, essa ascendência pois os traços fisionómicos há muito que se esbateram na família, fundidos nas raízes maioritariamente ocidentais. Nem o nome denuncia indícios dessa remota miscenização.
É uma jovem de vinte e oito anos, simpática mas reservada, de sorriso franco e largo, cabelos ondulados e negros que caem suavemente sobre as costas. Licenciada em Medicina Veterinária, integra o Serviço de Higiene e Saúde Pública, pertencendo ao quadro de funcionários da autarquia, onde trabalha há quatro anos. Solteira, vive a vida própria de uma jovem da sua condição, na cidade cosmopolita do Sul, dividindo as suas preferências entre as magníficas praias de areais extensos e a pulsante vida nocturna, própria da animada estância turística. Da janela da sua sala de trabalho, através de uma nesga de horizonte esquecido entre duas altas torres de apartamentos, vislumbra, de tempos a tempos, a passagem de um paquete de cruzeiros e sonha com viagens, e outras coisas.
Mas Pedro não sabe nada disto. Desta rapariga que lhe entrou pela alma dentro como um furacão inesperado, saltando do monitor do computador, onde se demora, hipnotizado, na edição das fotos que lhe fizera dias antes. E olha fixamente aquele sorriso cândido e sereno, procurando penetrar-lhe no íntimo, descobrir os segredos de tal beleza superlativa, como que procurando entender o milagre da criação do Universo. Para além do nome, ele nada mais sabe acerca da jovem. Nem a idade, nem onde vive, nem se tem namorado, nada.
Sai do estúdio ao final do dia, quando a sombra do edifício dos Paços do Concelho oculta os últimos raios de sol e lhe retira os restos da luz natural. Não gosta de recorrer à iluminação artificial das lâmpadas fluorescentes. Para arruinar os olhos já basta o computador.
Em casa, longe do emprego, do ambiente e do local impregnado com a memória da breve visita da jovem, sente-se longe, muito longe dela e entra num torpor hipnótico entrecortado por momentos de exaltação, num febril devaneio que a noite amplia e sente, nesse escuro desesperante, coisas que nunca sentira na vida. Pedro descobre que está, arrebatadoramente, apaixonado. E num momento de lucidez, tranquiliza-se com a ideia de que tal estado emocional acabará por se desvanecer. Só tem que ser paciente.
O tempo, esse velho sábio, tudo resolve, sempre ouvira dizer. Mas, se assim acontecer, não será nos dias mais próximos. Ou porque o velho sábio já estava muito velho, mesmo, e decrépito das suas capacidades, ou porque é demasiado intenso o achaque sentimental de Pedro, o facto é que o incómodo sentir persiste, e até cresce com o decorrer dos dias. E imagina cenários mirabolantes de uma vida diferente, de uma vivência refeita de felicidade suprema. Estes devaneios só são obscurecidos pelas constantes interrogações acerca da vida do alvo das suas atenções. E neste estado de espírito Pedro mais parece uma alma penada deambulando erraticamente, absorto nos pensamentos mais profundos e alheado perigosamente da vida normal que decorre à sua volta, desatento das solicitações que o quotidiano lhe lança na tentativa de o recuperar para a realidade, essa normalidade que nada lhe diz, que não lhe toca. Essa vida amorfa, anódina e insensível aos sentimentos singulares que o percorrem. Pedro está enfeitiçado.


Cap. 4 – Lágrimas

João veio informá-lo da necessidade de se deslocarem ao canil municipal a fim de procederem ao registo de uma imprevista ocorrência: O falecimento de um estrangeiro, um residente solitário que deixou duas dezenas de cães sem cuidados, durante vários dias, até ao conhecimento das autoridades. Agora tratava-se da remoção dos animais e a sua recolha nas instalações do Departamento do Ambiente e Equipamento Urbano. Era necessário fotografar os animais, para os procedimentos administrativos da praxe.
No local, entre os vários funcionários e directores, estava a jovem Veterinária que a dado momento, apercebendo-se de que Pedro verificava o resultado das fotos olhando o minúsculo ecrã da câmara, pousou a mão sobre o braço do fotógrafo abeirando-se para espreitar as pungentes imagens.
Pedro adorou aquele toque suave e ficou embevecido com a naturalidade da jovem, na sua candura e isenção de malícia. E sorriu-lhe, ternamente.
Os cães foram tratados, sendo uns encaminhados para lares de acolhimento e outros ficando a residir temporariamente no canil municipal.
O dia não podia ter sido melhor. Tinha falado com ela.
Nessa noite, confortado pelo encontro, Pedro procurou a companhia dos seus amigos na Internet, correspondentes do Messenger, refeito das angústias e da existência retirada e sombria que vivera nos últimos dias. E nesse alegre estado de espírito autorizou a utilização de fotos suas na ilustração de poemas de uma amiga “virtual” que o solicitara em conversa online. Essa amiga dera-lhe o endereço do sítio onde colocava os poemas e ele, que nunca manifestara interesse por tal género literário, passou a encarar a poesia de outra forma. Em breve discutia com as poetisas virtuais o sentido dos poemas e as forças que impelem esses sentires, numa descoberta reveladora de nova dimensão da sua sensibilidade.
No improvisado estúdio onde, por vezes, recebe ao fim do dia alguns amigos para uma breve cavaqueira e a quem mostra os mais recentes trabalhos fotográficos, devidamente editados, em que procura realçar a beleza das pessoas num singelo contributo para a felicidade de cada retratado, ouve os comentários que inevitavelmente se fazem acerca das imagens e sobre um ou outro pormenor relativo às pessoas retratadas. Regista, mentalmente, as considerações feitas sobre Eva, suscitadas pelo surgimento das suas fotos na página da Internet, sem denunciar o interesse e os sentimentos que sobre ela nutre. Sim, tem um namorado. Vive na periferia da cidade, num dos bairros mais antigos. A família tem parentes entre a comunidade de goeses residente em Portugal – disse-lhe um amigo que ouviu isso, dito por um familiar dela. E pouco mais soube, porque era parco o conhecimento dos seus amigos ou porque, no receio de denunciar o seu interesse, nada lhes pergunta sobre ela. Mas para ele, esse pouco já é muito.
Nas longas noites em que o desespero o trucida, jacente no sofá da sala, ouve a música que o computador reproduz e encaminha em impulsos micro eléctricos através do extenso fio dos auscultadores. Ouve temas dos UHF e Three Doors Down e constrói novas leituras poéticas para as canções que, nessa reinterpretação, são o sedativo que precisa para acalmar a sua inquietação permanente.
Motivado pela situação singular que vive ou provocado pelo conteúdo poético das canções, que repetidamente escuta, Pedro sente o ensejo de escrever. Escrever poemas, ou uma carta. Sim, vai escrever uma carta poética à jovem, explicando-lhe o que sente e pedindo-lhe auxílio para superar esta inusitada fase da sua vida. O propósito: matar aquela paixão doentia, de impossível concretização, procurando no convívio com ela sublimar o seu sentir numa amizade substituta e apaziguadora.
E escreve de uma penada, teclando letras, palavras e frases num impulso ininterrupto, vertendo um texto que afinal parecia ter estado lá sempre, à sua espera.

COM O MEU CORAÇÃO NAS TUAS MÃOS
Foram as mãos. As tuas mãos brancas, pequenas e delicadas, que numa tarde de final de Verão me seduziram e encaminharam o olhar para o teu rosto sereno, angular, com uma boca distinta e uns olhos escuros enormes. E enfeitiçaste-me.
Mais tarde, exposta, à minha frente, com os risos largos que transbordam a tua beleza, e os mesmos lindos e brilhantes olhos que te iluminam o rosto, por vezes misterioso, traindo, em certo momento, a fugaz emoção da experiência nova, e alguma insegurança, frente à luneta mágica que te explora, eis que de repente me atinges em cheio.
Acertaste mesmo no meio de mim. Com toda a brutalidade.
E foste tu, também, talvez com o teu olhar hipnótico, que me reconstruíste noutro. Num novo ser, com um novo olhar, escravo de profunda paixão. Uma avassaladora paixão, como jamais sentira.
E nos dias seguintes milhões foram as facas que se enterraram no meu peito. Sucumbi, ajoelhado, vergado sobre a força que me constringe este peito, possuído por esta angústia medonha que me cerca, implacável, como uma escuridão insidiosa.
E, gradualmente, uma monstruosa inquietude foi-me invadindo até à mais pequena molécula de mim, e a todas as partes de mim. E respirar tornou-se penoso. E, parar era impossível. E queria chorar. Queria, tanto, conseguir chorar. Mas as lágrimas não fluíram. Não houve gotas para refrescar a caminhada a este calvário.
Perdi-me do que era antes e, assim, perdido, ando. Não me reencontrei ainda. Nem sei o que sou agora.
Neste estado de profunda catarse agarrei um lampejo de impulso racional e estabeleci o plano, diabólico, de assassinar esta paixão que me consome. Exorcizá-la. Não me escondendo, nem te evitando. Antes, procurando na tua companhia acalmar o turbilhão em que me transformei para, depois, poder reconstruir uma realidade. A realidade da impossibilidade. Assim, afogo ilusões que acredito não poder transformar numa nova vida. E recordo o poema que pede ao tempo para voltar atrás. Vã ilusão, confirmo. E sofro…tanto.
E depois vejo-te. Sem te procurar, és tu que vens, e sorrio-te, e sorris-me. Falamos. Mas não destas coisas, que ignoras completamente. Tocas-me suavemente no braço, como quem acaricia uma pena, com uma dessas mãos que adoro, pequena, alva e delicada, para te debruçares e espreitar uma imagem que observo. E outro dia do meu novo ser consome-se nesta efémera tranquilidade. Mas a dor continua, aqui, mesmo no centro do peito, profunda, dominadora, esmagadora.
E as lágrimas continuam a não correr. E precisava tanto delas, para drenar este sofrimento que me consome, tanto como os áridos campos de hoje clamam por gotas providenciais que os venham aspergir e salvar da impiedosa seca. Assim mesmo.
Agora sossego um pouco. Tenho a esperança de tocar as tuas mãos. Essas mãos brancas, pequenas e delicadas. De as registar numa fotografia onde poderei admirá-las, para sempre.
E depois, … não sei. Talvez me reencontre, ou talvez fique perdido para sempre neste limbo, para onde Afrodite me expulsou.

P.


Cap. 5 - Encontro

Calcorreando as ruas da cidade, passa pela movimentada rua onde Eva reside, na expectativa de a encontrar, de a ver ainda que fugazmente, entrando ou saindo de casa. Quem sabe, com a possibilidade de trocar umas breves palavras e de admirar aquele sorriso mágico. No bolso, transporta a carta dobrada em quatro, como voto preparado para a urna, onde pretende eleger a tão ansiada amizade.
E ao terceiro dia encontra-a. Perto de casa, terminando as manobras para estacionar o seu automóvel desportivo, um Fiesta 1.4 vermelho que reconheceu ao longe, pois já se tinha cruzado com ela por duas ou três vezes, nas ruas da cidade.
Aproximou-se, e sorriu-lhe. E ela sorriu também, em resposta, baixando o vidro:
- Olá Pedro. Tudo bem?
Pedro inclinou-se para ficar ao nível dela. Com a voz embargada pela emoção e o coração em descompassado pulsar, temendo trair essas emoções, disparou rapidamente:
- Eva, tenho aqui uma coisa que escrevi para ti. Quando a leres vais compreender. Vou precisar da tua ajuda. Depois falarei contigo, agora tenho de ir. Adeus.
A rapariga aceitou o papel amarrotado pela viagem de dias no interior do bolso dele, e despediu-se com um breve:
- Está bem, Pedro. Até depois.
Endireitou-se, deixando de a ver, oculta pela capota do automóvel, e afastou-se.
E mais tarde, na solidão da noite, o acto protagonizado durante o dia mais não lhe pareceu do que uma imensa, uma gigantesca patetice. Ou será que fez o que devia? Irá ela compreender o que ele pretende? Ao menos declarou o seu sentir, e com isso aliviou um dos fardos, ou será que não? E atormentado por estas dúvidas, adormeceu no romper da alvorada.
No decurso do novo dia, durante a pausa para o almoço, telefonou-lhe – fora fácil encontrar o seu número de telefone na lista de contactos dos funcionários. Pedro pergunta, num tom de voz pouco firme, se ela quer as fotos que fizeram no estúdio. Que pode mandá-las por correio electrónico. Ao que ela responde positivamente, aparentemente satisfeita. E dá-lhe o endereço do seu e-mail. Pedro aproveita a oportunidade e reitera o pedido para voltar a fotografar as mãos. Conta-lhe do seu projecto fotográfico em que pretende reunir uma conjunto significativo desses admiráveis apêndices da anatomia humana, em variadas situações e contextos, iconificados em imagens radicadas umas no formalismo estético, com tónica no acto de criar, e outras na abordagem conceptual, em que a criação artística é impulsionada por uma idealização à priori. Em resposta obtém um riso divertido e um lacónico: - Depois veremos.
As noites são de exaltação. Escreve, e cria um blogue de poemas. Elege a jovem como sua musa inspiradora e define-a como uma deusa. Relembra os estudos da disciplina de Antropologia das Religiões e escolhe Reva, a deusa do amor do panteão hindu, numa clara inspiração suscitada pela remota ascendência oriental da jovem.
Pedro manda-lhe um e-mail com as fotos e o endereço do blogue que criou para ela.
Olá Eva, aqui vão as fotos. Não estão muito boas, porque a luz já não era a melhor, mas poderemos repetir noutra sessão, numa hora com mais luminosidade. Olha, gostaria que visses este blogue http://poemasparaeva.blogspot.com/. Lá, encontras uma prosa poética que já conheces e outros poemas que poderão ajudar a percebê-la melhor. Peço desculpa se te sobressaltei no outro dia. Às vezes portamo-nos como patetas. Eu fi-lo. Mas não há razão para alarme.
Podes, ao menos, dizer que recebeste esta mensagem?!
Pedro

E depois, o silêncio. E a dúvida do acerto das suas acções. De novo o silêncio, entrecortado pelos breves momentos em que a vê quando passeia pelas ruas da cidade num hábito que sempre cultivou de caçador de imagens urbanas. Uma semana depois recebe uma resposta:
Olá Pedro. Já vi o blogue e gostei imenso. Não percebi a parte do "sobressaltar". Fica descansado que não me sobressaltei, nem acho que tenha visto algum comportamento digno de ser chamado pateta.
Eva.

Maravilha das maravilhas, ela viu, leu e gostou. Aquela criatura sublime encanta-se, certamente, com os poemas que lhe dedica. E Pedro telefona-lhe de novo, desta vez ao cair da noite, mas ela não atende. Nem a uma segunda tentativa. Alarmado, suspeitando que a rapariga se sente incomodada com esta espécie de assédio sentimental deixa-se afundar, regressando ao estado de torpor miserável.
Dois dias depois tenta de novo, e desta vez ela atende. Estabelecido o contacto telefónico apressa-se a perguntar se ela viu os poemas, e o que acha, e se sente incómodo com este tipo de atenções que ele lhe dispensa. Ela, cuidadosamente, responde-lhe que sim, leu os poemas e achou interessantes. E que não, não se sente nada incomodada. Que apenas espera da parte dele que essas atenções não se tornem uma solicitação permanente através de telefonemas e mensagens. Ele descansa-a a esse respeito.

(…)

FIM

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