O que escreveu não é suficiente. Saramago, na sua fria lucidez sabe que o fim está próximo e não quer deixar apenas a obra escrita como testemunho único da sua passagem pela vida. O ensaio do discurso verbal, essa atracção obsessiva que afecta quase todos os mestres da palavra escrita, serve-lhe o propósito de marcar uma posição. Vincar a coerência da sua visão do mundo, que expôs ao longo da sua obra escrita e que, pelas letras impressas chegou a meio-mundo. Agora, com a oralidade, alcança o outro meio. Saramago não quer partir amortalhado apenas nas páginas do que escreveu, exige o som da trombeta de guerra que é a sua voz rebelde. Rebelde contra um mundo atávico, de carneirada néscia que se deixa manipular por uma corja de velhacos. E essa trombeta anunciará a sua passagem para o além ou, como plausivelmente acreditará, a transição para o oblívio.
Deixei de o ler quando recebeu o prémio. Talvez por preguiça, talvez por achar que deixava de valer a pena dispensar atenções a algo que a sociedade devorava transformando em mainstream. Talvez tenha feito mal, ou talvez ainda não seja altura de ler todo o Saramago. Antes disso, li e gostei do Levantado do Chão e do Memorial, adorei o Evangelho e ri-me com a Jangada. Hoje, aplaudo este homem velho e cansado que tem razão de sobra para libertar a raiva que lhe vem de dentro. As sotainas diagnosticam-lhe ódio, eles lá sabem, conhecem bem esse sentimento.
Já eu, que concordo com as suas palavras sobre a Bíblia, digo: tais palavras só podem sair de alguém com profundo sentido religioso e humano; alguém que se encontra nos antípodas dos que imediatamente o criticaram, acusando-o de leviandade e ignorância. E pur si muove.
«A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade - A Bíblia passou mil anos, dezenas de gerações, a ser escrita, mas sempre sob a dominante de um Deus cruel, invejoso e insuportável. É uma loucura! (…) Deus só existe na nossa cabeça, é o único lugar em que nós podemos confrontar-nos com a ideia de Deus. É isso que tenho feito, na parte que me toca». José Saramago
4 comentários:
Esta do Saramanguito está o máximo! Saramago não é assim tão ateu como parece. Se agride Deus é porque acredita nele. Que sentido faria agredir um ser que não existe? O que Saramago ainda não entendeu é que o Deus do Velho Testamento não é o mesmo Deus do Novo Testamento. O do Velho foi inventado pelos homens que escreveram o que escreveram numa época em imperava a santa ignorância!
Ele entendeu. E então pergunta: - Porque criticam tanto aquilo que escrevo se vocês têm um livro em que quase nada pode ser literalmente interpretado, e dois deuses, um que prega a vingança, a violência e o ódio e outro que prega o amor? O que Saramago diz, simplesmente, e não o diz agora - sempre disse-, é que "DEUS VAI NÚ e os parvos dos homens não vêem".
Olhe que não sei, Francisco. A relação de Saramago com Deus é muito complexa e interessante. Objecto do meu estudo. Ele crê mas não sabe. Por isso escreve o que escreve e exorciza-se. Com talento e uma grande dose de perplexidade.
Pois, não sei cara Isabel. Andamos no domínio das interpretações e das convicções pessoais. Mais do que isso, só as evidências que estarão ao alcance de quem se debruça com interesse e atenção genuína sobre o homem e a sua obra, o que não é o meu caso. Resisti ao impulso de comprar o Caim, porque os livros acumulam-se e eu não dou conta deles. Mesmo aqui ao lado tenho o Gombrich, olhando-me como quem diz: - não tinhas que me estudar, ó emplastro?!
E por baixo dele ainda está a Choay e o livreco do Xavier Barral I Altet.
À parte os académicos, "incomodam-se" nas prateleiras uns trinta, entre romances, contos e ensaios, aguardando o cumprimento da promessa de os ler, promessas...
;)
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