O alarve

Porque ainda posso praticar sem restrições a língua pátria que me ensinaram, alheio ao acordo ortográfico – essa coisa obtusa e pretensamente consensual entre os diferentes falantes da língua portuguesa –, continuo a exercitar a escrita na forma que mais me entusiasma: a ficção, que vai buscar aos esconderijos da memória fantasias mirabolantes eivadas de desejos, decepções e ironias, temperadas com uma pitada de humor cáustico e cínico que exonera convenções, preconceitos, decências e tolerâncias. Aqui não há transigências nem palmadinhas nas costas.

O Alarve

Abusando da tolerância do chefe, o alarve, emplastro inútil e improdutivo que ocupa o lugar apenas por ser filho de quem é – de um magistrado corrupto e de uma explicadora de francês pretensiosa e intriguista –, demonstra a sua descomunal cretinice tentando obter o reconhecimento da sua veia artística. Enfiando, episodicamente, debaixo do nariz do incauto mais próximo, o seu último desenho ou pintura, de gosto e técnica claramente medonhos. Evidentemente, os que o rodeiam não lhe reconhecem qualquer valor mas aplaudem e elogiam, hipocritamente, pois tratando-se de um basbaque da alta, com peso e influência social, há que manter a cordialidade e uma amizade a qualquer momento, potencialmente, lucrativa. Pois nunca se sabe quando será necessário recorrer à influência social da madame ou aos préstimos judiciais do meritíssimo. E ai de quem ousar acusar a situação. Tal desgraçado verá a sua vida, presente e pretérita, analisada a pente fino, devassada e esmiuçada e, encontrado algum podre, logo adulterado, adicionado a mentiras credíveis e lançado à comunidade faminta, pelos peões de brega – canalhas apaneleirados, raparigas mentecaptas e arraia miúda ingénua –, uma dezena de burgessos que enformam a corte da insidiosa víbora que, ensina, agitando, a língua de Marie Brizard.
E assim passam os dias no movimentado cais onde chegam e partem incontáveis navios carregados de metais, madeiras, fardos e caixas de conteúdos diversos, de cores desmaiadas e odores suspeitos.
O alarve pouca atenção presta ao seu mètier de controlador das cargas e descargas do porto, embeiçado na prancheta que prende as folhas brancas de papel cavalinho onde, espera, surjam umas tantas magníficas obras de arte, traçadas a lápis de carvão primeiro, e depois coloridas com ceras ou aguarelas oferecidas pelos comandantes dos navios que demandam o porto, e lhe conhecem o gosto.
O chefe, incapaz de o repreender, não só devido ao seu feitio indulgente mas também por receio de retaliações directas da família ou da influência desta junto do Director Geral da Fazenda Pública, vai deixando correr a situação, substituindo o alarve pelos colegas que dividem, entre si, o trabalho que a ele cabia.
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No centro da sala, uma mesa cercada por quatro cadeiras desengonçadas e encimada por uma vela suspensa, apresenta uma enorme carta de marear. Uns traços finos, riscados com a precisão do esquadro, cruzam-se no ponto do mar que divide os dois homens na discussão que dura há mais de três horas. Pretendem resolver de que forma alcançarão melhor aquele ponto, evitando os riscos da navegação em águas inimigas, e numa altura do ano em que as condições climatéricas são perigosamente adversas.
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A ele apenas interessava meter ao bolso a sua percentagem, a alcavala do negócio que nem conhecia, de que nunca se interessara perceber os pormenores. E desta vez o capitão trouxera-lhe um bom conjunto de cores fortes, como as que usam os de Levante. Com a bolsa cheia de metal tilintante, o estojo de madeira com os valiosos pigmentos, o alarve apressa-se a abandonar as instalações do porto, rumo a casa. No sino da Igreja de S. Pedro soam as badaladas do meio-dia e o homem apressa-se, enrolando em volta do pescoço e dos ombros um enorme cachecol de lã escura que o defende do frio insidioso que fere os rostos e as mãos dos seus colegas, carregados com o opróbrio do trabalho que os ocupará até ao anoitecer.
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Violentamente atacado por navios inimigos e que só a tempestade evitou soçobrar sob as repetidas bordadas de tiros certeiros, mas que a fúria do vento e das ondas acabou por desarvorar e desgovernar, o navio regressou à deriva, ao sabor das intempéries e de mão misteriosa e divina que o trouxe direito ao porto, por ali entrando fantasmagoricamente, sem estranheza das gentes que atendem ao árduo labor nos outros barcos e nos cais apinhados de mercadorias. Na eminência do embate com o embarcadoiro, o gurupés, mastro projectado uns bons metros para a vante do navio, ultrapassando o cais qual aríete portador da brutal força deslocada pelo navio, embateu secamente, e sem a mínima resistência, no homem que caminhava, cego, envolvido no largo cachecol que prevenindo do frio não o deixara prever o desastre. O alarve ali ficou, agonizando, empalado no enorme cacete horizontal do navio escavacado.
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