Adoro ler. Sinto um prazer enorme quando leio quem escreve muito melhor do que eu. Às vezes até consigo ler coisas sem grande interesse, mas que estão muito bem escritas. Que querem, cada um tem a sua pancada?!
Embora não nutra simpatia pela pessoa em si, peguei numa obra já com alguns anos e descubro que para além de escrever bem, ele escreve exactamente com a construção que prefiro, com a qual mais me identifico. Não estou a falar de coisas fora de série, de genialidade, de grandiloquência literária, nada disso. Falo do que é, simplesmente, bom. Deleito-me com a sua boa escrita. Ora digam lá que não está bem escrito?!
«O pai amara-o sempre, com uma frieza de rochedo. Ficara sempre ao seu lado, em silêncio, enquanto via passar pela sua vida guerra, mortes, fracassos, divórcios, desgostos, tristezas. Nunca lhe dissera para ter juízo, para assentar, essas coisas que os pais dizem.
Nunca lhe recriminara coisa alguma mas também nunca o consolara com palavras. Nunca se consentira para com ele um gesto de ternura, nunca lhe oferecera o ombro para nele desabafar. Mas tinha estado sempre ao pé dele, inabalável, à sua maneira: calado e atento.
Só na hora de morrer, o pai confessou o que nunca confessara a ninguém, que aquele filho era tudo na sua vida. Confessou-o com um único gesto de mão, com o qual fez sinal para saírem todos do quarto e deixarem-no sozinho com ele. Morreu calado e atento, como se quisesse levar consigo o som da respiração do filho ou como se quisesse escutar pela última vez os ruídos da casa. Ele ficou a segurar-lhe a mão até a sentir fria, fechou-lhe os olhos e afastou-se. Parou à porta do quarto, virou-se para trás e disse: «Nunca mais chorei, pai!».
Saiu e entregou o morto às mulheres para que o chorassem.»
“Não te deixarei morrer, David Crockett”, de Miguel Sousa Tavares
Embora não nutra simpatia pela pessoa em si, peguei numa obra já com alguns anos e descubro que para além de escrever bem, ele escreve exactamente com a construção que prefiro, com a qual mais me identifico. Não estou a falar de coisas fora de série, de genialidade, de grandiloquência literária, nada disso. Falo do que é, simplesmente, bom. Deleito-me com a sua boa escrita. Ora digam lá que não está bem escrito?!
«O pai amara-o sempre, com uma frieza de rochedo. Ficara sempre ao seu lado, em silêncio, enquanto via passar pela sua vida guerra, mortes, fracassos, divórcios, desgostos, tristezas. Nunca lhe dissera para ter juízo, para assentar, essas coisas que os pais dizem.
Nunca lhe recriminara coisa alguma mas também nunca o consolara com palavras. Nunca se consentira para com ele um gesto de ternura, nunca lhe oferecera o ombro para nele desabafar. Mas tinha estado sempre ao pé dele, inabalável, à sua maneira: calado e atento.
Só na hora de morrer, o pai confessou o que nunca confessara a ninguém, que aquele filho era tudo na sua vida. Confessou-o com um único gesto de mão, com o qual fez sinal para saírem todos do quarto e deixarem-no sozinho com ele. Morreu calado e atento, como se quisesse levar consigo o som da respiração do filho ou como se quisesse escutar pela última vez os ruídos da casa. Ele ficou a segurar-lhe a mão até a sentir fria, fechou-lhe os olhos e afastou-se. Parou à porta do quarto, virou-se para trás e disse: «Nunca mais chorei, pai!».
Saiu e entregou o morto às mulheres para que o chorassem.»
“Não te deixarei morrer, David Crockett”, de Miguel Sousa Tavares
4 comentários:
Belo pedaço de prosa. Tem razão Francisco.
O que me causa perplexidade é haver gente que aprendeu a ler nos anos 50/60 e que confundem uma escrita deste nível com a escrita pobre da “Fúria Divina” (e outras do mesmo autor). Será que andaram na “escola da marreca”?
Está bem escrito sim sr. :)
Oh Castelo! Andar até andaram, só que há quem defeque um livro de 3 em 3 meses, e há quem o deixa marinar, para que fique com os temperos no sítio...
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