Era uma
caixa de madeira descomunal, com dois rótulos colados numa das faces maiores,
remetente e destinatário, em papel branco, escritos a lapiseira com letra
cuidada, talvez do amanuense diligente da Camionagem Central do Sul. Sobre a
madeira exalava-se o aroma antigo das viagens, do pó acumulado, dos armazéns
húmidos e do segredo.
Creio ter sido por volta de 1976 ou 1977 que o meu tio Ginésio nos remeteu tal encomenda. Mais uma, entre tantas, das suas afamadas caixas de pinho, normalmente recheadas de bacalhaus, ananases, cerejas e outras iguarias já hoje esfumadas da minha memória.
Uma vez descarregada pelos homens da camionagem, a caixa repousava no meio da sala como visita muda, aguardando a chegada do meu pai que, qual mestre de cerimónias, a abria solenemente com uma chave de fendas digna de Hércules.
Era ainda cedo. Eu sabia que teria de aguardar pelo clangor da sirene da fábrica e pelo roncar da motorizada, até que visse o seu vulto enfiar a mão pelo postigo e destrancar a porta. A sua entrada era sempre a mesma — sóbria e firme — e o seu semblante, sereno e impenetrável, surgia-me como o rosto de uma estátua em fato azul, o uniforme de “afinador de cravadeiras” e de outros engenhos e criaturas metálicas do mundo conserveiro.
Enquanto esse ritual não se cumpria, eu e a caixa confrontávamo-nos em silêncio. Olhávamo-nos com a reserva dos desconhecidos. Ela, imóvel, sólida como um túmulo. Eu, inquieto, num vaivém nervoso entre o sofá e ela, onde me detinha para lhe aspirar o odor, tentando decifrar algum indício do seu conteúdo. Inutilmente. Nada se deixava trair. Era um enigma fechado a pregos e expectativas.
Mesmo conhecendo quase todos os 17 ou 18 irmãos do meu pai, o tio Ginésio figurava entre os eleitos do meu afecto. Logo, porque era o mais parecido com aquele retrato sépia do meu avô: um homem alto, moreno, com o cabelo puxado para trás e aprisionado pela brilhantina, bigodes negros como carvão, ondulantes, findos em volutas retorcidas. Mas também, e sobretudo, pelo magnetismo natural que possuía: um misto de cordialidade e mistério, de gentileza franca e olhar encantatório. Era daquelas raras criaturas cujo gesto apazigua, cujo sorriso domestica até os cães vadios. Em sua casa havia sempre um papagaio, ou um galo-da-índia adestrado, e a janela abria-se, sem surpresa, para receber dois ou três pombos fiéis que vinham comer-lhe da mão. E havia sempre, sempre, um cão.
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o meu tio em jovem, ainda sem bigode de pontas retorcidas |
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Os meus avós. Ele, pai do meu pai e do tio Ginésio; ela, mãe do meu pai (tiveram 5 filhos) mas não do Ginésio que era filho da segunda esposa do meu avô (com que teve 12 filhos). |
Na sua
última profissão, estucador, deparava-se frequentemente com moradas em vias de
ser renovadas. E nessas, entre entulho e fragmentos de vidas anteriores,
sobravam objectos que os antigos inquilinos haviam deixado para trás, como se
quisessem soltar lastro para poderem seguir viagem. Era o resto do mundo de
outros, entregue ao critério dos obreiros.
Foi numa dessas casas de Lisboa que os donos, apressados ou desinteressados, deixaram à mercê dos trabalhadores uma pequena biblioteca escolar em francês. O meu tio, homem de parcas letras, mas atento e generoso, não hesitou. Sabia-me em idade escolar e, talvez evocando um episódio longínquo, tratou de me remeter aquele espólio.
Uns dez anos antes, numa visita à capital, eu exigira aos meus pais — com a inflexibilidade dos iluminados — a compra de um livrinho exposto numa montra. O episódio ficou-lhe, talvez, gravado. A insistência com que deixei para segundo plano as estátuas e avenidas, os eléctricos e miradouros, em favor daquele volume discreto, deve tê-lo tocado. E foi assim que, lembrando-se disso, me enviou, com comovente candura, uns quarenta quilos de livros.
Não sabia ele o que motivara tamanho fascínio: o livro chamava-se O Senhor Cágado, e a má escolha do tipo de letra fizera-me acreditar tratar-se do relato tragicómico de um senhor “cagado”, mistério que me acompanhou durante parte do trajecto de regresso, até que, já embalado no ritmo sincopado da linha férrea, percebi que a história versava sobre uma tartaruga, e não sobre nenhuma vítima de súbita disenteria.
Aberta a caixa, revelou-se o conteúdo que o meu pai, avisado por telefone, já conhecia. Dezenas de livros escolares, que haviam pertencido, assim presumo, a uma jovem do Liceu Francês. Alguns volumes, de História ou Álgebra, traziam um nome feminino, escrito no canto superior da primeira página, em tinta desbotada.
Àquela altura, contava já quatro anos de estudo da língua de Molière. Conseguia ler directamente a maioria dos textos e, quando um termo me era esquivo, recorria ao dicionário com zelo de aprendiz.
Serei eternamente grato ao meu tio Ginésio. Deu-me um dos mais belos presentes que jamais recebi: uma caixa de livros usados. Um caixote mágico, de onde emergiram páginas tocadas por outra adolescência, outra caligrafia, outro tempo. A descoberta foi um sobressalto, um assombro que não se repetiu.
Durante dias, devorei aqueles livros, vasculhando os seus segredos como um arqueólogo num túmulo do Nilo. Eram os mesmos livros que, talvez naquele exacto instante em que eu caminhava de mão dada com a minha mãe pelas ruas de Lisboa, iam sendo lidos por uma rapariga do Liceu Charles Lepierre. Ela folheava Rousseau; eu, o cágado. E os nossos mundos, tão distantes e tão próximos, cruzaram-se numa caixa selada.
Hoje, resta-me apenas um desses volumes (ver foto). Os outros fui oferecendo ou emprestando e, como é da regra dos livros emprestados, nunca mais os vi. O que ficou é, talvez, o mais importante. Foi ele quem me deu a chave para um primeiro contacto, e nalguns casos único, com autores como Baudelaire, Montaigne, Rabelais, Rimbaud, Verlaine, Victor Hugo, Voltaire. Um verdadeiro tesouro. E não exagero. Foi, em toda a acepção da palavra, um tesouro.
4 comentários:
J'ai beaucoup aimée ton Histoire , tu décris très bien les sentiments que tu as ressenti au moment de l'évènement vécu , j'écris en français car j'arrive mieux à m'exprimer qu'en portugais!!!C'est sympa de retrouver les photos de nos grands parents et de l'oncle, si tu as d'autres photos de la famille je serais très contente de les voir... Merci à bientôt Madalena
Merci bien, Madalena.
E toi, qu'est-ce que tu écris au blog? T'as un, non?
à bientot
Obrigado pelo artigo. Gosto do teu estilo. Não nos conhecemos, eu sou o único neto do Ginésio e a "...jovem aluna do Liceu Charles Lepierre" é muito provávelmente a minha mãe, a sua filha Orlanda.
Cumprimentos "familiares".
Ricardo
Obrigado, eu, pelo teu comentário, Ricardo. Não sabia que a tua mãe estudara no Liceu Francês. Se assim foi é possível que os livros fossem dela, mas não reconheci a assinatura que alguns possuíam.
Da tua mãe, e dos teus avós, tenho algumas fotos no meu arquivo. Se não as recebeste através do Carlos Alberto (o mais novo dos irmãos do teu avô), posso mandar-tas por mail.
Fica à vontade para comentar o que entenderes, ou para emendar alguma coisa que a tua mãe testemunhe de forma diferente do que está escrito neste artigo, que não é mais do que a minha memória, algo difusa, daqueles tempos de juventude e que já vão longínquos neste ano em que completo meio século.
Espero que esteja tudo bem contigo e com restante família.
Abraço.
Francisco Castelo
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