Ionesco, ontem à noite


Hoje, mais do que nunca, o Teatro do Absurdo encontra eco nas pessoas vazias de esperança e de humanidade em que nos tornámos: seres perdidos, engolidos pelo sôfrego mundo das palavras sem sentido, das palavras desarmadas, desenraizadas, descontextualizadas, desarrumadas, em que o ser se rende aos sentidos fáceis deixando-se atordoar pela melopeia de sons arrítmicos e pelos néones ofuscantes que são os novos discursos. Eis-nos quase autómatos de sentimentos amassados e confundidos, indivíduos incongruentes e à deriva no gigantesco oceano da globalização, esse imediatismo vertiginoso de impulsos binários que reduziu o mundo gigantesco ao tamanho de um ecrã de computador.
O mundo desrazoado, ontem anunciado, é hoje intensamente vivido. Eis porque devemos reflectir sobre esse espelho dos dias que é o teatro de Ionesco, essa relação de tempo e espaço apresentada como se fora o interior de cada um de nós, onde nos esforçamos por encontrar, numa luta permanente contra as palavras desorganizadas em tempestades, o discurso redentor.
Por isso, a premência do regresso a Ionesco, e à sua Cantora Careca - como se fosse uma personagem arquétipo do ser que grita na escuridão em busca do raio de luz salvador.
É o que digo depois do espectáculo da OMINED, ontem à noite no Centro Cultural de Lagos.
E para mais, deixo as palavras do Mestre.
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«Voltar a Ionesco e à sua “Cantora”
Para quem ama a palavra verbalizada, a sua sonoridade, um dos pilares do seu valor semântico e respira nos silêncios vibráteis que as separam, o ocaso do que passou e o prenúncio do que virá; para quem, através da “Cantora Careca” de Ionesco consciencializa a impotência dessa mesma palavra para designar o horrível, cristalizada que está na banalidade dum quotidiano cinzento, onde nada se revela, onde nada se esconde; para quem sente que precisamos urgentemente de ressuscitar o seu poder,… revisitar a “Cantora” é exercício que periodicamente se impõe.
É esta Tragédia do nosso tempo, tragédia da falência da linguagem contemporânea, que Ionesco, um dos maiores tragediógrafos do sec. XX, denuncia, para que, descodificando-a, melhor possamos percepcionar o mundo de hoje.
A tragédia não reside na sociedade do isolamento e da solidão, que é a nossa, apesar dos inúmeros canais comunicacionais ao nosso dispor. Tampouco está na verborreia opaca, digitalizada e ruidosa, publicitando um Estado/Nação que em nome do Pragmatismo, marcando passo, parado, dispersou a ideologia, aliciando a forma a comer o conteúdo, debitando “slogans” por cima de “palavras d’ordem” por demais estafadas.
A tragédia está, na consciencialização destas ocorrências, na tomada de consciência desta realidade. A tragédia resulta da fatalidade (ananke) a que a massificação do discurso haveria forçosamente de conduzir. A tragédia é o assumirmos esta insipidez que resulta da renúncia de verbalizarmos a altitudes mais elevadas, preferindo o nível rasteiro dos cobertos infestantes, que massivamente se reproduzem, tudo asfixiando à sua volta.
Tomar conhecimento deste trágico corte no passado/futuro, na esperança (vã?!) de encontrarmos outro Norte, será, talvez, o último paliativo (?!) ou o primeiro curativo(?!), com que nos poderemos auto-medicar.
Duval Pestana
Maio de 2010»
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