O dia em que passei uns minutos pelas brasas


Vai fazer sete anos. Este tempo quente e ventoso trouxe-me à memória esse dia 13 de Agosto de 2003. Eram 16h47 e descíamos em coluna pela estrada que liga o sítio do Pincho à Estrada Nacional 120 (duas viaturas auto-tanque, uma ambulância, duas viaturas de apoio e, mais atrás, uns tractores enormes do exército com os respectivos reboques de transporte de máquinas de rasto), quando deparámos com um auto-tanque parado e os seus tripulantes, os voluntários da Pontinha, tentando evitar que o fogo cruzasse a estrada para sul, rumo à povoação de Bensafrim.
Eram chamas alaranjadas e muito altas, agarradas às copas dos pinheiros e dos eucaliptos. Outras, mais baixas, crepitavam amarelas e velozes no mato rasteiro. Do coalhado negrume da fumaça escapavam milhares de faúlhas incandescentes, como será dentro de um fogo-de-artifício, julgo. Ali parou a coluna e se deu combate ao braseiro.
Estarrecido, espreitava pelo visor da máquina, disparando numa cadência rápida, sentindo-me um camera-man de Hollywood no momento em que os efeitos pirotécnicos rebentam no plateau. De súbito, aconteceu o que se pretendia evitar. O flamejante exército do Hades saltou para o arvoredo do lado sul da estrada e toda a atmosfera circundante transformou-se numa gigantesca e intolerável fogueira. Inquieto, inquiri o que comandava ali: - Rui, tens de mandar recuar esta malta?!
A resposta veio imediata, acompanhada por um curto e lento movimento da cabeça que revelou o sorriso daquele antigo companheiro da Escola Secundária, agora com o olhar “hipnotizado” pelos vários dias de acção ininterrupta: - Daqui ninguém sai! Encontramos o “gajo”, é aqui que a gente lhe dá.
Surpreendido pela resposta, deambulei para trás e para diante cumprindo a trintena de metros que nos separavam do resto das viaturas imobilizadas na retaguarda, fotografando e tentando esquivar-me às faíscas (fora boa ideia levar o grosso casaco de Espeleologia, bem podia ter levado também o capacete).
Ali perto, no valado à direita, outro espectáculo decorria. Um homem de meia-idade e cara tisnada, de onde sobressaíam uns olhos brilhantes como faróis rompendo o nevoeiro, com a roupa totalmente empardecida pelo fumo, manobrava habilmente um bulldozer, arrancando estevas e urzes, retirando o alimento à boca da besta enfurecida. E quando parava a poderosa máquina, amaldiçoava, mas com uma expressão divertida – remate grotesco para a sua aparência -, a sorte que tardara todo o dia, dizendo: - Ainda não acertei com nenhum aceiro.
Bem podia insistir em tal vão labor. Os ventos é que mandavam naquela brutal força ígnea, que saltava centenas de metros, senão quilómetros, indo agarrar-se a outros verdes, muito para lá dos atabalhoados aceiros. Ainda assim resistiam, cúmplices e teimosos, ele e a máquina, enfrentando o fogo.
Volto à estrada, onde as agulhetas e um canhão disparam jactos de milhares de litros de água, bombardeando as labaredas e fazendo-as minguar. E eis que o mafarrico amaina e permite retomar a circulação na estrada.
Trocado o banco alto da viatura Tanque, em que viera, por um mais baixo, de carro de apoio, segui para o quartel dos Bombeiros Voluntários de Lagos. Chegava de emoções, por agora. Logo à noite teria mais, nas vizinhanças de Bensafrim.
Destes intensos episódios não esquecerei as expressões e os olhares vivos, a dedicação e a determinação de quem combate quase até à exaustão, e mesmo na maior adversidade confia vencer a Natureza revolta, dando segurança aos seus semelhantes.
Não sei dizer mais nada. Afinal, passei apenas uns minutos pelas brasas.

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3 comentários:

Mena G disse...

Forte! Vá lá que este ano ainda não se houve disso... Já deve ter ardido tudo!

Luz Santos disse...

Só posso dizer: para os Bombeiros e voluntários que se arriscam vai toda a minha admiração e gratidão.
Vida dura...!
A Luz A Sombra

vieira calado disse...

Foge!

Brasas... só das tais...

e para assar sardinhas!