O paneleirão

O velho mestre entrava e dirigia-se para a sua mesa preferida, perto do ângulo que a parede fazia unindo a ala nascente, mais larga e iluminada, à galeria central do Café. Pousava a pasta dos papéis sobre a pequena mesa e dobrava o sobretudo no espaldar da segunda cadeira. Não se sentava de imediato, antes olhava em redor verificando quem estava, procurando simultaneamente a atenção do empregado a quem encomendava, com grande clareza, o seu habitual garoto. Mais uma rápida mirada pelos presentes e um ajeitar da volumosa carteira de documentos que transportava num dos bolsos do casaco, e acabava então por sentar. Se do outro lado do balcão estava de serviço o empregado Zé, tentava sentar-se de forma a evitar cruzar com ele o olhar e, se, por azar dos azares, calhava a este trazer-lhe o almejado garoto, por impedimento do empregado de mesa, o velho professor preparava um polido obrigado que, irremediavelmente, e devido ao atrevimento do empregado zombeteiro, acabaria por descambar num: - ora, vai para o raio…! por vezes completado pelo: -… seu grande paneleiro.
Quando as coisas iam mais longe, o chefe do balcão chamava para o lado de dentro dessa fronteira de pedra brilhante e matizada, o sarrazinoso empregado, e tudo acalmava.
Era assim amiúde, resultando das provocações que o empregado, homossexual mais ou menos assumido, dispensava ao historiador sempre que o recebia no botequim. Não sei exactamente o que lhe dizia nem se era sempre a mesma coisa, mas ouvi-o um dia, explicando-se a terceiros e escarnecendo do abastado e aposentado professor de História, por este permanecer uma ou mesmo duas horas ocupando a mesa, apenas com a magra despesa do insignificante café com leite.
Nunca esqueci essa mudança abrupta que se operava no semblante do velho mestre, sempre tão fleumático no seu porte de gentleman de outras eras, quando o Zé lhe bichanava qualquer coisa ao ouvido, e a consequente explosão que isto provocava no, quase, octogenário. E pasmava com aquela libertação verbal, por vezes audível em todo o estabelecimento: - És um paneleirão, é o que tu és. Ora esta. Vou queixar-me ao teu patrão. Têm que despedir este indivíduo. Ora esta.
Há dias compreendi o velho mestre, e a sua falta de paciência para aturar a provocação do ignaro homo e do seu comportamento maldoso, a que o ancião só conseguia responder através daquela injúria, procurando defender-se com o ataque. Mas era escusado. E o episódio repetia-se, uma ou duas vezes em cada mês…

Homenagem a José Tello Queiróz
escultura de Deodato

5 comentários:

TheOldMan disse...

Bom conto, Francisco.

Mas ficamos sem saber o que a bicha bichanava...

;-)

francisco disse...

a bicha devia bichanar aquelas coisas que tiram do sério qualquer pessoa a sério.


(que isto não constitua agravo para homossexuais, que não são aqui alvo meu - e me parece que também não eram da parte do distinto historiador de antanho. Há que reiterar que existe uma diferença profunda, sobretudo de carácter, entre homossexuais e paneleiros)

deodato santos disse...

bela parte. realmente, para lhe fazer perder a nobre compostura e sentido de humor...

Anónimo disse...

Mais berbicachos jornaleiros?
Anton.M

francisco disse...

Faltavas tu. Como vai a capital?
Não, não são coisas de jornais, antes descobertas do Facebook.
;p