AS ESCADAS NÃO TÊM DEGRAUS *

«Agora é que foi. A nossa Norma Desmond desceu por fim as escadas, depois de longa carreira de mentira e encenação; escolheu o melhor plano para a câmara e disse estar pronta para o último grande plano. No Jornal Nacional de quarta-feira na TVI, um qualquer Cecil B. De Mille gritou “acção!” momentos antes da derradeira cena e pôs no ar, indevidamente, José Sócrates preparando-se para a intervenção ao país anunciando o pedido de ajuda externa que sempre impediu e negou. Não foi apenas uma verificação técnica do teleponto. Foi uma escolha do lado da cara que ficaria melhor nos ecrãs. Depois de seis anos de governação insana para as sondagens, para as imagens e para o poder pelo poder, Sócrates, ensaiando como actor em palco, dirige-se ao assessor e diz “ó Luís, vê lá na... [no monitor] como é que fico a olhar para os… [telepontos].” E, dando um jeitinho à cabeça, agora para a esquerda, depois para a direita, pergunta ao seu fiel assessor, qual Norma Desmond em Sunset Boulevard: “Assim fica melhor?, ou fica melhor assim?” Minutos depois estava no Youtube. Às 20h00 em ponto, a SIC também mostrou quatro segundos do ensaio do actor Sócrates, ainda em mangas de camisa, mas será a gafe da TVI que fica como momento simbólico do poder socratista. Sócrates sempre foi assim. Colegas no parlamento, onde entrou jovem, recordam como ele tinha sempre a secretária de deputado sem um único papel em cima: limitava-se a fazer gestão de carreira e de outras coisas pelo telemóvel. E recordam como Sócrates se preparou para o seu primeiro discurso como deputado. Ele mesmo disse aos colegas socialistas que estivera na véspera, durante oito horas, a ver-se ao espelho, treinando, decorando a sua intervenção de poucos minutos na tribuna parlamentar. Os quinzes anos seguintes foram isso mesmo: a viver para a imagem, pela imagem — e com um êxito extraordinário. Usou a televisão como ninguém. Num debate semanal na RTP, quando Santana Lopes aparecia por lá com ar boémio à hora do directo, já Sócrates andava de um lado para o outro no estúdio decorando os sound-bites que levava em papelinhos. À conta disso, chegou a primeiro-ministro. Na ascensão foi Leni Riefenstahl, na queda Norma Desmond. Na segunda-feira, entrevistado na RTP, revimos o político que é impossível entrevistar. Não responde. Odeia perguntas. Ameaça entrevistadores. Considera as perguntas ofensivas, quando a pergunta é a base da democracia. Até o movimento corporal na cadeira encena. Usa os artifícios retóricos habituais. Mente novamente, segundo outros conselheiros de Estado. Repete as mesmas quatro ideias dos papelinhos que dissera no directo das oito da véspera e no directo da antevéspera e na entrevista da ante-antevéspera. No plano final, já terminado o simulacro de entrevista — pois fala de si mesmo, não responde a nada, e o que responde é suspeito de mentira — vimo-lo puxando dos papelinhos para verificar se dissera tudo o que levava para dizer, perguntassem-lho ou não. Duas horas depois do momento Norma Desmond, o empresário Alexandre Soares dos Santos sugeria a José Gomes Ferreira, em mais uma excelente entrevista (Negócios da Semana, SICN), que, se esta governação foi possível, também se deve aos que tiveram medo. Falou dos empresários que tiveram medo de falar, de denunciar. Referiu como o governo prejudicou Belmiro de Azevedo nos negócios apenas por ser proprietário do PÚBLICO. Soares dos Santos poderia ter referido os banqueiros (com a excepção honrosa de Fernando Ulrich), agora fautores do necessário golpe de Estado contra Sócrates e Teixeira dos Santos, que meses atrás diziam ser vital a construção do TGV, do novo aeroporto e dos demais buracos negros que Sócrates anunciava em sessões Leni Riefenstahl. Poderia ter falado dos jornalistas que tiveram medo de dizer o que sabiam em notícias que ficaram por escrever. Poderia ter dito o mesmo de comentadores e tudólogos que se babaram com o “melhor primeiro-ministro do mundo”, que legitimaram, enquanto líderes de opinião, a governação dos últimos seis anos. Poderia ter dito o mesmo dos membros do “Conselho” “Deontológico” do Sindicato dos Jornalistas e dos mesmos tudólogos mediáticos que legitimaram os ataques da maioria socratista da ERC às críticas aos ataques contra a liberdade de expressão. A seis anos de governação insana e asfixiante corresponderam pelo menos cinco anos de cumplicidade mediática. E o drama para a verdade na vida pública é que, mesmo que a nossa Norma Desmond caia das escadas nas próximas eleições, os tudólogos e os expoentes do ruído mediático que se babaram pela governação socratista e pelo próprio artista principal, esses continuarão nos ecrãs e na imprensa, virando a casaca se necessário e continuando a tudologizar o que for preciso para se manterem ou até serem promovidos, ali, ou no media ao lado.

Evolução na continuidade

A nova informação da RTP começou com uma entrevista a Sócrates, para que ninguém se esqueça que a empresa ainda é a voz do dono (RTP1, 05.04). O primeiro-ministro fora entrevistado na SIC há pouco e fizera diversas intervenções com directos infinitos, sem perguntas, nos dias anteriores. Como ironizou João Gonçalves no blogue Portugal dos Pequeninos, a RTP, “agora ‘nova’, estreia-se com uma coisa nunca vista, uma entrevista em São Bento”, seguida de um “debate” também “novo” com “a D. Fátima e os seus convidados amestrados”. De facto, em vez do Prós e Prós dos últimos anos, tivemos um dia depois de Sócrates um Prós e Prós no mesmo modelo, disfarçado no nome, com os convidados do costume e a mesma Fátima Campos Ferreira que sempre serviu as estratégias dos governos de Durão Barroso e Sócrates (RTP1, 06.04). Para que o essencial fique na mesma, a informação está mais vistosa. Como a Carochinha, a RTP é rica e bonitinha, tem uma moeda de oiro. Adoptou o modelo da informação-espectáculo. Directos de todo o lado, de Berlim e de Dublim, de onde for preciso, para dizer o mesmo que se poderia dizer de Lisboa ou de Foz Coa. Câmaras no jardim de S. Bento, para mostrar o grande líder no lugar simbólico do poder. Convento do Beato iluminado e com plateia. Promessas de visitas a 50 lugares de todo o país: uma RTP sem crise a ver a crise dos outros. E, entretanto, pelos mesmos dias, uma agência que dizem moderada, a Moody’s, classificou a RTP como “lixo”. A mesma RTP que, segundo o seu presidente, dá “lucros”, isto é, que consegue pôr no seu porquinho-mealheiro uma moeda de oiro retirada aos nossos impostos que para lá vão, cerca de um milhão por dia.»

Eduardo Cintra Torres, Público.
*tirado daqui






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