O solarengo dia de Primavera desafiou-nos a estender as velas e a arejar as humidades acumuladas pela extensa invernia. O “Escapadinha” é um barquito perfeito para esse langor que, nos idos da invernia, anuncia a chegada da época estival. E assim foi: a débil aragem de sudoeste não deu para navegar a sério, deixando-nos a boiar e a progredir lentamente, com total indolência, ao sabor da brisa preguiçosa — como nós.
Nestas condições, o suave embalar de um pequeno veleiro na baía de Lagos permite gozar essa tranquilidade e encetar calmas conversas que se vão arrastando, à deriva, pelos mais variados assuntos. Com cerca de uma hora deste arrojado périplo marítimo — em que a distância percorrida se poderia medir a palmos, dispensando a enorme milha náutica de tal tarefa — e tendo ligado o motor para mudar de posição (já que eu pretendia um melhor ângulo para fotografar o perfil da cidade), eis que nos aproximamos de um pássaro de bom tamanho que não levanta voo à nossa passagem.
Ao verificarmos que se movia com dificuldade, manobrámos o veleiro e acercámo-nos da ave. O ganso-patola, ou alcatraz, tinha as patas travadas por uma amostra de pesca que, com os seus anzóis cravados nas membranas, impedia o animal de nadar livremente e, com isso, ganhar velocidade para se erguer nos ares. Nadava mal, não voava e parecia esgotado. O bicho estava à rasca — confirmando que não é apenas em terra firme que há seres à rasca.
Manobrámos de forma a prendê-lo, com o croque, pela amostra que lhe imobilizava as patas. E ele, depois de uma breve tentativa de mergulhar, deixou de se debater, e puxámo-lo para bordo. Pacientemente, fui cortando as pontas dos anzóis e desprendendo as piteiras, enquanto o Tó segurava o bicho, evitando que este se debatesse e fizesse com que os anzóis se cravassem nos meus dedos.
Depois, o Tó segurou-o firmemente por uns segundos enquanto eu fotografava — na foto parece que está a exercer uma enorme força sobre o animal, mas não é assim. Da operação propriamente dita não há fotos, senão do antes e do depois, bem como da artimanha piscatória que atraiçoa tantas aves aquáticas.
Livre da mortal armadilha, o ganso-patola lá ficou a boiar, exercitando as asas — talvez recuperando da fadiga física e do abalo de ter sido agarrado por mãos humanas.
Este estava à rasca, mas safou-se — ou assim parece.
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