O último segredo


Assim é que é. Escrever para iletrados é bom negócio, há mercado abundante em Portugal.

Já o escritor António Lobo Antunes tinha qualificado, de forma clara, uma das anteriores produções de papel estampado de Rodrigues dos Santos: “é uma grande merda”, referindo-se a “A Vida Num Sopro”. Lobo Antunes confessou, então, ficar “assombrado com pessoas que escrevem livros em dois meses”.

«Próprio de um país que tem por besta-seller um mentecapto que profere alarvidades destas no Telejornal: "Pinto Monteiro quer apurar que crimes podem ter sido cometidos e, se sim, quais."»  


“O pobre Rodrigues dos Santos não é escritor, embora se intitule já como tal; é um fabricante de livros, com histórias mal amanhadas e contexto cultural colado a cuspo. Vende mais do que Rosa Lobato Faria, Luísa Costa Gomes ou Mário de Carvalho? Talvez. O Quim Barreiros vende provavelmente mais do que o Rui Veloso... ”


«Rodrigues dos Santos prossegue a sua eficaz Jihad contra a prosa.



Uma das muitas características partilhadas por todas as personagens de "Fúria Divina" é a escabrosa incompetência nas funções que desempenham: os investigadores não sabem investigar, os sedutores não sabem seduzir, os terroristas não sabem aterrorizar. Curiosamente, algumas exibem os requisitos mínimos para serem críticos literários; embora nenhuma das personagens seja abençoada com a meta-revelação de que faz parte de um livro sofrível, três delas fazem a segunda observação mais pertinente que é possível fazer sobre o que está a acontecer à sua volta: "isto parece um filme".


Um filme, de facto, e não dos bons. Temos a vítima que aproveita o último fôlego para desenhar uma mensagem críptica no chão; temos o explosivo desactivado no último segundo; temos louras "parecidas" com Meg Ryan e coronéis russos que "dão ares" a Anthony Quinn. O resto do elenco é despachado com pinceladas Benetton: os americanos dizem "hell", "goddamn it", "fucking tarado" ou "fucking génio"; a professora inglesa diz "jolly good"; o cientista alemão diz "Gott in Himmell!"; o agente da Mossad diz "shalom"; o militar russo diz "previt"; um eventual bombista da ETA diria certamente "Olé!" antes de acender o rastilho.


A acção envolve as tentativas de um terrorista islâmico para detonar um engenho nuclear, e as tentativas de uma equipa multinacional para impedir o atentado. "Acção" é talvez um termo demasiado caridoso para aplicar ao que é essencialmente diálogo expositivo. Como num gymnasium para cretinos, as personagens passam grande parte do tempo a informarem-se umas às outras de coisas que já deviam saber, e a chegar às conclusões óbvias vinte páginas depois do leitor, não deixando, para o efeito, de se "fitarem interrogadoramente", ou de assumir "uma expressão interrogadora", ou "uma expressão interrogativa", ou até mesmo, se estiverem com pressa, "uma expressão inquisitiva". Em sucessivas visitas guiadas ao Museu de Pesquisa Rodrigues dos Santos, recebemos extensos memorandos sobre a construção de uma bomba nuclear, a história do Islão, a topografia de Veneza, e a gastronomia dos Açores.


Depois temos a prosa, que é fucking péssima.
Provavelmente consciente da sua deficiente imaginação auditiva e do seu espectacular anti-talento dramático, o autor desenvolveu uma técnica revolucionária de mímica literária, que consiste em distorcer a fisionomia das personagens até esta se acomodar àquilo que a prosa não consegue transmitir sozinha. Isto resulta em sucessivas catástrofes estilísticas, nas quais agentes da CIA e fanáticos religiosos são reduzidos a participantes num sketch dos "Malucos do Riso", "erguendo", "carregando" e "franzindo" as sobrancelhas, "virando", "revirando" e "arregalando" os olhos. O muzak inócuo do romance anterior do autor, "A Vida Num Sopro" (menos mau do que este, no sentido em que uma bomba convencional é "menos má" do que uma bomba nuclear), dá lugar à dissonância e ao feedback. Cabeças "giram pela sala" e olhares são "arremessados" pela janela, sem intervenção de qualquer engenho explosivo. Com o pé apoiado no pedal wah-wah, o autor rasga malhas inacreditáveis sobre, entre outras coisas, baratas que se peidam em francês; trucida frases com rimas internas ("pegou num bule fumegante e deitou chá na chávena do visitante"); e ergue andaimes desnecessários sempre que alguém abre a boca, recorrendo ao seu maneirismo predilecto, aqui completamente fora de controlo. (Uma amostra reduzida: "exclamou, intrigado", "murmurou, atónito", "sussurrou, pensativo", "suspirou, exasperado", "hesitou, desconcertado", "argumentou, combativo", "sorriu, benigno", "abanou a cabeça, frustrado", "gritou, escandalizado", "mordeu o lábio, hesitante", "abriu a boca, estupefacto". Este leitor contou mais dezassete exemplos antes de desfalecer, extenuado).


Exibindo todos os defeitos e nenhuma das virtudes do género a que tenta pertencer, "Fúria Divina" é uma guerra santa sem tréguas, na qual os únicos mártires são os leitores.

Rogério Casanova»

2 comentários:

TheOldMan disse...

Estou a ver... Assim uma espécie de Inês Pedrosa.

"A Rainha do Cliché" mas no masculino.

;-)

francisco disse...

a Pedrez, a galinha brilhante.

;)