É sabido que o meio ferroviário revolucionou o quotidiano das populações, e que ao receio inicial provocado por aquelas soberbas e ruidosas locomotivas seguiu-se o enorme fascínio pela sua potência e velocidade. O comboio assumiu rapidamente um lugar no imaginário das crianças e dos adultos substituindo as carruagens e os cavalos de outrora. Por toda a parte onde surgiu, o comboio integrou-se no quotidiano dos povos encurtando grandemente as distâncias e reduzindo o tamanho do mundo. Em Portugal não foi diferente, a ferrovia uniu as comunidades e levou o progresso a todos os distritos do país. Durante mais de um século o comboio assumiu-se como símbolo de evolução e os caminhos-de-ferro como paradigma da organização e da mecanização.
Após muitas vicissitudes, o comboio chegou finalmente a Lagos no dia 30 de Julho de 1922. Dessas vicissitudes nos fala José Carlos Vasques, venerável concidadão a quem a comunidade lacobrigense muito deve no âmbito da manutenção e da recuperação da sua memória colectiva. Nascido dois anos antes da chegada do comboio a Lagos, dele transcrevemos elucidativas palavras sobre a história da ferrovia em Lagos: «Já desde 1912 que o farmacêutico Ribeiro Lopes, Presidente da Câmara, lançara o imposto ad valorem de 1%, sobre as mercadorias exportadas do concelho, justamente para constituir o fundo de garantia sobre o empréstimo da Caixa Geral de Depósitos para concretização do tão almejado projecto ferroviário. Trata-se de um dos gritantes casos da política nacional, em que uma edilidade se substitui à administração central para implantar o caminho-de-ferro. O tal empréstimo só foi extinto em 1960. O traçado final da linha pela Meia Praia, segundo se supõe, foi uma alteração ao plano inicial. A estação esteve inicialmente prevista para o Rossio de S. João, atendendo à continuação do caminho-de-ferro com destino a Sagres. O Estado não quis suportar qualquer verba, deixando esse ónus à Câmara Municipal. Dado tratar-se de uma estação terminal verificaram-se outras obras para além da estação e da via: teve que se proceder a um aterro para criação das infra-estruturas e, para isso, foram deslocados milhares de metros cúbicos de areia provenientes das dunas da meia praia; o recinto de manobras do material circulante; casa para os ferroviários; e a necessária rotunda para mudar o sentido do material circulante (mais tarde é que a CP instalaria a placa giratória, ainda existente no barracão isolado). Todas estas estruturas foram edificadas sobre o sapal, com consequentes custos de aterro e terraplanagem.»
Da inauguração, propriamente dita, deram conta os jornais coevos, como a Ilustração Portuguesa, de cobertura nacional, em cujas páginas se lia em Agosto desse ano: «Inaugurou-se o ramal do caminho-de-ferro de Portimão a Lagos. Finalmente, a antiga e laboriosa cidade algarvia, debruçada graciosamente na mais linda baía que possuímos, viu realizada a sua maior aspiração de tantos anos. Por isso a festa da inauguração atingiu um entusiasmo delirante. Uma nova e próspera fase de vida comercial e industrial vai abrir-se para a florescente Lacobriga dos romanos, florescente nesse tempo pela agricultura, pela indústria e pelas grandes pescarias. Ligada com o resto do país pelo caminho-de-ferro, Lagos reconquistará dentro em poucos anos o honroso título de notável que lhe foi justamente outorgado num alvará de 1535.»
Acerca das transformações operadas na vida da cidade, e para além do transporte de pessoas que já de si constituiu um progresso incontestável, o pescado que demandava o porto de Lagos passou a ser expedido para Lisboa e outros destinos através do comboio, onde seguia encaixotado e acondicionado em gelo. Para além destes aspectos pragmáticos de cariz económico e social, o comboio também teve impacto no sentimento dos lacobrigenses. Hoje, como então, ainda se vive a magia do cumprimento que o comboio ou a automotora dispensam à cidade anunciando a sua chegada através do longo apito que, no nosso imaginário, mescla os tempos da locomotiva a vapor com o da transitória máquina diesel-eléctrica; especialmente nos dias em que o vento Levante empurra o sinal sonoro para a urbe disposta em anfiteatro, espectadora privilegiada desse nostálgico acontecimento que é a chegada do comboio.
Voltando à História damos conta de que as sinuosas e adversas vicissitudes ligadas à implementação do meio ferroviário em Lagos não terminaram com a construção da Estação e a chegada do comboio, e disso nos dá conta a mesma Ilustração Portuguesa que, em edição de Fevereiro de 1923, denunciava - num artigo intitulado “Uma Magnífica Estação de Caminho-de-Ferro Servida por uma Ponte Provisória de Madeira Tosca” -, que as obras ainda não estavam concluídas: «Possui Lagos a melhor estação da linha férrea do Sul – uma estação quasi luxuosa – e, contudo, a dar-lhe acesso, continua em serviço uma velha ponte de madeira tosca, construída quando do tempo da construção do ramal, evidentemente a título provisório, mas a que a nossa inércia e desmazelo deu foros de definitiva. Torna ainda mais imperdoável esse desleixo a circunstância de já existirem montados os encontros de alvenaria da nova ponte – e isto há uma boa meia dúzia de anos! Para quê mais comentários? O contraste que ressalta das duas gravuras que publicamos fala por si!…»
Como referiu José Carlos Vasques, antes da instalação da ponte giratória existiu um enorme círculo de carris que permitia a manobra de virar a locomotiva no sentido inverso, pois que Lagos é fim de linha. Imperativos técnicos de manutenção do material circulante, a dificuldade da manobra e a própria natureza do terreno arenoso, bem como a necessidade de redução do espaço ocupado, terão ditado a sua substituição por uma ponte giratória, tal como podemos ver hoje junto às cocheiras (garagem de locomotivas e carruagens).
Cocheiras e placa giratória |
Se, pela sua peculiaridade, a viagem de comboio suscita sensações especiais também é verdade que muitos dos percursos do caminho-de-ferro, atravessando paisagens de deslumbrante beleza natural, ampliam essas sensações tornando uma simples viagem numa experiência gratificante que frequentemente desejamos repetir. Assim é na aproximação ao destino final ocidental da Linha do Sul. Nos três quilómetros de praia percorridos pelo comboio, o passageiro obriga-se a vir à janela, sobretudo quando chega de madrugada. E da janelinha de guilhotina invertida, ao som ritmado e inconfundível das rodas férreas nas junções dos carris, extasia-se perante a paisagem do sol reflectido nas águas da baía e da sua luz que reverbera as cores e matizes das rochas a poente, desse cenário deslumbrante que é a nossa Costa D’Oiro.
Infelizmente, em Portugal, tal como em muitos outros pontos do globo, o meio ferroviário foi perdendo terreno para os transportes rodoviários, numa opção pouco inteligente e seguramente mais lesiva para o ambiente, e para a comodidade e a economia das populações. Antes de Abril de 1974 chegou a equacionar-se a modernização da via-férrea do Algarve, alargando-a a via dupla electrificada. Tais projectos não passaram de expectativas goradas, devoradas por esse imperativo de remeter para novas vias de betão e alcatrão o transporte colectivo de pessoas e bens. Hoje, o comboio ainda chega a Lagos. Que assim se mantenha por muitos anos. Talvez um dia veja reconhecida a sua importância e o seu real valor; e que dessa constatação surja um verdadeiro renascimento do meio ferroviário que explore as suas enormes potencialidades.
"...a máquina, escusado será dizer, das mais primitivas (parecia um enorme garrafão) não tinha força suficiente para puxar todas as carruagens que lhe atrelaram e fora-as largando pelo caminho. Algumas, de convidados, nos Olivais. O vagon do Cardeal Patriarca e do Cabido ficou em Sacavém; mais um recheado de ilustres personalidades ficou ao desamparo na Póvoa. Creio que, se o Carregado fosse mais longe, chegava a máquina sozinha ou só parte dela."
in Caminhos de Ferro Portugueses - Eng. Francisco de Quadros Abragão.
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