Carta a uma Geração Errada
«Caros João Cravinho, Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix,
Ferro Rodrigues, Sevinate Pinto, Vitor Martins e demais subscritores do
manifesto pela reestruturação da divida publica: Que tal deixarem para a
geração seguinte a tarefa de resolver os problemas gravíssimos que vocês lhes
deixaram? É que as vossas propostas já não resolvem, só agravam os problemas.
Que tal darem lugar aos mais novos?
Vi, ouvi, li, e não queria acreditar. 70 das mais
importantes personalidades do país, parte substancial da nossa elite, veio
propor que se diga aos credores internacionais o seguinte:
– Desculpem lá qualquer coisinha mas nós não conseguimos
pagar tudo o que vos devemos, não conseguimos sequer cumprir as condições que
nós próprios assinámos, tanto em juros como em prazos de amortizações!
Permitam-me uma pergunta simples e directa: Vocês pensaram
bem no momento e nas consequências da vossa proposta, feita a menos de dois
meses do anúncio do modo de saída do programa de assistência internacional?
Imaginaram que, se os investidores internacionais levarem
mesmo a sério a vossa proposta, poderão começar a duvidar da capacidade e da
vontade de Portugal em honrar os seus compromissos e poderão voltar a exigir já
nos próximos dias um prémio de risco muito mais elevado pela compra de nova
dívida e pela posse das obrigações que já detêm?
Conseguem perceber que, na hipótese absurda de o Governo
pedir agora uma reestruturação da nossa dívida, os juros no mercado secundário
iriam aumentar imediatamente e deitar a perder mais de três anos de austeridade
necessária e incontornável para recuperar a confiança dos investidores,
obrigando, isso sim, a um novo programa de resgate e ainda a mais austeridade,
precisamente aquilo que vocês dizem querer evitar?
Conseguem perceber que, mesmo na hipótese absurda de os
credores oficiais internacionais FMI, BCE e Comissão Europeia aceitarem a
proposta, só o fariam contra a aceitação de uma ainda mais dura
condicionalidade, ainda mais austeridade?
Conseguem perceber que os credores externos, nomeadamente
os alemães, iriam imediatamente responder – Porque é que não começam por vocês
próprios?
Os vossos bancos não têm mais de 25 por cento da vossa
dívida pública nos seus balanços, mais de 40 mil milhões de euros, e o vosso
Fundo de Capitalização da Segurança Social não tem mais de 8 mil milhões de
euros de obrigações do Tesouro? Peçam-lhes um perdão parcial de capital e de
juros.
Conseguem perceber que, neste caso, os bancos portugueses
ficariam à beira da falência e a Segurança Social ficaria descapitalizada?
Nenhum de vós, subscritores do manifesto pela
reestruturação da dívida pública, faria tal proposta se fosse Ministro das
Finanças. E sobretudo não a faria neste delicadíssimo momento da vida
financeira do país. Mesmo sendo uma proposta feita por cidadãos livres e
independentes, pela sua projecção social poderá ter impacto externo e levar a
uma degradação da percepção dos investidores, pela qual vos devemos
responsabilizar desde já. Se isso acontecer, digo-vos que como cidadão contribuinte
vou exigir publicamente que reparem o dano causado ao Estado.
Conseguem perceber porque é que o partido que pode ser
Governo em breve, liderado por António José Seguro, reagiu dizendo apenas que
se deve garantir uma gestão responsável da dívida pública e nunca falando de
reestruturação?
Pergunto-vos também se não sabem que uma reestruturação de
dívida pública não se pede, nunca se anuncia publicamente. Se é preciso
fazer-se, faz-se. Discretamente, nos sóbrios gabinetes da alta finança
internacional.
Aliás, vocês não sabem que Portugal já fez e continua a
fazer uma reestruturação discreta da nossa dívida pública? Vitor Gaspar como
ministro das Finanças e Maria Luis Albuquerque como Secretária de Estado do
Tesouro negociaram com o BCE e a Comissão Europeia uma baixa das taxas de juro
do dinheiro da assistência, de cerca de 5 por cento para 3,5 por cento.
Negociaram a redistribuição das maturidades de 52 mil milhões de euros dos respectivos
créditos para o período entre 2022 e 2035, quando os pagamentos estavam
previstos para os anos entre 2015 e 2022, esse sim um calendário que era
insustentável.
Ao mesmo tempo, juntamente com o IGCP dirigido por João
Moreira Rato, negociaram com os credores privados Ofertas Públicas de Troca que
consistem basicamente em convencê-los a receber o dinheiro mais tarde.
A isto chama-se um “light restructuring”, uma
reestruturação suave e discreta da nossa dívida, que continua a ser feita mas
nunca pode ser anunciada ao mundo como uma declaração de incapacidade de
pagarmos as nossas responsabilidades.
Sabem que em consequência destas iniciativas, e sobretudo
da correcção dos défices do Estado, dos cortes de despesa pública, da correcção
das contas externas do país que já vai em quase 3 por cento do PIB, quase cinco
mil milhões de euros de saldo positivo, os credores internacionais voltaram a
acreditar em nós. De
tal forma que os juros das obrigações do Tesouro a 10 anos no mercado
secundário já estão abaixo dos 4,5 por cento.
Para os mais distraídos, este é o valor médio dos juros a
pagar pela República desde que aderimos ao Euro em 1999. O valor factual já
está abaixo. Basta consultar a série longa das Estatísticas do Banco de
Portugal.
E sim, Eng. João Cravinho, é bom lembrar-lhe que a 1 de Janeiro
de 1999, a
taxa das obrigações a 10 anos estava nos 3,9 por cento mas quando o seu Governo
saiu, em Outubro desse ano, já estava nos 5,5 por cento, bem acima do valor actual.
É bom lembra-lhe que fazia parte de um Governo que decidiu
a candidatura ao Euro 2004 com 10 estádios novos, quando a UEFA exigia só seis.
E que decidiu lançar os ruinosos projectos de SCUT, sem custos para o
utilizador, afinal tão caros para os contribuintes. O resultado aí está, a
pesar na nossa dívida pública.
É bom lembrar aos subscritores do manifesto pela
reestruturação da dívida pública que muitos de vós participaram nos Conselhos
de Ministros que aumentaram objectivamente a dívida pública directa e indirecta.
Foram co-responsáveis pela passagem dos cheques da nossa
desgraça actual. Negócios de Estado ruinosos, negócios com privados que afinal
eram da responsabilidade do contribuinte. O resultado aí está, a pesar directa
e indirectamente nos nossos bolsos.
Sim, todos sabemos que quem pôs o acelerador da dívida
pública no máximo foi José Sócrates, Teixeira dos Santos, Costa Pina, Mário
Lino, Paulo Campos, Maria de Lurdes Rodrigues com as suas escolas de luxo que
foram uma festa para a arquitectura e agora queimam as nossas finanças.
Mas em geral, todos foram responsáveis pela maneira errada
de fazer política, de fazer negócios sem mercado, de misturar política com
negócios, de garantir rendas para alguns em prejuízo de todos.
Sabem perfeitamente que em todas as crises de finanças
públicas a única saída foi o Estado parar de fazer nova dívida e começar a pagar
a que tinha sido acumulada. A única saída foi a austeridade.
Com o vosso manifesto, o que pretendem? Voltar a fazer
negócios de Estado como até aqui? Voltar a um modelo de gastos públicos
ruinosos com o dinheiro dos outros?
Porque é que em vez de dizerem que a dívida é impagável,
agravando ainda mais a vida financeira das gerações seguintes, não ajudam a
resolver os gravíssimos problemas que a economia e o Estado enfrentam e que o
Governo não tem coragem nem vontade de resolver ao contrário do que diz aos
portugueses?
Porque é que não contribuem para que se faça uma reforma
profunda do Estado, no qual se continuam a gastar recursos que não temos para
produzir bens e serviços inúteis, ou para muitos departamentos públicos não
produzirem nada e ainda por cima impedirem os empresários de investir com
burocracias economicamente criminosas?
Porque não canalizam as vossas energias para ajudar a uma
mudança profunda de uma economia que protege setores inteiros da verdadeira
concorrência prejudicando as famílias, as PME, as empresas exportadoras e todos
os que querem produzir para substituir importações em condições de igualdade
com outros empresários europeus?
Porque não combatem as práticas de uma banca que cobra os
spreads e as comissões mais caros da Europa?
Um sector eléctrico que recebe demais para não produzir electricidade
na produção clássica e para produzir em regime especial altamente subsidiado à
custa de todos nós?
Um sector das telecomunicações que, apesar de parcialmente
concorrencial, ainda cobra 20, 30 e até 40 por cento acima da média europeia em
certos pacotes de serviços?
Porque não ajudam a cortar a sério nas rendas das PPP e da
Energia? Nos autênticos passadouros de dinheiros públicos que são as listas de
subvenções do Estado e de isenções fiscais a tudo o que é Fundações e
Associações, algumas bem duvidosas?
Acham que tudo está bem nestes sectores? Ou será que
alguns de vós beneficiam directa ou indirectamente com a velha maneira de fazer
negócios em Portugal e não querem mudar de atitude?
Estará a vossa iniciativa relacionada com alguns cortes
nas vossas generosas pensões?
Pois no meu caso eu já estou a pagar IRS a 45 por cento,
mais uma sobretaxa de 3,5 por cento, mais 11 por cento de Segurança Social, o
que eleva o meu contributo para 59,5 por cento nominais e não me estou a
queixar.
Sabem, a minha reforma já foi mais cortada que a vossa.
Quando comecei a trabalhar, tinha uma expectativa de receber a primeira pensão
no valor de mais de 90 por cento do último salário. Agora tenho uma certeza: a minha
primeira pensão vai ser de 55 por cento do último salário.
E não me estou a queixar, todos temos de contribuir.
Caros subscritores do Manifesto para a reestruturação da
dívida pública, desculpem a franqueza: a vossa geração está errada. Não agravem
ainda mais os problemas que deixaram para a geração seguinte. Façam um favor ao
país – não criem mais problemas. Deixem os mais novos trabalhar.»
Os 9 erros do manifesto dos 70
(João Vieira Pereira - Expresso)
(João Vieira Pereira - Expresso)
«A melhoria das condições de pagamento da nossa dívida
pública foi algo que já defendi em vários artigos. Por isso não sou contra
parte do manifesto hoje apresentado, mas o documento tem 9 erros de palmatória
que vale a pena indicar.
1. O uso da palavra
reestruturação é o primeiro erro, colossal por sinal.
Basta referir este termo para os investidores fugirem de
tal modo que obrigaria a um novo resgate. O manifesto fala ainda num
"processo eficaz de reestruturação" como se este processo pudesse ser
feito de forma harmoniosa. Não existem reestruturações limpas. São todas sujas e
traumáticas.
O manifesto fala de "saldos orçamentais primários
verdadeiramente excepcionais insusceptíveis de imposição prolongada".
Existe uma perpetuação da ideia de que manter um Estado com contas públicas
positivas é negativo. É negativo para quem?
3. "Deixemo-nos
de inconsequentes optimismos. Sem a reestruturação da dívida pública não será
possível libertar e canalizar recursos minimamente suficientes a favor do
crescimento".
Além dos últimos dados da economia desmentirem esta
afirmação, o manifesto parte do princípio, a meu ver errado, de que deve ser o
estado o motor da economia.
4. Sem
reestruturação a única via é a da austeridade.
E o crescimento? E todos aqueles, (muitos assinaram este
documento), que sempre defenderam que é o crescimento e não a austeridade a
saída para esta crise. Onde está essa ideia?
5. Sem
reestruturação a banca irá continuar a restringir o acesso ao crédito o que
impossibilitará o regresso do investimento.
E o que fará a reestruturação à banca nacional, que ainda
tem divida pública portuguesa em carteira. Neste caso um cenário de nacionalização
de toda a banca em Portugal não é de menosprezar. Como contribuinte não quero.
6. Portugal não
conseguirá por si só superar a falta dos instrumentos que lhe estão interditos
por força da perda da soberania monetária e cambial.
70 personalidades portuguesas dizem hoje que a entrada no
euro foi um erro. Onde estavam e o que diziam eles há 15 anos?
7. Abaixamento
das taxas de juro.
Temos hoje das taxas de juro mais baixas da nossa história
recente. Em 2000 a
taxa de juro implícita da nossa divida era de 5,6%. Hoje é de 3,9%. O problema
é o stock de dívida não a taxa.
Esta ideia é incompatível com a da reestruturação incidir,
em regra, sobre dívida acima de 60% do PIB. A divida do sector oficial não
chega. Oficialmente são apenas 76 mil milhões de euros. O FMI nunca aceitaria,
porque não pode, pelo que na prática estamos a falar de 55 mil milhões, mais ou
menos 30% do PIB. Se a nossa dívida está no 129% é óbvio que é necessário
atacar a dívida na posse de investidores privados.
9. Reestruturação
vai gerar responsabilidade.
Talvez o maior erro de todos. O manifesto diz que "a
reestruturação adequada da dívida abrirá a oportunidade impar, geradora de
responsabilidade colectiva". A mesma responsabilidade com que no passado
alguns dos signatários nos conduziram para este cenário. Existem três
ex-ministros das finanças na lista dos 70 e dois deles foram ministros na
primeira década do século. Responsabilidade colectiva seria pagar o que devemos
e não tentar evitar cortes hoje passando-os para as gerações futuras.»
Sem comentários:
Enviar um comentário