A solução para o paradoxo da Democracia Despótica



Concretizados os receios de Tocqueville quanto ao despotismo da democracia, anunciados em 1840, pergunto: qual é a admiração em construirmos tais paradoxos? Então não somos seres paradoxais?! Entretanto, leia-se o que ele escreve e comparemos com aquilo que é a nossa democracia actual.

Excerto deQue espécie de despotismo as nações democráticas devem temer” 
(traduzido do brasileiro para português)
De:
TOCQUEVILLE, Alexis - A DEMOCRACIA NA AMÉRICA. Livro II (QUARTA PARTE – Cap. VI). São Paulo: Martins Fontes, 2004.


«Os imperadores possuíam, é verdade, um poder imenso e sem contrapeso, que lhes permitia dedicar-se livremente à bizarria das suas inclinações e aplicar-se a satisfazê-las com a força inteira do Estado. Sucedeu-lhes com frequência abusar desse poder para tirar arbitrariamente a um cidadão os seus bens ou a sua vida: a tirania deles pesava prodigiosamente sobre alguns, mas não se estendia a um grande número; fixava-se em alguns objectos principais e desprezava o resto; era violenta e restrita. Parece que, se o despotismo se estabelecesse entre as nações democráticas dos nossos dias teria outras características: seria mais extenso e mais doce, e degradaria os homens sem os atormentar.

Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo: vejo uma multidão incalculável de homens semelhantes e iguais que giram sem repouso em torno de si mesmos para conseguir pequenos e vulgares prazeres com que enchem a alma. Cada um deles, retirado à parte, è como que alheio ao destino de todos os outros: os seus filhos e os seus amigos são, para ele, toda a espécie humana; quanto ao resto dos concidadãos, está ao lado deles mas não os vê; toca-os mas não os sente – cada um só existe em si mesmo e para si mesmo e, se ainda lhe resta uma família, podemos dizer pelo menos que pátria ele não tem.

Acima desses ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega, sozinho, de assegurar o proveito e zelar pela sorte deles. É absoluto, detalhado, regular, previdente e doce. Semelhante ao poder paterno se, como este, tivesse por objeto preparar os homens para a idade viril; mas, ao contrário, procura tão-somente fixa-los de maneira irreversível na infância; ele gosta de que os cidadãos se regozijem, contanto que não pensem em outra coisa que regozijar-se. Trabalha de bom grado para a felicidade deles; mas quer ser o único agente e o único árbitro dela; prove a segurança deles, prevê e garante as suas necessidades, facilita os seus prazeres, conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria, regra as suas sucessões, divide as suas heranças; porque não lhes pode tirar inteiramente o incómodo de pensar e a dificuldade de viver?

Depois de ter colhido, assim, em suas mãos poderosas, cada individuo e de o ter moldado a seu gosto, o soberano estende seus braços sobre toda a sociedade; cobre a superfície desta com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não poderiam abrir caminho para ultrapassar a multidão; não quebra as vontades, mas amolece-as, submete-as e dirige-as; raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, desvigora, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos e industriosos, de que o governo é o pastor.

Os nossos contemporâneos são incessantemente trabalhados por duas paixões inimigas: sentem a necessidade de ser conduzidos e a vontade de permanecer livres. Não podendo destruir nem um nem outro desses instintos contrários, esforçam- se para satisfazer ambos ao mesmo tempo. Imaginam um poder único, tutelar, omnipotente, mas eleito pelos cidadãos. Combinam a centralização com a soberania do povo, o que lhes proporciona uma certa trégua. Consolam-se por estar tutelados pensando terem eles próprios escolhido os seus tutores. Cada individuo suporta que o prendam, porque vê que não é um homem nem uma classe, mas o próprio povo que segura a porta da cadeia. Nesse sistema, os cidadãos saem um momento da dependência para indicar o seu senhor e voltam a entrar nela.

Há nos nossos dias muita gente que se acomoda facilmente com essa espécie de compromisso entre o despotismo administrativo e a soberania do povo e que pensa ter garantido a liberdade dos indivíduos quando a entregam ao poder nacional. Isso não me basta.

A natureza do senhor importa-me muito menos do que a obediência. Não negarei porém que tal constituição não seja infinitamente preferível a que, depois de ter concentrado todos os poderes, os depositaria nas mãos de um homem ou de um corpo irresponsável. De todas as diferentes formas que o despotismo democrático poderia assumir, esta seria com certeza a pior.

Quando o soberano é electivo ou vigiado de perto por uma legislatura realmente electiva e independente, a opressão que ele faz os indivíduos suportar às vezes é maior; mas è sempre menos degradante porque cada cidadão, quando o constrangem e o reduzem à impotência, ainda pode imaginar que, ao obedecer, está a submeter-se a si mesmo e que é a uma das suas vontades que sacrifica todas as outras.

Eu tenderia a crer a liberdade menos necessária nas grandes coisas do que nas pequenas, se pensasse que se pudesse ter uma garantida sem possuir a outra. A sujeição nos pequenos assuntos manifesta-se todos os dias e faz-se sentir indistintamente em todos os cidadãos. Ela não os desespera, mas contraria-os sem cessar e leva-os a renunciar ao uso da sua vontade. Ela extingue pouco a pouco o espírito deles e esmorece a sua alma, ao passo que a obediência, que só é devida num número de circunstâncias gravíssimas, mas raras, só mostra a servidão de longe em longe e só a faz pesar sobre certos homens. É inútil encarregar esses mesmos cidadãos, que foram tornados tão dependentes do poder central, de escolher de vez em quando os representantes desse poder; esse uso tão importante, mas tão curto e tão raro, do seu livre-arbítrio, não impedirá que percam pouco a pouco a faculdade de pensar, de sentir e de agir por si mesmos e que caiam assim gradualmente abaixo do nível da humanidade. Acrescento que logo se tornarão incapazes de exercer o grande e único privilégio que lhes resta.

Os povos democráticos, que introduziram a liberdade na esfera política ao mesmo tempo que aumentavam o despotismo na esfera administrativa, foram levados a singularidades bem estranhas. Se é para conduzir os pequenos negócios em que o simples bom senso pode bastar, estimam que os cidadãos são incapazes de fazê-lo; se se trata do governo de todo o Estado, confiam a esses cidadãos imensas prerrogativas; fazem deles, alternadamente, joguetes do soberano e seus amos, mais que reis e menos que homens. Depois de ter esgotado todos os diferentes sistemas de eleição, sem encontrar um que lhes convenha, espantam-se e continuam a procurar - como se o mal que notam não decorresse muito mais da constituição do país do que da constituição do corpo eleitoral. De facto, é difícil conceber como homens que renunciaram inteiramente ao hábito de se dirigirem a si mesmos poderiam ter êxito em escolher bem aqueles que devem conduzi-los; e não é possível acreditar que um governo liberal, enérgico e sábio possa sair um dia dos sufrágios de um povo de servidores.

Uma constituição que fosse republicana de cabeça e ultra-monárquica em todas as outras partes, sempre me pareceu um monstro efémero. Os vícios dos governantes e a imbecilidade dos governados não tardariam a provocar a sua ruína; e o povo, cansado de seus representantes e de si mesmo, criaria instituições mais livres ou voltaria a deitar-se aos pés de um só amo.»

a solução: o lobo com cornos


Sem comentários: