Para memória futura




Apresentação do livro Poesia Acidental, de Francisco Castelo, na Biblioteca Municipal Dr. Júlio Dantas, a 18 de Junho de 2022.

Disse então o autor, com aquela parcimónia de quem tem mais dúvidas do que certezas, e ainda assim, fala:

Não sou escritor — sou leitor. Apenas isto. Um leitor que tropeçou na escrita como quem, por tédio ou curiosidade, se põe a jardinar numa tarde de domingo. E se não levantamos sobrancelhas quando um agricultor se dedica, ao fim-de-semana, à pesca da truta, também não devíamos franzir o sobrolho quando um leitor se atreve a escrever. E até a publicar, veja-se o desplante.

Não quero ser escritor. Não ambiciono prémios, festivais literários nem residências artísticas em retiros de ermitas nórdicos com wi-fi limitado. Quero apenas escrever melhor. Melhor — essa quimera. Aproximar-me, humildemente, daqueles que me habitam as estantes: Helder Macedo, Gonçalo M. Tavares, Dino Buzzati, Baudelaire… e uma constelação de outros cuja sintaxe me inspira e cuja mestria me humilha. A forma, sim, é o que me move: a correcção da frase, a fluidez do raciocínio, a pontuação afinada como relógio suíço. Livrar-me das gorduras do estilo, das repetições, do eco literário desnecessário. Escrever com cortes limpos e cirúrgicos. Sem anestesia.

E escrevo. Para afiar a ferramenta, para marcar um patamar mínimo abaixo do qual — juro — não voltarei a descer. Também para fixar ideias antes que se evaporem, e ainda, confesso, por puro narcisismo: há um certo enlevo, quase perverso, na releitura do que escrevi e que, por obra e graça da minha fraca memória, me surpreende como se fosse de outro. Narciso, mas com revisão ortográfica.

Contudo, ao contrário de alguns que se apregoam possuídos por espíritos criadores ou arrastados pelas personagens para os meandros do enredo, comigo nada disso acontece. Nenhuma epifania. Nenhum ditado automático vindo das alturas. Tudo o que escrevo, está cá dentro — embora boa parte do que considero “meu” não passe de ecos, reflexos, ruídos bem arrumados do mundo que me rodeia. É natural. Somos mais antena do que emissor.

A memória, essa sim, tem destas fidelidades. Recordo, por exemplo, que em 23 de Abril de 2008 — neste mesmo lugar — se apresentou um livro de leitura obrigatória: Fonte Salgada, de Rogério Silva, editado pela Gente Singular. Uma preciosidade que, além de muito bem escrito, preserva um vocabulário algarvio em risco de extinção, até mesmo na oralidade. Desse momento, retenho uma expressão saborosa: “patética emotividade”. Assim qualificava o autor o ridículo sublime das paixões amorosas tardias. Aquelas que surgem sem aviso, frutos de impulsos eléctricos inexplicáveis ou alquimias internas que nenhum cardiologista ou poeta sabe descrever com rigor.

Foi exactamente um desses episódios — biográfico ou inventado, que interessa? — que desencadeou em mim a erupção de uma poética que designo, sem pudor, de kitschunga. Uma espécie de pimbalhada lírica, de fantasia rematada à faca de discoteca emocional. Versos que se espraiam em lamentos, caricaturas e ternuras absurdas, num exercício deliberado de troça ao lirismo que nunca compreendi… e que, talvez — quem sabe? — nem tenha verdadeiramente nada para se compreender.

Limitei-me, pois, a escrever estes poemas entre 2005 e 2009, mentindo com a mais profunda sinceridade, porque — e aqui está o segredo que titula a coisa — em mim, a poesia é acidental.

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