Tanto poeta e ninguém os ouve

Tanto poeta e ninguém os ouve
por Ana Cristina Pereira Leonardo

Tendemos a esquecer que o racismo já foi teoria que se pretendeu científica. E tempos houve em que as mulheres eram talvez, como os bichos, desprovidas de alma. A obra publicada entre 1853 e 1855 pelo Conde de Gobineau, “Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas”, fez escola nos salões europeus mais respeitáveis (sobretudo germanófilos) até acabar por chegar às mãos de Hitler que do seu título retirou matéria inspiradora, embora, paradoxalmente, não se possa dizer que o “Ensaio...” seja especialmente anti-semita ou nutra qualquer fé descabelada no papel dos arianos. Quanto às mulheres, já Paulo de Tarso as mandava estar caladas no culto e ainda agora o tão progressista Papa Francisco reafirmava que aquelas que quisessem ser ordenadas padres, melhor seria que fossem pregar para outras missas. O apartheid acabou na África do Sul em 1994 – sublinho, 1994. A homossexualidade foi doença encartada até 1990 – sublinho, 1990 – quando a Organização Mundial de Saúde a retirou finalmente da lista de doenças mentais. O casamento entre pessoas do mesmo sexo é reconhecido numa vintena de países e contam-se no mundo 193 países – sublinho, 193 – com assento na ONU (no início do século XX existiam à volta de 60 – o que significa, entre outras coisas, que os nacionalismos triplicaram em pouco mais de 100 anos). Em cerca de 50 deles a pena de morte continua em vigor e em quase uma vintena de outros não foi abolida da lei apesar de não ser aplicada há tempo considerável (alguns desses países fazem risivelmente parte do Conselho de Direitos Humanos da ONU). Entretanto, os conflitos armados adquiriram a peculiar particularidade de contabilizar cada vez mais vítimas civis: segundo o International Institute for Strategic Studies, enquanto na I Guerra Mundial estas representaram menos de 5% dos mortos, 75% é hoje a percentagem que cabe aos não combatentes (feridos incluídos). Quanto a refugiados e deslocados de guerra, a Agência da ONU para os Refugiados calculou um total de 65,3 milhões em 2015, uma em cada 113 pessoas do planeta, 51% crianças. No mesmo ano, a Organização Internacional do Trabalhou somou 197,1 milhões de desempregados, 27 milhões acima dos níveis anteriores à crise (para 2016 previu um acréscimo de 2,3 milhões).
“O medo vai ter tudo” escreveu Alexandre O’Neill na década de 60 do século passado. E antes dele T. S. Eliot: “Vai, vai, vai, disse a ave / O género humano não pode suportar muita realidade”. E ambos há muito mortos, Donald Trump foi eleito presidente da América.

Retirado do Facebook: porque nenhuma rede social é integralmente lixo ou coio de incultos e burgessos - embora por lá façam escola como acertadamente denunciou Umberto Eco

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