Celebrar a Restauração da Independência
- Ou a vontade de um projecto colectivo -
A 19 de Março de 1604 nascia em
Vila Viçosa D. João, filho de D. Teodósio (VII Duque de Bragança) e de D. Ana
de Velasco y Giron, e neto de D. Catarina de Bragança, uma das herdeiras
legítimas ao trono, em grau de igualdade com Filipe II de Espanha. No entanto
foi este monarca espanhol que veio a tornar-se rei de Portugal. Um rei com duas
coroas.
As promessas de Filipe I nas
Cortes de Tomar e a riqueza do reino espanhol granjearam vasto apoio à
instauração da união ibérica. Porém, tudo mudou no início do século XVII com a
crise que afectou a Espanha sobretudo devido à sua envolvência na Guerra dos
Trinta Anos, que implicou a mobilização dos exércitos portugueses e o lançamento
de novos impostos em território nacional.
Com Filipe III de Portugal, o
país tornou-se numa mera província espanhola, com o monarca residindo
permanentemente em Espanha, e a regência entregue a D. Margarida, Duquesa de
Mântua, auxiliada por Miguel de Vasconcelos, o Escrivão da Fazenda do Reino.
Este desrespeito pelas promessas
feitas nas Cortes de Tomar conduziu ao crescente descontentamento português,
com vários levantamentos populares e revoltas, como a de 1637 em Évora (Revolta
do Manuelinho), que se espalhou por outros pontos do país, mas prontamente
abafada pelos militares espanhóis.
Porém, o descontentamento já era
generalizado, visto que o país não estava a ser governado segundo os seus
interesses e as colónias portuguesas eram constantemente vítimas de ataques de ingleses
e holandeses. Desta forma foi ganhando consistência o desejo de ver restaurada
a independência e, nesse ambiente, e sobretudo a partir de 1636, D. João
começou a ser encarado como a figura adequada para substituir Filipe III no
trono português.
Em 1637, esse desejo de
restauração da independência ganhou mais força no seio da nobreza, do clero e
da burguesia, estendendo-se até ao povo, e em Novembro de 1640 um grupo de
conjurados planeou a revolução. João Pinto Ribeiro, representando os
conjurados, dirigiu-se a casa de D. João para acertar os preparativos da
revolução mas, inicialmente, D. João recusou. E foi a sua esposa, Luísa de
Gusmão, que o convenceu que seria melhor morrer reinando do que servindo,
atribuindo-se-lhe a frase “ Melhor ser Rainha por um dia, do que duquesa
toda a vida”.
Podemos, pois, dizer que
restauração da independência portuguesa de Dezembro de 1640 foi desencadeada
para superar a crise política decorrente da prepotente e ofensiva governação do
Conde-Duque de Olivares, que impôs medidas que contrariavam as promessas de
autonomia feitas nas Cortes de Tomar de 1581 por Filipe I de Portugal.
Retrato de D. João IV, de autor desconhecido, existente na Torre do Tombo |
A 1 de Dezembro de 1640, em
Lisboa, os revoltosos tomaram o poder e aclamaram D. João, Duque de Bragança,
como rei de Portugal. O golpe de Estado palaciano envolveu cerca de meia
centena de aristocratas portugueses. Este acontecimento foi acompanhado de alguns
assassinatos, designadamente de Miguel de Vasconcelos, o representante da
administração espanhola de Filipe III de Portugal.
No dia 6 de Dezembro D. João
chegou a Lisboa onde foi recebido entusiasticamente pelo povo e pelos
representantes da nobreza e do clero, sendo aclamado solenemente como D. João
IV, rei de Portugal, no dia 15 de Dezembro. Não obstante a restauração de facto ter
ocorrido em 1640, só houve uma restauração de jure nas Cortes de
Lisboa de 1641, pois foi aí que se consagrou a legitimidade dinástica da casa
de Bragança.
Não se pense, porém, que a seguir
tudo foi um mar de rosas. Bem pelo contrário. O Governo de D. João IV nem
sempre contou com o apoio de todos os portugueses, nem mesmo das esferas mais
próximas do poder. A atestar isto verificaram-se conspirações contra o monarca;
a mais perigosa ocorreu menos de um ano depois de ter sido coroado e nela
participaram membros da aristocracia, da burguesia e do alto clero, em consequência
da crise económica que pautou o seu reinado, bem como pelos fracassos da sua diplomacia
europeia.
Empenhado na manutenção da
independência solicitou ajuda militar aos tradicionais inimigos de Espanha mas
tais empreendimentos não só se revelaram infrutíferos como, até, prejudiciais.
A tentativa de assinar um tratado de paz com a Holanda, que granjeasse o seu
apoio militar e diplomático, redundou em fracasso já que os holandeses estavam astutamente
empenhados na conquista de territórios ultramarinos portugueses e só em 1657
anuíram em tal tratado, depois de já terem tomado muitas possessões até então
portuguesas.
A França, que havia prometido
ajuda a Portugal nunca a concretizou e nem permitiu a presença de Portugal nas
negociações de 1648 que estabeleciam o fim da Guerra dos Trinta Anos. Até a
Inglaterra atacou Portugal em 1650 e 1654 e o sequente tratado de paz
revelou-se humilhante e oneroso, mercê da obrigatoriedade de abertura do nosso
império ao tráfico inglês e à entrega dos territórios de Bombaim e Tânger como
dote de D. Catarina, esponsal de Carlos II de Inglaterra. E as adversidades não
ficaram por aqui, até a Santa Sé recusou auxiliar os interesses portugueses, ao
não reconhecer a nossa independência e ao não confirmar os bispos nas dioceses
portuguesas.
De entre os vários e poderosos
reinos europeus da altura apenas a Suécia se dispôs a prestar algum auxílio,
enviando armas, abastecimentos e mercenários, para Portugal enfrentar
militarmente a Espanha. E os custos da guerra com os nossos vizinhos, que
configuravam uma autêntica sangria de fundos, tiveram repercussões a nível
ultramarino, provocando irremediáveis perdas.
No território nacional
continental o principal teatro das operações militares era o Alentejo, de onde
partiam as incursões militares sobre Espanha, assolando aldeias e vilas, e que
só não foram rapidamente contrariadas porque a Espanha ainda se encontrava
profundamente envolvida na Guerra dos Trinta Anos (até 1859), e nos conflitos
na Catalunha. Para além das pequenas batalhas de fronteira ocorreram algumas de
maior monta, como o cerco de Badajoz feito pelas tropas portuguesas, que no
entanto não lograram alcançar a rendição daquela praça, ou o grande confronto
do Montijo em 1644, e o de Elvas em 1659.
D. João IV morre em 1656 e a
regência de D. Luísa de Gusmão prolongou-se por muito tempo, o que deu azo à
ocorrência de um golpe de Estado, em 1661, que colocou o príncipe no trono, golpe
gizado por D. Luís de Vasconcelos e Sousa, Conde de Castelo Melhor, que se tornou
primeiro-ministro e adoptou uma política de vincado reforço do poder central.
Porém, foi no reinado de Afonso
VI que teve lugar a batalha decisiva para a consolidação da independência
portuguesa, a batalha de Montes Claros, ocorrida em 17 de Junho de 1665. Do
lado português um exército de 20.500 homens comandados pelo Marquês de Marialva,
e do lado espanhol um exército de 22.700 homens comandados pelo Marquês de
Caracena. Ao fim de 7 horas de intenso combate os espanhóis deram a batalha como
perdida e retrocederam para lá da fronteira.
Dois anos depois, em 1667, o
Infante D. Pedro, ajudado pelo Duque de Cadaval, lidera um golpe de Estado que
leva à demissão do Conde de Castelo Melhor e à prisão do rei, resultando na sua
abdicação. D. Pedro II é jurado Príncipe Regente nas Cortes de 1668, e é então
firmado o Tratado de Paz com a Espanha, culminando o longo período de conflitos
entre os dois reinos. O Tratado estabelecia a manutenção das fronteiras
portuguesas e das possessões ultramarinas de Portugal, com excepção de Ceuta
que ficaria para os espanhóis.
Impõe-se, agora, retroceder uns séculos
na história de Portugal, para melhor enquadrar o nosso pensamento: Em 1096, o
rei Afonso VI de Leão e Castela deu o governo do Condado Portucalense a Henrique
da Borgonha, juntamente com a sua filha, a Infanta D. Teresa, passando Henrique
a ser Conde de Portucale. D. Henrique governou no sentido de conseguir uma
completa autonomia para o seu condado e efectivamente deixou-o muito mais livre
do que recebera.
Em 1125, com catorze anos de
idade, o seu filho Afonso Henriques, com o apoio da nobreza portuguesa da
época, arma-se a si próprio cavaleiro e enfrenta a sua mãe, D. Teresa, regente
do Condado por morte do rei. Afonso Henriques e os fidalgos portucalenses não
admitem o favoritismo da rainha pelos nobres galegos. A luta desenrola-se em
vários episódios até que em 24 de Junho de 1128 se trava a Batalha de S. Mamede
e D. Teresa é expulsa da terra que dirigira durante 15 anos. Depois de outras
lutas bem-sucedidas contra o seu primo, o rei Afonso VII de Leão e
Castela, finalmente nasce o Reino de Portugal, e a dinastia dos Borgonha, com o
seu primeiro rei, Afonso I de Portugal.
E é nesta enérgica insistência de
luta pela independência que se firma o querer da nação portuguesa que ao longo
da história o repetiu com igual empenho, instituindo a vontade indómita que
fundamenta o seu projecto colectivo e em que se forjou uma identidade de Nação,
Povo e Estado.
Historicamente,
o sentimento anti-espanhol difundiu-se entre os portugueses muito antes do
surgimento de qualquer ideologia iberista. Ao longo de oito séculos os
portugueses fizeram do “perigo espanhol” um elemento do seu nacionalismo. Castela
foi, assim, e desde o início de Portugal, o “Outro”, o vizinho que
devia ser vigiado e, simultaneamente, aquele que desempenhava um papel fundamental na construção da
nossa identidade colectiva: “Na cidade da Guarda mandava-se punir, em finais da
Idade Média, quem chamasse a um vizinho “castelhano”, insulto equiparado ao de “puta”.
Até o aforismo “de Castela, nem bom vento nem bom casamento”, cuja origem se
perde nos inícios da nacionalidade portuguesa, logrou actualizar-se no idêntico
“de Espanha, nem bom vento nem bom casamento”.
Mas,
se a contemporaneidade racional, humanista e universalista, a cooperação actual
entre os dois estados vizinhos, e a integração numa mesma organização de
propósito europeu, remete para o baú da memória aqueles aforismos depreciadores
sobre os nossos vizinhos, as conjunturas económicas podem reavivar essas
resistências a uma aliança cabal, temendo-se ajuizadamente a diluição da
independência de um Portugal engolido pela poderosa Espanha.
Com 878 anos para alguns, ou 838
anos para outros, conforme se tome por referencia a Batalha de Ourique de 1139
ou a bula manifestis probatum de 1179,
Portugal assiste, hoje, a renovadas dinâmicas com vista à independência de
várias nacionalidades europeias (Catalunha, País Basco, Escócia, Lombardia,
etc;), observando paralelamente o reavivar de ideias antigas com vista ao
federalismo ou confederalismo de estados ou nações, e particularmente, naquilo
que mais nos toca, ao Iberismo.
Por mais interessantes que as
ideias de Iberismo possam parecer convém não esquecer que a Espanha manteve
sempre a perspectiva da reunificação ibérica entre as suas principais intenções
políticas, verifique-se a este respeito a actuação espanhola de Afonso XIII de há
100 anos.
«Apesar
das relações entre os dois países terem melhorado durante a contenda europeia,
manteve-se o “litígio ibérico”: a crise em Portugal servia para justificar as
ambições iberistas de Afonso XIII, monarca que até às vésperas da Primeira
Guerra defendeu junto das potências europeias a conveniência e o interesse da
Espanha numa “solução ibérica”. (...) O
regicídio fragilizou a posição externa portuguesa: a Espanha aproveitou a
aproximação à Inglaterra e à França para tentar conseguir uma ascendência sobre
Portugal. Convencido de que a revolução republicana desobrigaria a Inglaterra
de defender Portugal, Afonso XIII não escondia que pensava desde 1908 numa
união ibérica, mais ou menos voluntária.
Em
1911, rebentou nova crise em Marrocos, com soldados franceses a ocuparem Fez e
a Espanha a responder com a ocupação de Larache, Arzila e Alcácer-Quibir.
Crendo que a Espanha se aliara à Alemanha, os responsáveis políticos franceses
buscaram apoio junto da Inglaterra.
Assim,
até meados de 1912, a Espanha, isolada, enfrentou uma situação de tensão com a
França e a Inglaterra por causa de Marrocos e, por conseguinte, o clima
tornou-se pouco favorável para aventuras em Portugal.
No
entanto, na segunda metade de 1912, a Espanha aproximou-se da Entente ao
concluir um novo acordo com a França. Assinado este acordo, as ambições do rei
espanhol tornaram a vir ao de cima. Na visita que fez a Paris em Maio de 1913,
Afonso XIII ofereceu a beligerância espanhola ao lado da França numa possível
guerra europeia, exigindo em troca a anexação de Portugal. (…)Em Fevereiro de
1913, Afonso XIII avisava Arthur Hardinge, embaixador inglês em Lisboa e
anti-republicano, de que a Espanha exigiria o território metropolitano
português caso a Alemanha e a Inglaterra partilhassem as colónias portuguesas».
FERREIRA P.B.R., “Iberismo, hispanismo e os
seus contrários: Portugal e Espanha” págs. 185,186
São assuntos que merecem reflexão
e debate, pois não devemos deixar-nos prender a nenhuma certeza absoluta já que
essas não passam de dogmas. Isto é, se pugnamos pela nossa total independência
enquanto Nação e Estado, podemos e devemos discuti-la, porque da discussão
surgirá, obrigatoriamente, a actualização dos conceitos e das práxis dessa
independência que queremos eternizar. Perigoso, é achar que o assunto não pode
nem deve ser discutido, mantendo-o silenciado até que, um dia, nos surpreenda
um ruidoso facto consumado, permitido pelo laxismo mental e ausência de
conhecimento que a discussão aporta.
Estamos convictos que os
portugueses desejam manter a sua independência com base na vontade que presidiu
à fundação de Portugal e, sobretudo, pela confirmação desse querer repetidamente
declarado ao longo da História. Preterir este fundamento de cunho identitário em
prol da ideia de uma União ou Federação Ibérica, ou outra qualquer fórmula que
dilua o sentir unitário português, poderá não ser mais do que um gratuito
contrariar do espírito que presidiu à fundação de Portugal e à sua manutenção
como estado independente, contra quaisquer desígnios.
A herança de um povo é algo mais
complexo de que simples conceitos teóricos ou memórias de existências em comunhão
tribal. É algo que é construído na partilha de aspirações, sofrimentos e
valores conquistados. Por isso não pode ser tratada levianamente e reduzida
pelas novas aquisições de um mundo contemporâneo que é, em certa medida,
enganadoramente apresentado como um mundo global e alter-cultural. O que é um
homem sem a sua herança cultural, sem a ligação que a história de um passado
comum e a tradição lhe conferem? E não se trata de sobrevalorizar a nossa
herança face às dos outros povos; a nossa não é melhor nem pior, mas é a nossa.
O que será um povo sem a ligação ao seu passado, senão um povo sem referências
no presente e, plausivelmente, sem perspectivas para um futuro colectivo?!
Tudo isto é questionável e
discutível, concedemos; e se um dia os portugueses entenderem ignorar o seu
passado, pois podem fazê-lo, porém será necessário aceitar que seremos então um
povo que parte do zero e que, forçosamente, terá de construir uma nova
identidade que sirva de esteio, de referencial, de fio condutor à sua unidade como
povo ou nação. E então coloca-se a pergunta: Para quê começar de novo se já
temos esse valor construído e cimentado?! Será que lhe reconhecemos assim tantos
erros, tanta ineficácia e tamanha inutilidade face às novas valias da
contemporaneidade?
Se alguns acham que estas
acepções são antigas e obsoletas, em dissonância com a actualidade e a marcha civilizacional
da humanidade, então também o serão os mais elementares sentimentos que
perpassam pela alma humana. Porém, contra esses sentimentos ninguém, no seu
perfeito juízo, brande a acusação de arcaísmo como qualificativo deste fervor independentista.
Por tudo isto, celebrar o 1º de
Dezembro não é apenas celebrar a Restauração da Independência protagonizada por
meia centena de personagens seiscentistas; é, sobretudo, assim o cremos, celebrar
a vontade de um povo.
Fontes
Consultadas:
- BRANDÃO DA LUZ J. L., “O Federalismo
no ideal da República em Teófilo Braga e Manuel de Arriaga”, Universidade dos
Açores
- CARNEIRO DE SOUSA I., “História de Portugal Moderno,
Economia e Sociedade”, Universidade Aberta, 1996
- COELHO A. B. “História de Portugal VI – Da
Restauração ao Ouro do Brasil”, Ed. Caminho, 2017
- DIAS J. M. B., “Da Questão Ibérica à União Europeia.
Constantes e Mutações no Relacionamento Entre Espanha e Portugal”
- FERREIRA P.
B. R., “Iberismo, hispanismo e os seus contrários: Portugal
e Espanha (1908-1931) ” -Tese de Doutoramento em História
Contemporânea, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2016.
- HESPANHA A.M., ““História de Portugal Moderno,
Político e Institucional”, Universidade Aberta, 1995
- TORGAL L.R., “Acerca do Significado Sociopolítico da
“Revolução de 1640””, Revista de História das Ideias, Vol. 5, Universidade de
Coimbra, 1984
- NETO V., “Iberismo e Municipalismo em F.F. Henriques
Nogueira”, Revista das Ideias, Vol. 10, Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, 1988.
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