Reflexos do passado no futuro

Imagem picada da Net


Reflexos do passado no futuro
Francisco Castelo 2019.09.08

Foi preciso esperar pelo final do século XX para que a fotografia alcançasse o estatuto pleno de documento histórico. Mas hoje, para os historiadores, a fotografia é um testemunho fiável na explicação de factos do passado, quer na dimensão individual quer social.

Por outro lado, sem as fotografias do velho álbum de família ou os retratos tipo passe dos cartões da escola ou do clube, ninguém consegue lembrar com clareza as suas feições de infância. É um facto.
A ideia poética de que a fotografia congelava um instante da vida que se eternizaria é agora posta em causa pelos milhões de fotografias que se fazem a cada momento e se armazenam nos mais variados suportes digitais, porque, simultaneamente, esta facilidade imensa de gerar imagens transformou a Fotografia em algo facilmente descartável.

Na verdade, as imagens digitais que hoje produzimos são arriscadamente provisórias, porque são de natureza volátil - um aglomerado de impulsos electromagnéticos - e, principalmente, porque raramente garantimos o seu correcto arquivamento.

Estamos, portanto, perante uma conjuntura cultural que produz registos imagéticos impermanentes, o que nos leva a considerar que muitas dessas “memórias visuais” não chegarão a um futuro distante. Isto é grave, pois aprendemos, há muito, que a imagem é um testemunho de algo que foi e, consequentemente, uma memória válida do nosso passado.

A fotografia como parte do acervo cultural de uma sociedade transporta significados culturais, políticos, ideológicos, etc. mas as condições em que cada fotografia foi realizada expressam sentidos e motivações dos seus actores: desde logo a perspectiva do próprio fotógrafo e, frequentemente, a perspectiva do patrono do seu trabalho, pelo que é sempre discutível a tentativa de tradução de uma época, ou de uma ideia, a partir de fotografias.

E por isso, o discurso que cada fotografia carrega pode e deve ser questionado, tal como acontece com os outros documentos históricos. A fotografia não é detentora da verdade; ela não revela as coisas como são, mas tão somente concepções e mensagens que queremos produzir de uma determinada forma, subjectiva, e que achamos mais adequada. Na verdade, a fotografia não é uma reprodução da realidade mas apenas uma representação dessa realidade.

No entanto as fotografias continuam a ser um instrumento da memória pessoal, e até colectiva, ainda que, naturalmente, sejam manipuladas de acordo com os nossos gostos e interesses pessoais.

Sendo a Fotografia a mais fiel forma visual de registar a realidade, tendemos a aceitá-la como reprodução dessa realidade, e nisso reside um dos seus maiores valores. O problema é que já não podemos esperar que as imagens que produzimos hoje vão perdurar no futuro; e se não perdurarem o que espera cada indivíduo que perdeu os retratos de si próprio, é o total oblívio. Dele se esquecerão rapidamente os netos, e dele nunca se lembrarão os bisnetos. Desse sujeito que vai ser esquecido não me refiro apenas à imagem do seu rosto, mas uma memória mais abrangente e complexa que remete e evoca o seu tempo e o seu protagonismo na marcha da sua família, da sua comunidade e, consequentemente, no devir da sociedade em geral.

E se esse esquecimento é o resultado a nível pessoal/individual, coisa idêntica acontecerá a nível social pois enormes serão os lapsos, as fendas abertas, nas memórias das comunidades. Sem imagens do passado - mais ou menos recente é indiferente -, perde-se uma parte da história individual e colectiva; perde-se memória. Ora, um indivíduo sem memória é um indivíduo sem passado. E o mesmo poderemos dizer de uma sociedade. E uma sociedade sem consciência do seu passado é uma sociedade que repete, eternamente, os mais grosseiros erros.

Temo que daqui a 50 anos seja mais fácil recordar visualmente as primeiras décadas do século XX do que as primeiras décadas do século XXI.

Gravar em vários e diferentes suportes (digitais e físicos) as imagens que hoje produzimos, é uma forma de fazer perdurar essas memórias visuais. Garantir a sua longevidade e tratá-las como herança que deve ser preservada pelas gerações seguintes é a única garantia de perenidade de uma parte daquilo que fomos e fizemos na vida – uma parte que poderá ser bastante para conhecer o passado. Uma parte que poderá enformar uma importante diferença na marcha das sociedades e da espécie humana

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