Sempre que um brasileiro, de rompante, atira esta palavra de ordem aos portugueses, fá-lo sem medir o alcance da imbecilidade que profere. Ignora que está a oferecer, de mão beijada, um testemunho eloquente da mais rutilante ignorância. Porque — e vamos por partes:
-
Durante o período em que Portugal retirou riquezas do Brasil, entre elas o ouro, aquele território era parte integrante do Reino de Portugal. Logo, quem terá roubado o quê a quem? Fica por esclarecer.
-
Se, ainda assim, essas vozes inflamadas pretendem julgar a História (empreitada vã, mas a que muitos se entregam com fervor digno de melhor causa), então que o façam com coerência e apliquem o mesmo critério a toda a linha do tempo. O ouro não era “vosso” — porque vós próprios, brasileiros de hoje, não éreis donos legítimos do Brasil. Os portugueses de então executaram — e os brasileiros de agora perpetuam — o saque de algo que, rigorosamente falando, nem nos pertencia a nós nem vos pertence a vós. Pela lógica dos papalvos que bradam contra “o ouro que os portugueses roubaram”, os únicos legítimos proprietários seriam os povos indígenas, nativos do território, espoliados pelas mãos lusas com o auxílio de escravos e colonos, numa engrenagem que os vossos antepassados herdaram, ampliaram e modernizaram. Por conseguinte, os brasileiros actuais são, na melhor das hipóteses, herdeiros do saque — com excepção, naturalmente, dos descendentes dos povos originários.
-
Estima-se que Portugal tenha retirado do Brasil cerca de 900 mil quilos de ouro puro durante o período colonial. Se atribuirmos a esse total o valor de mercado de 2017 — cerca de 41 dólares por grama — a “dívida” da Coroa portuguesa ascenderia a uns 32 mil milhões de dólares, o que, em reais, perfaz sensivelmente 112 mil milhões. Ora, só nos últimos 14 anos de corrupção no Brasil, o rombo causado por desgoverno, compadrio e saque interno atingiu os 172 mil milhões de reais. Resumo da ópera: em apenas 14 anos — num contexto infinitamente mais favorável, com tecnologia, instituições e mecanismos de controlo — o Brasil lesou-se a si próprio em muito mais do que Portugal o fez ao longo de três séculos.
-
Acresce que, quando se evocam as quase mil toneladas de ouro extraídas por Portugal, convém comparar com a actual exploração interna. Só em 2019, os próprios brasileiros extraíram 106 mil quilos do seu subsolo. De que estamos a falar, então? De uma ninharia histórica. Mas o brasileiro comum desconhece estes factos — não por má-fé, mas porque estudar custa, enquanto vociferar tolices sai barato. E, sejamos justos, nós, portugueses, também não estamos imunes a esse mal. Por isso mesmo, talvez os brasileiros tenham razão quando dizem: «Nós não inventámos nada — apenas aperfeiçoámos». E entre essas “invenções aperfeiçoadas” figura, com honras, a estupidez.
-
Esta parvoíce entranhada em tantas cabeças brasileiras explica-se por três factores. O primeiro, transversal a quase todas as culturas, é o eterno impulso de culpar terceiros pelos nossos próprios fracassos. O segundo decorre de um sistema de ensino debilitado, incapaz de corrigir as ficções construídas por uma historiografia nacionalista, ao serviço de um projecto político autoritário. Recorde-se que também o Brasil teve o seu Estado Novo (1937–1945) e uma longa ditadura militar (1964–1985), ambas pródigas em manipulação ideológica. O terceiro factor — menos evidente, mas não menos relevante — reside na dissonância histórica de serem o único povo latino-americano cuja independência não foi conquistada, mas dada… por um português. Esse facto, atravessado na garganta de muitos, exige uma válvula de escape simbólica. E que melhor substituto para o orgulho ferido do que o grito ressentido: «Os portugueses roubaram o nosso ouro!»?
Sem comentários:
Enviar um comentário