OS GRUNHOS, a novilíngua e as linguagens inclusivas, neutras e palermices semelhantes

 


Porque é que “todes” não é todos, nem todas?

Há um pequeno problema com isto tudo, com esta nova terminologia, com a selva de classificações e as respectivas gavetas em que cada um é metido e a obsessão pelas identidades – é que não é nem inclusiva, nem democrática.

José Pacheco Pereira

A polémica sobre aquilo que é entendido como linguagem “inclusiva” já dura há vários anos. Toda uma série de neologismos está a crescer a cada dia, associada a uma suposta autoridade moral no seu uso. Não os usar exclui, logo coloca quem não os usa do lado do mal. A ela se acrescenta uma censura crescente de termos cuja utilização num texto ou numa notícia de jornal, suscita de imediato uma fúria censória. É caso de palavras como “preto”, “cigano”, “paneleiro”, “bicha”, “fufa”, por aí adiante. É interessante ver que “branquela” não é atingido pelo opróbrio. É verdade que muito destes termos são insultos homofóbicos ou racistas, mas o expurgo da linguagem comum de termos ofensivos empobrece-a, como se fosse possível ter uma linguagem sanitariamente pura, coisa que é mais do domínio orwelliano, ou seja das ditaduras do que das democracias.

A polémica da linguagem inclusiva que já chegou à publicidade e à rua, com a campanha da Fox nas paragens de autocarros, é um sinal irónico do valor comercial destas questões. Há uma razão para esse valor comercial, é que estão na moda e a moda tem muita força. Essa campanha, do “imperialismo cultural americano” como diria o PCP, pretende ensinar-nos sobre o significado do novo vocabulário que quer introduzir na linguagem corrente um vasto conjunto de classificações “inclusivas”. Porquê “inclusivas”? Porque elas permitem nomear a variedade de identidades e questões associadas com elas que existem, ou supostamente existem, porque nalguns casos tenho dúvidas.

Os termos que a Fox nos pretende explicar incluem “não Binária; Queer; ‘Trans’; LGBTI-Fobia; Gay; Expressão de Género; ‘Cis’ ou Cisgénero; Aliada; Bissexual; Pansexual; Lésbica; Família Arco-Íris; Misgendering; Nome Social; Poliamor e Travesti”. Ou seja, desdobram o mistério do LGBTTTQQIAA+, cuja aceitação acrítica e repetição mostra como se aceita tudo que se coloca no prato comunicacional seja por inércia seja por medo de se ser “politicamente incorrecto”.

Este surto de identidades vai ao ponto de também haver “trans espécies”, humanos que acham que são cães ou veados ou dragões por exemplo. E não um cão qualquer, um dálmata por exemplo. Não é difícil ironizar com estas escolhas, e se eu usasse neste artigo uma fotografia de um destes trans espécies a coisa seria jocosa, mas o assunto é mais sério, e tem a ver com a questão de perceber como é que se deu esta doença obsessiva da identidade e que efeitos tem na sociedade.

Não posso dar aulas sobre a história do colonialismo, e ao escrever estas coisas sobre as “identidades de género” fico na categoria de “homofóbico” e “racista”. Se fizer uma associação de artistas “brancos”, sou supremacista branco, mas o anúncio de uma União Negra das Artes não suscitou problema nenhum

Com o risco de dizer asneiras, qual é a minha “identidade” neste emaranhado de classificações? Sou “cisgénero”, neste caso “homem”. A definição é bizarra: “Cisgéneros são pessoas que se identificam com o sexo biológico que lhes foi atribuído ao nascer. Elas também se identificam com o padrão normativo de atitudes e comportamentos que a sociedade espera dos géneros masculino ou feminino.”. A coisa é complicada porque não sei muito bem quem é que me “atribuiu” o sexo biológico, a não ser a biologia ou Nosso Senhor, nem quem é que define “o padrão normativo de atitudes e comportamentos que a sociedade espera dos géneros masculino ou feminino.” Ou seja, a escolha do sexo é “social” e não natural e eu posso ter o sexo que quiser, ou a combinação de sexos que escolher, ou achar que sou um não-humano.

Recapitulemos: sou caucasiano branco, do sexo masculino, cisgénero, binário, ou seja, tudo o que de pior se pode ser nestes dias, até porque é suposto que não me possa pronunciar sobre raça, porque sou da raça errada, nem do sexo, porque sou um servo de um “padrão normativo” que me foi imposto por uma sociedade que só comporta uma “identidade de género”. Todas estas afirmações de identidade, que nunca na vida me passou pela cabeça poder fazer, diminuem-me social e culturalmente. Lendo o que se escreve nestes dias, inclusive no PÚBLICO, não posso dar aulas sobre a história do colonialismo, e ao escrever estas coisas sobre as “identidades de género” fico na categoria de “homofóbico” e “racista”. Se eu quiser fazer uma associação de artistas “brancos”, sou supremacista branco, mas o anúncio de uma União Negra das Artes não suscitou problema nenhum. Esperem uns dias e verão as acusações que vão cair em cima do branco binário.

Há um pequeno problema com isto tudo, com esta nova terminologia, com a selva de classificações e as respectivas gavetas em que cada um é metido e a obsessão pelas identidades –​ é que não é nem inclusiva, nem democrática. A sociedade democrática não é um produto natural, mas cultural. É uma escolha de responsabilidade humana, que tem por base uma igualdade potencial entre todos, todas e todos. Sabemos que essa igualdade não existe, a começar porque há pobres e ricos, há quem tenha conhecimentos e quem seja ignorante, quem sabe falar e quem não sabe, há múltiplos factores de exclusão na sociedade que torna uns mais “cidadãos” do que outros e alguns desses factores são identitários, ou porque são mulheres num mundo de homens, ou são negros numa terra de brancos, ou são vítimas de preconceitos porque o modo como desejam viver e amar é diferente, mas isso é uma coisa muito diferente de querer moldar o mundo a uma obsessão identitária, que não “inclui”, mas exclui, que censura a liberdade e estabelece uma hierarquia moral entre pessoas cisgéneras – mas que absoluta idiotia – e as que são mais livres, mais dignas, mais felizes, mais capazes e que reservam para si o alto pedestal da moral, onde estão os queer, os “trans”, os “dois espíritos”, os travestis, etc., etc. E o dilema também tem nome: ou se é “aliado”, ou se é anti-LGBTTTQQIAA+, seja lá o que for que isso significa.

 

Anjos, arcanjos, querubins e serafins

José Pacheco Pereira

Tal como o nominalismo escolástico, mais do que classificar o mundo, este discurso pretende dominá-lo e hierarquizá-lo. Não é libertador, mas opressor. As democracias contêm todas as diferenças, mas não são corporações de identidades, nem de “comunidades”.

Esta questão da LGBTTTQQIAA+ sempre me pareceu o afã medieval dos teólogos para definir a hierarquia dos céus, com os Serafins, Querubins, Tronos, Domínios, Virtudes, Poderes, Principados, Arcanjos, e Anjos, o que daria SQTDVPPAA, mesmo assim com menos letras e sem aquele indeterminado +. Ironia à parte, há um aspecto comum, o nominalismo escolástico que, mais do que classificar o mundo, pretende dominá-lo e hierarquizá-lo. Reafirmo o meu ponto essencial: este não é um discurso libertador, mas opressor, e as democracias contêm todas as diferenças, mas não são corporações de identidades, nem de “comunidades”.

Voltemos atrás. Até hoje já vão quatro artigos no PÚBLICO (interessante…), escritos contra o meu atrevimento, literalmente centenas de tweets, páginas de Facebook, comentários, e provavelmente ainda vai haver muito mais. Uso a palavra atrevimento, porque é disso mesmo que se trata e isso é dito muito explicitamente em muitos comentários. Nada que não esperasse, ao mexer num discurso que se caracteriza por estar na moda comunicacional e na outra, a comercial, tem um papel significativo nas indústrias culturais urbanas, vale dinheiro e poder, e é intocável, noli me tangere.

As pessoas prudentes não se metem nestes sarilhos. Passei de bestial a besta, coisa a que já estou habituado e não me preocupa nada. Preocupam-me as razões, mas não tenho feitio para vítima pelo que escusam de ir por aí. Passei a ser homofóbico e racista, coisas que nem vale a pena afirmar que não sou, porque se pode sempre dizer que uma coisa é a minha percepção, outra a realidade e, ao escrever o que escrevi, mostrei a minha “verdadeira” natureza, a identidade de uma Pessoa Universal e Neutra (PUN) que sente os seus “privilégios” e o seu “armário” postos em causa. Esta do PUN desconhecia.

A questão para mim continua a mesma: o discurso do excesso identitário, com o seu afã de classificar tudo e todos, é censório e intimidatório, é uma linguagem de Autoridade que deslassa a democracia e marginaliza mais do que inclui. É, em substância, um discurso antidemocrático que acantona mais do que agrega, e é socialmente reaccionário nos seus efeitos, porque minimiza as principais fontes da desigualdade e exclusão de muitos na sociedade capitalista a favor de um radicalismo cultural de privilegiados. É um mau serviço ao combate à homofobia e ao racismo, como cada vez mais gente percebe. É, com o discurso “trumpista”, de que este é espelho, uma tentativa de engenharia social que constitui uma ameaça para a democracia dos dias de hoje pela sua arrogância e agressividade. De novo, insisto, isto pouco tem que ver com o combate à homofobia, é muito mais da ordem do tribalismo.

Veja-se o que aconteceu e vai continuara a acontecer. Todos os tropos da Autoridade me caíram em cima: o da Juventude (o “velho”), o da Ciência (ignora os avanços da ciência), o do Saber (“ignorante”), o da Vergonha (“artigo sem vergonha”), o do Preconceito, o da Supremacia, o da Contemporaneidade (estou ainda nos anos 90 ou 2000), o do Progresso. Quanto ao “velho”, estou a estudar a hipótese de fazer um acordo faustiano com o Diabo, mas terei de o contactar pela sua página de Facebook, visto que não tenho o número de telefone e o 666 não atende. Isto para não dizer até que ponto este argumento da “velhice”, ou seja, da senilidade, é uma variante do argumento psiquiátrico típico da URSS nos anos de Brejnev.

Talvez um dos argumentos mais perigosos seja o da Ciência e o do Saber, de que eu sou “ignorante”, não percebendo a distinção entre sexo e género, embora o que eles fazem é valorizar a construção social da identidade de género e menorizar o papel da biologia. As duas coisas são relevantes, complementares e não contraditórias, o corpo tanto liberta como prende, mas daí a ter que se aceitar que as categorias da obsessão identitária têm base “científica” e são comummente aceites pelos Tempos Novos e pelo Progresso só vai mais um argumento de Autoridade. Usado assim, é análogo ao “cientismo” de Engels e Marx, dos teóricos do racismo e da supremacia ariana, do eugenismo, do darwinismo social, todos afirmando que as suas posições derivavam da ciência como autoridade última e são, portanto, inquestionáveis.

Esta é também uma questão política. Os partidos políticos que assentam a sua acção nesta escolástica categorial, transformando-a em “causas”, em particular quando se colocam à esquerda, podem ganhar o combate nos media, mas não o ganham na sociedade porque erram quanto às causas profundas da desigualdade, que não são em primeiro lugar culturais, mas socioeconómicas. É aí que começam as desigualdades, uma das mais relevantes é a da condição feminina, mas também o racismo e a homofobia, que são causas genuínas, mas cuja força vem das características de sociedades assentes nas desigualdades e exclusões. São todos muito anticapitalistas, mas chega aqui e não dão à desigualdade socioeconómica o papel primeiro na exclusão, preferindo entreter-se num discurso cultural radical chic.

Outro aspecto relevante deste discurso obsessivo das identidades é que ele é “comunitário” mais do que individual. É a “comunidade LGBTTTQQIAA+” que o enuncia pelos seus intelectuais, artistas e porta-vozes, mais do que resulta de uma afirmação identitária própria. Este surto de indignação de que sou alvo tem muito que ver com um território que não está sujeito a qualquer escrutínio, porque, se ele existe, só pode ser por razões perversas. Eu só falei do assunto porque me sinto a perder os meus privilégios de branco, binário, patriarcal, e isso tira-me o sossego. Mais: logo à cabeça existe um processo de intenção que é dominado por uma perda, sendo que de novo essa perda é de privilégios. Logo quem fala o faz a partir do lugar do opressor. É cómodo como explicação, não é?

(Em breve irei aos textos concretos, quando têm argumentos e não imprecações.)"

 

 

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