De mal-entendidos se faz uma imensa mistificação
A quem aproveita?
João Pedro Marques numa
conversa 'incorrecta' com o foco na escravatura, mas abordando também o wokismo, Joan Baez e George Orwell. Foi
professor universitário e do ensino secundário e investigador do Instituto de
Investigação Científica Tropical. Especialista em História da Escravatura, tem
sido uma das principais vozes críticas contra o politicamente correcto em redor
das questões raciais.
Existe a ideia de que foram as revoltas
dos escravos que foram determinantes para a abolição da escravatura. Destaca a
preponderância do movimento abolicionista na libertação dos escravos nas
colónias, do papel dos ocidentais nesse processo e defende que o primeiro país
a abolir a escravatura foi o actual Haiti, antigo Saint-Domingue…
Essa opinião está errada. Quer dizer,
estritamente falando, está errada. Repare, o jogo aí é utilizar a palavra
“país”. É isso que condiciona, deturpa e esconde o que foi a realidade. Os
estados do norte dos Estados Unidos da América já estavam a abolir a
escravidão. Começaram a fazê-lo na década de 70 [do século XVIII], ou seja,
quase 30 anos antes de o Haiti se ter tornado independente [em 1804]. O
Vermont, a Pensilvânia, Nova Iorque… A pouco e pouco, esses estados do norte
dos Estados Unidos iam abolindo, de uma forma gradual, a escravidão. Mas
naquilo que viria a ser o Haiti, já a França tinha abolido a escravidão. Ou
seja, o primeiro país a abolir a escravidão, foi a França. Globalmente, foi a
França, em 1794, em plena revolução francesa. O comissário francês que na
altura estava na colónia francesa então chamada São Domingos [Saint-Domingue ],
um indivíduo chamado Sonthonax, em 1803 decretou a abolição da escravidão. No
ano seguinte, a Assembleia em Paris ratificou a medida do seu comissário e
aboliu em todas as colónias da República Francesa. Portanto, o primeiro país a
abolir a escravidão foi a França. É verdade que, adiante, no tempo de Napoleão,
a medida foi revertida. Em 1802, Napoleão repôs a escravidão. E quando o Haiti
se tornou independente constitucionalmente, em 1804, aboliu definitivamente a
escravidão nessa região. Mas, como vê, a história é mais complexa do que essa
visão taxativa. De facto, os abolicionistas foram decisivos. Sem os
abolicionistas, boa parte dos quais brancos, não teria havido abolição. Isto
não é uma opinião exclusivamente minha. Muitas colegas historiadores defendem
este ponto de vista, mas são quase todos velhos como eu, não é? Anteriores à
chegada do wokismo.
E até que ponto é que os próprios
africanos colaboraram, eles próprios, com o tráfico transatlântico de escravos?
Porque parece ter-se muito a crença de que os ocidentais forçaram essa prática
aos povos africanos.
Que forçaram, e que assumem o ónus de
todo o processo, não é? Mas não. Foi um negócio, horrível, de mútuo acordo.
Aliás, os ocidentais não tinham possibilidade técnica, material, humana ou
médica de penetrar em África. Antes dos anti-malários, e, depois, das vacinas
contra a febre amarela, a entrada naqueles territórios era mortífera.
Então, eles não teriam sido capazes de
levar a cabo este processo sem a colaboração africana?
Não, sem haver um sistema montado, nunca
teria sido possível transportar aquele número de pessoas para as Américas.
Portanto, foi qualquer coisa feita em colaboração estreita, recíproca, e para
benefício mútuo – é uma ideia que é importante acentuar – dos dois lados da
equação. Os africanos ganhavam de uma forma diferente daquele que era o ganho
dos ocidentais. Os ocidentais ganhavam de uma forma que se convertia em moeda,
tinham um lucro económico com todo o processo, com foco no tráfico, regra
geral, que não era muito lucrativo. E, depois, aproveitando o trabalho dos
escravos nas minas e nas plantações, e por aí fora, nas Américas. Isso, de facto,
produzia muita riqueza. O açúcar, os produtos coloniais, produziam muita
riqueza. Os africanos que estavam envolvidos no tráfico de escravos também
ganhavam. Ganhavam num registo que, para nós, ocidentais, não fazia muito
sentido, mas que nas sociedades africanas era muito valorizado. Ganhavam em
termos de prestígio e de poder político. Aquilo que os ocidentais levavam para
lá, que para nós não tinha um valor por aí além – como têxteis ou tabaco de
terceira qualidade, que os africanos adoravam, mas que para nós aqui no
Ocidente nem sequer era permitido vender – era escoado para a costa de África
e, com esses produtos, os africanos competiam. Distribuíam aquilo e obtinham
subordinação e fidelidade política e dependentes. E, portanto, isso era, para
eles, do ponto de vista social e económico, muito recompensador. Por isso se
envolveram naquele negócio, não foram forçados a fazê-lo.
Já tem salientado que a escravatura é imemorial, e que o que foi, de facto,
específico ao Ocidente não foi a prática da escravatura – que sempre existiu –,
mas sim a sua abolição. Considera assim que, por parte de certos sectores da
sociedade, existe uma desvalorização do papel dos europeus na abolição da
escravatura, certo?
Isso acontece porque há uma agenda política. Essa agenda política tem como
objectivo – o que é compreensível, e até é louvável e respeitável – elevar as
comunidades afrodescendentes e colocar os negros no centro da História.
E isso passa por realçar o papel das revoltas escravas?
Sim, realçar todo o papel dos escravos – negros, muitas vezes – e descobrir
e enaltecer heróis entre eles e, simultaneamente, reduzir a importância dos
povos ocidentais, dos brancos.
E são os próprios ocidentais a fazê-lo,
apelando muitas vezes a um sentimento de culpa, não é? Esse movimento de
autoflagelação também acontece fora do Ocidente? É comum todos os povos
auto-denegrirem o seu passado e a sua História?
Não, é uma doença específica do
Ocidente. Nós não vemos os povos muçulmanos fazerem isto, e estiveram
envolvidos no processo escravocrata da mesma forma. Enfim, com variações, não
é? No Ocidente importavam-se maioritariamente escravos do sexo masculino, força
de trabalho para usar nas plantações do açúcar, por exemplo. No mundo muçulmano
importavam-se sobretudo mulheres e crianças. Pela sua capacidade reprodutiva,
para haréns e coisas desse tipo. Digamos que são complementares, não é? O que
sai através do Atlântico é maioritariamente masculino, e o que sai através do
deserto Saara e do Oceano Índico, é maioritariamente feminino. Mas as condições
de transporte e de exploração, o quantitativo, são muito equivalentes. E
ninguém vê o mundo muçulmano a rasgar vestes e a culpabilizar-se por tudo isso
que se passou.
E os asiáticos, por exemplo?
Também. A escravatura é qualquer coisa
de intemporal e disseminada à escala do planeta. Desde a Coreia até à América,
anterior à chegada de Cristóvão Colombo. Saiu recentemente um trabalho de
historiografia importante, uma obra colectiva, que faz o ponto da situação no
estado actual dos conhecimentos. Chama-se Cambridge World History of
Slavery. E vai desde a escravatura antiga, desde a Mesopotâmia, Roma e
Grécia, até à escravatura recente, de final do século XIX, princípio do século
XX. E encontra lá muitos países. A Turquia, a Coreia, a Índia, o Japão… Havia
escravos em todo o lado.
No seu livro fala também da vontade de
activistas antirracistas de reescrever alguns pontos da História. Estão a
conseguir?
Eu já não dou aulas no secundário há
muito tempo, e já não estou muito por dentro. Dei uma olhadadela nos programas,
mas já não estou lá. Mas eu suspeito e receio que os activistas estejam a
ganhar, e que estejam a impor a sua agenda a pouco e pouco, subterraneamente. O
poder político não se tem pronunciado sobre isso, mas eu acho que eles vão
cedendo às pressões. Tal como cederam, tanto quanto se consegue perceber, no
caso do Museu dos Descobrimentos.
Foi prometido por Fernando Medina,
quando presidente da autarquia de Lisboa… Entretanto, ficou em águas de
bacalhau?
Aparentemente. Nunca mais ninguém falou
nisso. O assunto discutiu-se em 2018, fazia parte do programa do governo
camarário de Fernando Medina. Em 2018 começou a haver muita contestação, por
parte de grupos académicos e de associações de afrodescendentes. E a partir daí
deixou de se ouvir falar no Museu dos Descobrimentos.
Em paralelo, há quem defenda a
construção de um Memorial da Escravatura.
Exactamente, e eu não tenho nada contra
um Memorial da Escravatura, desde que não se encha o país de memoriais da
escravatura, não é? As coisas têm a proporção que têm. Agora, uma coisa não
deve obstaculizar a outra. Um memorial da escravatura, sim senhor. Um museu dos
Descobrimentos, com certeza.
Qual seria a importância de um Museu dos
Descobrimentos?
Enorme. Os Descobrimentos têm um papel
muito importante na História do nosso país, e da nossa identidade como povo. E
na forma como os outros nos reconhecem historicamente, não é? Como nos
identificam historicamente. Portanto, querer denegrir os Descobrimentos, e
apontar só os seus aspectos nocivos, sangrentos e violentos – que todos os
grandes processos históricos infelizmente têm –, é algo inescapável e, trágico.
Pondo apenas o foco nisso, e querer, inclusivamente, banir a própria palavra…
eu acho isso de uma burrice e de um fanatismo indescritível. Isso corresponde,
de facto, a subverter as coisas e a aplicar uma agenda política.
Um dos argumentos contra o uso da
palavra Descobrimentos é que os nativos não se sentiram descobertos quando os
ocidentais lá chegaram…
Como acontece em qualquer relação
interpessoal ou internacional. Quando eu encontro alguém, posso sentir-me de
uma determinada maneira, e isso não quer dizer que a outra pessoa se sinta da
mesma forma. Mas é a minha maneira, sou eu que sou o narrador.
Tem de se escolher uma perspectiva para
contar a História?
Pois, não se pode contar a História de
todas as perspectivas em simultâneo. Tem de se ter uma perspectiva. E eu não
tenho nem devo abdicar da minha perspectiva só porque aquele senhor ali ao lado
não gosta, porque não é a dele. Pois não, é a minha!
No seu livro dá até o exemplo do Museu
da Liberdade em França…
Exactamente. Houve muita gente na
Revolução Francesa que não se sentiu nada libertada, pelo contrário. E não é
por isso que deixa de se chamar Museu da Liberdade ao museu sobre a Revolução.
E por aí fora, podíamos aplicar isso a muitas situações… Nunca se agrada a toda
a gente, é impossível. Mas não é por isso que temos de abdicar de designações.
Critica também a “febre” da remoção de
estátuas e renomeações de ruas, por evocarem pessoas que possuíam escravos,
pela sua incoerência. Dá até o exemplo da rebaptização de uma rua de Nova Iorque
em homenagem a Jean Jacques Dessalines, que mandou matar milhares de brancos
após a Independência do Haiti…
Foi o homem que tornou o Haiti
independente. Era um general subordinado de Toussaint Louverture, e ex-escravo.
Louverture não era escravo. Ou seja, tinha sido, mas na altura em que surge a
revolução, Louverture já era um homem livre e proprietário de escravos. Mas
Dessalines teve uma rua baptizada com o seu nome, e foi um torcionário. Ao
contrário de Louverture, que era um contemporizador e um indivíduo que queria
proteger a comunidade branca da colónia francesa que viria a ser o Haiti…
queria harmonizar as tensões entre os brancos, os mestiços e os negros. Este
Dessalines, não. Era um tipo vingativo, e terá mandado matar cerca de cinco mil
pessoas. É isso que eu digo: as perspectivas são, muitas vezes, diferentes e
conflituantes.
Mas, supostamente, o objectivo de
renomear ruas é expurgar a violência e as atrocidades do passado…
Expurgar a violência dos brancos, não é
a violência dos negros. Não se refere a violência dos negros, mas não imagina o
que foi a revolta de escravos do Haiti. Eu não lhe vou dizer para não lhe dar
pesadelos. Ninguém fala nisso, mas foi uma coisa verdadeiramente aterradora. A
tal ponto aterradora que, no mundo ocidental, ficou, durante décadas, a imagem
do Haiti como o pesadelo. O pesadelo no mundo colonial era aquilo. De tal modo
que, 70 anos depois, aqui nas cortes portuguesas em Lisboa, quando surgiam
casos de escravos em Luanda que mataram um senhor, ou havia pequenos tumultos…
nunca houve revoltas escravas em Luanda, mas houve uns incidentes na altura, e
o assunto foi discutido nas cortes, no Parlamento de então. E ainda se evocava
o caso do Haiti, o caso de São Domingos. Portanto, repare bem até que ponto o
que se passou lá ficou marcado e impressionou extraordinariamente as pessoas.
Os extremos a que aquilo foi levado.
Não houve mais nenhuma revolta dessa
dimensão nas outras colónias africanas?
Houve revoltas escravas, mas com aquela
dimensão e com aquele nível de terror, não. Porque a própria colónia estava em
guerra, e é preciso dizê-lo, porque esta parte não é contada, não é? É contada
como tendo sido a revolta escrava que provocou tudo aquilo. Mas não. A colónia
já estava em guerra devido à Revolução Francesa, já estava em tumulto e em
conflito. Entre os mestiços e brancos, realistas e republicanos. E, quando a
revolta surge, torna tudo muito mais complicado. Pior ainda quando os ingleses
e os espanhóis intervêm. Portanto, aquilo foi um tumulto de todo o tamanho. E,
mesmo quando o país se tornou independente em 1804, e passou a existir o Haiti
em vez da colónia francesa de Saint-Domingue, continuou em guerra
civil. Entre o norte, do imperador Dessalines, e a parte sul da colónia, onde
prevaleciam os homens livres mestiços. Portanto, continuou com uma guerra civil
durante imenso tempo. E o país ficou completamente destruído. Ainda está.
E essa revolta teve um efeito dominó no
processo de abolição da escravatura? Foi o que permitiu a libertação que viria
a acontecer nas restantes colónias?
Não teve. Nenhuma potência quis
reproduzir uma coisa daquelas. Aquilo só é explicável no contexto da Revolução
Francesa. Se tivesse sido num outro contexto, não teria acontecido, nem se
teria propagado daquela forma. O que acontece é um esfarelamento do poder
político francês, com todos aqueles tumultos e convulsões. Sem a Revolução
Francesa não é explicável. É explicável uma revolta, mas teria ficado
confinada, como, aliás, em vários momentos do processo esteve para ficar. Só
não ficou porque os ingleses e os espanhóis entraram na guerra, e Sonthonax, o
comissário de que falei, precisou de gente para combater. Então, libertou os
escravos. Portanto, é um contexto muito particular. A única coisa onde houve
uma influência exterior, foi no apoio que o Haiti já independente deu a Simón
Bolívar, na altura das lutas pela independência do que viria a ser a Venezuela.
Aí, o Haiti apoiou, com soldados. Mas foi a única coisa, não interferiram em
nada. No meu ponto de vista, a revolta do Haiti teve um efeito contraproducente
para a liberdade das outras colónias, porque o poder político e os senhores
tornaram-se muito mais vigilantes e punitivos do que já eram. Não houve nenhuma
repetição daquilo nos anos seguintes. O fim da escravidão nos outros países
aconteceu décadas depois, e por um processo completamente diferente.
Outra coisa que salienta, é que muitos
dos escravos revoltosos, não se insurgiram contra a escravatura em si, mas
apenas contra a sua própria condição de escravos. E refere também que muitos
deles, como homens livres, adquiriam escravos. Acha que as pessoas, de modo
geral, têm noção disso?
Não, isso é omitido. Mesmo na própria
revolta do Haiti, é sempre omitido que Toussaint Louverture tinha escravos, que
era livre e tinha escravos. É sempre omitido que os líderes da revolta escrava
– que foram várias pessoas ao longo do tempo – mas, antes de Toussaint se ter
tornado líder, que eram dois escravos chamados Georges Biassou e Jean-François,
faziam comércio de escravos.
Escravos negros?
Escravos negros. Mulheres, sobretudo;
vendiam-nas para os espanhóis. Isso é tudo omitido, tudo escondido. Não se
refere isso porque, lá está, não convém. Não é politicamente correcto dizê-lo.
Mas, para um historiador, essa é que é a verdade. Aliás, esses indivíduos nunca
se juntaram, depois, a Toussaint Louverture e aos franceses. Continuaram fiéis
à Espanha, e, quando o exército da República Francesa no Haiti, comandado por
Louverture, foi ganhando a guerra, eles acabaram por sair da colónia.
Jean-François foi aqui para Espanha, Cádis, se não me engano. E Biassou foi
para a zona do Louisiana. Portanto, os líderes da revolta escrava continuaram a
escravizar. E não queriam a liberdade para os escravos todos, era só para eles
e para as famílias.
Na verdade, ainda existe escravatura,
com particular destaque para África e a região da Ásia e do Pacífico…
Sim, mas repare, a escravatura tornou-se
ilegal em todo o Mundo. Não nos podemos esquecer que antigamente era legal.
Implicava uma forma de propriedade legalmente reconhecida. Isso agora tornou-se
ilegal. Mesmo em países como a Mauritânia, que ainda a praticam, é ilegal. Mas
existem é situações de exploração do trabalho e do corpo, escravatura sexual.
Por exemplo, eu às vezes vejo números, com mulheres e crianças, coisas
aterradoras. Aos milhões. Mas, tudo isso é ilegal. Agora existem formas de
exploração do trabalho que são similares. Trabalho forçado, por exemplo, mas a
pessoa não é propriedade daquele que a explora. Enquanto que, antigamente, era.
Tinham direitos totais sobre a pessoa, inclusivamente sobre a sua prole. Em
princípio, legalmente, isso acabou.
Mas o jornal The Guardian,
por exemplo, em 2019 reportava a existência de 40 milhões de pessoas em
condição de escravatura moderna. Claro que temos de ter em conta o facto da
densidade populacional ser hoje bastante superior…
Mesmo assim, comparado com os 12 milhões
e meio que terão ido, ao longo de mais de quatro séculos, de África para as
Américas, dá-nos ideia da dimensão do problema.
Tem conhecimento de alguns destes
activistas anti-racistas, que têm condenado diligentemente o passado escravista
do Ocidente, fazerem algo para combater o actual flagelo da escravatura
moderna?
Não faz parte da agenda deles. A agenda
dos activistas antirracistas é, de facto, criar uma narrativa com o homem negro
no centro da História. Ainda no ano passado – eu não vi o filme, mas falei
disso com o meu filho, que é crítico de cinema no Expresso –, foi lançado um
filme chamado A Mulher Rei, que é sobre aqueles regimentos a que os
ocidentais chamavam amazonas. Amazonas, por analogia com a mitologia
greco-romana. Eram mulheres guerreiras do reino de Daomé, que corresponde ao
Benim actual, e existiu mesmo. Foram mesmo reais essas amazonas, essas mulheres
guerreiras, que eram um regimento que fazia parte da Guarda do reino… e eram
temíveis em combate, até porque os homens, os ocidentais, como os soldados
franceses, tinham algum retraimento em matar mulheres. E, portanto, sofriam
baixas enormes em combates com elas. O cavalheirismo do século XIX… [risos].
Interessante, é engraçado isso…
É, não é? Mas, de facto, elas eram
terríveis, e muito resistentes fisicamente, tinham uma grande capacidade de
sacríficio… Mas, no filme, são representadas como combatentes contra o tráfico
de escravos. E o reino de Daomé era um cerne do tráfico de escravos! Portanto,
a História está completamente pervertida.
Isso acaba por transmitir uma mensagem,
apesar de ser ficção.
Passa a mensagem dos negros a combaterem
o tráfico de escravos, quando era o contrário, o reino de Daomé vivia disso.
Era um reino guerreiro, guerreava os povos em redor, escravizava-os e vendia-os
aos ocidentais.
Estes episódios de reescrita do passado
que se têm sucedido de diversas formas, levou-o, inclusivamente, a fazer uma
comparação com o livro 1984, de George Orwell. Acha mesmo que está a haver essa
manipulação da História?
Sim, uma reescrita. Em 1984, o
protagonista Winston Smith, do Ministério da Verdade, tinha a função de
reescrever as notícias do passado para que elas se ajustassem ao presente. Isto
é um pesadelo. Então para um historiador, é um duplo pesadelo. Mas para
qualquer pessoa, não é? Porque se perde a noção da espessura do tempo, da
diferença, que é para isso que a História serve, para explicar a diferença.
Não é para julgar?
Não, não é para julgar, isso é os
tribunais. E, de facto, o que está a haver hoje em dia, na narrativa histórica,
mas não só, é um esforço de reescrita inclusiva, de textos do passado.
Pense, por exemplo, que já houve propostas – e que penso que foram levadas
avante em certos estados norte-americanos –, de reescrever certas passagens de
livros. Por exemplo, o livro do Mark Twain, todas as partes que têm uma
linguagem…
Considerada racista…
Sim. É óbvio, aquilo passava-se numa
sociedade racista! Portanto, as personagens falam como falavam as pessoas
daquela altura. Agora, tem de ser corrigido. Corrigido, suprimido, adaptado ao
tempo. Até dei, num artigo para o Diário de Notícias, a propósito das
demolições de estátuas e da correção da linguagem, o exemplo de Joan Baez. Baez
ainda é viva, mas foi uma cantora de intervenção muito famosa na década de 60.
E, em 1971, ela teve uma música de muito sucesso chamada The Night They
Drove Old Dixie Down. Ela descreve a noite em que o Sul perde a guerra
civil, a bandeira é arriada, o general Robert E. Lee rende-se… E refere Robert
E. Lee, comandante das tropas do Sul. Essa letra hoje em dia seria proibida!
Isto é aterrador, nós pensarmos que a rainha do progressismo na altura, que era
ouvida em todos os campos universitários e estava na primeira fila da
contestação e do espírito revolucionário, hoje em dia seria banida.
Ou “cancelada”, como se diz hoje em dia…
Seria cancelada. É impressionante, não
é? Isto é pior que 1984.
Há historiadores que defendem este tipo
de práticas expurgatórias do passado. No seu círculo, vê mais colegas
coniventes com essa ideologia, ou outros que pensam de forma igual a si?
No meu círculo – que é uma coisa
restrita, até porque estou fora da Academia já –, são sobretudo aqueles que
concordam comigo, muitos dos quais não se pronunciam, por razões que eles
saberão. Agora, fora do meu círculo, muitos historiadores activistas e que
escrevem sobretudo no Facebook e nas redes sociais. Vejo, nesta área das
ciências sociais e humanas, um grande activismo nas universidades. Activismo da
parte de uns, silêncio da parte de outros.
E também há activistas que não são
historiadores…
Muitos, eu diria que são talvez a
maioria, não é? Antropólogos, sociólogos, jornalistas… Eu diria que a maioria
não são historiadores.
Já começou a estudar a escravatura
colonial há mais de trinta anos. Quando é que começou a dar-se conta deste
movimento revisionista dessa época da História, que se iniciou nos Estados
Unidos?
Para mim foi um bocado surpreendente,
digo-lhe com toda a franqueza. Comecei a dar-me conta, e escrevi sobre isso,
num livro que publiquei em 2006 chamado Revoltas Escravas. Foi
a primeira edição desse livro aqui, que depois veio a ser traduzido nos Estados
Unidos e em Inglaterra. E, depois, foi reeditado em Portugal no ano passado.
Mas, em 2006 dei-me conta do peso disto em França, porque um colega meu
francês, que se chamava Olivier Pétré-Grenouilleau, começou a ser alvo de uma
pressão enorme. Queriam expulsá-lo da universidade e por aí fora. Ele ainda me
pediu para que eu testemunhasse a seu favor, e eu acedi. Portanto, na altura,
eu apercebi-me disso em França e nos Estados Unidos, e escrevi.
Chegou a todo o lado.
Eu sabia que iria chegar cá, mais cedo ou
mais tarde. Mas, quando chegou, fui colhido de surpresa. E chegou em 2017, na
sequência da ida do presidente da República ao Senegal e das declarações que
ele fez sobre a escravatura, e sobre Portugal ter abolido a escravatura. E, aí,
de repente, houve um sector da opinião pública, ligado sobretudo à
extrema-esquerda, que caiu em cima dele. E aí eu percebi a dimensão que aquilo
tinha. Fui-me apercebendo. Já mais recentemente, em 2017, cheguei a escrever um
artigo onde contei a história do meu colega Olivier Grenouilleau e a pressão
enorme que os grupos de activistas de afrodescendentes exerceram, com ameaças à
família e por aí fora. E sabe porquê? Porque ele deu uma entrevista em que
disse coisas deste género, que para qualquer historiador são óbvias e evidentes:
o objectivo dos negreiros não era matar pessoas, era transportá-las vivas, se
possível, para o outro lado do Atlântico. Por causa disso, acharam que ele era
um perigoso racista, e exerceram imediatamente pressão para que fosse expulso
da universidade. Isso gerou, de uma parte dos historiadores franceses, um
movimento de solidariedade. Outros historiadores franceses antagonizaram-no,
mas os mais prestigiados, diria eu, puseram-se do lado dele e criaram até um
movimento chamado Liberté pour l’Histoire, em sua defesa.
A pressão agora é tal que, se fosse
hoje, talvez esses historiadores já não tivessem coragem de se insurgir em
defesa de Grenouilleau…
Se fosse agora já não seria assim, mas
aqui já estou a especular. Em Portugal não tem sido assim, porque isto é um
debate que dura desde 2017, portanto já vai para seis anos, e têm sido
pouquíssimos os historiadores que se têm pronunciado.
No seu caso, tem-se pronunciado bastante. Isso tem-lhe valido muitas
críticas?
Sim, sim [não conseguem cancelar? Difamem]. Nas redes sociais, sim, sou um
alvo a abater. Mas eu acho que posso bem com isso.
via: https://pleitosapostilas.blogspot.com/
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