Contrato com a velha do alfange


 

A Ceifeira visitou-me e propôs fornecer-me algo que eu muito desejava a troco de me levar para o Além. Disse que me permitia despedir-me dos entes queridos e dos amigos. Perguntei se o podia fazer presencialmente, respondeu-me que sim.

Mostrei-lhe a minha lista de amigos do Facebook e disse-lhe que despedir-me de mil pessoas podia levar algum tempo. Olhou-me gravemente, com aqueles olhos inteiramente vazios, e propôs-me que publicasse um aviso com local e data para proceder às despedidas, e que eu só iria procurar, posteriormente, aqueles que faltassem a esta chamada. Anui e agendei tudo para daí a uma semana, publicando o aviso onde se podia ler «A morte vai levar-me, mas permite que me despeça pessoalmente de todos os meus amigos. Vem despedir-te de mim no dia 29 de Fevereiro de 2024. Se faltares terei de procurar-te noutra altura».

Dada por satisfeita, a sinistra figura já se afastava quando suspendeu a marcha e permaneceu imóvel por uns segundos, depois virou-se abruptamente e fixou-me apreensiva. Eu permanecei imóvel. Será que ela tinha descoberto a minha artimanha? Vagarosamente, acabou por retomar o caminho, provavelmente para anunciar a partida de mais almas destemperadas.

Na data aprazada compareceram uma trintena de ‘amigos’ a quem dispensei logo um expressivo: - Ena, com amigos como vocês, quem precisa de inimigos?! Mas a culpa era inteiramente minha, que os elegera e qualificara como tal. Se desejava exclusivamente amigos inteligentes devia tê-los cultivado devidamente. Imaginara, eu, que anunciando as premissas do acordo os meus amigos optassem por faltar ao encontro, contribuindo, assim, para um repetido e considerável adiamento da minha última viagem.
Ainda assim o rácio de presenças não era mau. Teria de publicar a tal convocatória mais vezes, para outras datas atempadamente aprazadas, e isso significava ganhar tempo, bastante tempo.

Dei disso conhecimento à mefistofélica figura que obviamente se apresentara na agendada despedida. Mas eu não previra que o pérfido e fedorento negrume dominasse as tecnologias informáticas e conhecesse algoritmos que permitiam colocar nas caixas de mensagens dos computadores e telemóveis de todos os meus contactos a minha convocatória para a derradeira festa.

Em menos de dez dias o assunto estava arrumado e um enorme folguedo preparado, com pantagruélicas comezainas, bebida à discrição e um gigantesco mastro de folhagem natural salpicada com bandeirolas coloridas e balões de papel, parecendo festa dos santos populares. No ar, o cheiro dos frangos no churrasco e das febras na brasa misturavam-se com o odor adocicado que se desprendia dos braçados de jasmim e alfazema, espalhados pelo recinto.

Os convivas comiam alarvemente, conversavam animados, dançavam ao som de concertinas tocadas por macacos empoleirados em árvores africanas, que nunca vira aqui na terra, e rodopiavam e saltavam que nem loucos. Só à minha aproximação paravam, e olhavam-me com meio sorriso no rosto caminhando para aquela expressão de tristeza evidenciando o habitual pesar fúnebre e também a culpa pela folia a que se entregavam em momento de fenecimento meu.

E eu percorria o recinto cumprimentando rostos mais ou menos familiares, caminhando sem sentir os pés tocarem no chão. Flutuava por ali, já meio-desencarnado do corpo material, tornando-me aos poucos numa matéria etérea, translúcida e ectoplásmica. Afastava-me, desvanecendo, naquele cenário, deixando gradualmente de ver e de sentir os odores e a música simiesca… e esvaindo-se o sonho adormeci, profundamente.

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