Dia Mundial das Cooperativas

 


Inevitavelmente, ao ouvir falar em cooperativas, penso logo nas adegas cooperativas — esse supra-sumo das organizações democráticas e populares, alcandoradas a verdadeiros laboratórios onde se produziam néctares divinos. Ah, as saudosas adegas cooperativas… tão robustas como carvalhos centenários, tão simbólicas como o sino da igreja ao Domingo, e tão frequentadas como a mercearia ao fim da tarde. O seu desaparecimento, lento e inexorável como a digestão de uma feijoada ao almoço, deixou um rasto de saudade que ainda hoje se insinua nas conversas entre dentes gastos e copos (agora de supermercado) meio vazios.

As adegas cooperativas eram, para muitos, muito mais do que simples instituições de fermentação alcoólica em escala semi-industrial — eram o coração palpitante das vilas e das pequenas cidades. Era ali que o lavrador de mãos encortiçadas entregava, com a solenidade de um rito ancestral, as uvas que o sol algarvio lhe cozera na cepa. Mas a modernidade, essa madrasta apressada e algo snobe, chegou com o seu cortejo de vinhos “de autor”, “biológicos”, “com taninos civilizados” e rótulos com nomes impronunciáveis em francês. E as cooperativas, com os seus depósitos de cimento, os cartazes desbotados com as normas da Junta Nacional do Vinho – depois Direcção-Geral de Agricultura – e os seus enólogos de bigode farfalhudo, foram perdendo espaço, charme e paciência. O consumidor passou a querer vinhos com nomes de montanha e sotaque estrangeiro, desprezando o honesto “Tinto da Cooperativa”, esse fiel escudeiro das bifanas e das discussões políticas ao balcão das outras adegas — as urbanas, onde o povo ainda vai matar a sede entre dois silêncios.

Com a desactivação das adegas, abateu-se uma pequena tragédia sobre as vilas: homens outrora sóbrios em casa, mas levemente eufóricos na cooperativa, começaram a vaguear tristonhos, como galos sem poleiro. Já não havia onde ir pesar o mosto, nem onde contar, com a habitual dose de exagero, o número de caixas apanhadas “só com a ajuda do meu sobrinho, que tem asma, coitado”. E as festas da vindima? Extintas! Substituídas por newsletters de produtores boutique que enviam garrafas numeradas a clientes de Lisboa, os quais sorvem o vinho com o mindinho levantado e a sobrancelha arqueada. O povo, esse, ficou com o Lidl.

E contudo, há algo de épico — quase bíblico — na figura daquele último associado da cooperativa: o homem de boina, que ainda guarda, num barracão húmido, os registos das entregas dos anos oitenta, como quem preserva a última página de um Evangelho Rústico. Quando o encontramos, sorri com tristeza e uma réstia de orgulho, ao lembrar os tempos em que se bebia o vinho da torneira da adega, ao preço de uma moedinha, e se jurava, com convicção médica, que “o risca-de-seda de Lagos dava cabo de qualquer constipação”.

Talvez um dia regressem — não as adegas como eram, talvez, mas o espírito de comunhão, de saber partilhado, e de orgulho na vinha pobre mas valente. Até lá, brindemos (com um copo, vá, de garrafa — mas ainda com rolha de cortiça) à memória das adegas cooperativas.

Que fermentem eternamente no barril da saudade popular.



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