Toca e Foge

 


Outra memória da juventude suscitada por esta pintura (The Runaway Knock, de S. A. Forbes, 1888).

Havia, outrora, um jogo pueril, quase ritual, que fazia parte do calendário secreto da infância: bater à porta do vizinho e fugir, antes que a aldraba concluísse o seu eco metálico. Era a inocência travestida de travessura, uma maneira ingénua de experimentar a adrenalina do proibido.

O vizinho, ou a vizinha, surgia à soleira com o sobrolho franzido, olhando o vazio do pátio, a sombra do beco ou o alinhamento das portadas. Nada. Apenas o silêncio cúmplice da rua. A intriga ficava-lhe gravada no rosto, e era esse o triunfo da pequena malícia, provocar o espanto, a dúvida, a suspeita de que o mundo guardava mistérios insondáveis mesmo à porta de casa.

Nos bairros mais antigos, de ruas estreitas e calçadas polidas pelo tempo, a corrida fazia-se em velocidade, com o coração a galopar tanto como os pés. Os postigos fechados pareciam observar em segredo, e cada esquina era refúgio possível. Já nos arrabaldes modernos, com prédios altos e campainhas eléctricas, o jogo adquiria outra música: um zumbido breve, seguido da debandada pelos corredores anónimos, onde o eco dos passos se confundia com o rumor distante do trânsito.

A cultura de cada rua temperava a brincadeira. Havia vizinhas de avental que, desconfiadas, juravam a pés juntos que era “a canalha do rés-do-chão”, e havia velhos benevolentes que abriam a porta sorrindo, fingindo ignorar o ardil, como se participassem também no enredo. Noutros lugares, mais sisudos, a repetição da façanha arriscava represálias, sermões, puxões de orelhas, até o rosnar irritado “um dia será a tua vez”.

Mas, no fundo, essa vetusta traquinice era a pedagogia secreta da infância. Aprendia-se a medir o tempo exacto entre o toque e a fuga, a calcular distâncias, a escutar o som da fechadura como quem aguarda o tiro de partida de uma corrida. Aprendia-se, sobretudo, a saborear o poder da invisibilidade, como se o mundo inteiro fosse palco e nós actores disfarçados.

Hoje, raramente se vê tal arte, talvez porque as ruas mudaram, ou porque os vizinhos perderam a paciência, ou porque as crianças já não treinam o riso nas pequenas sombras do perigo. Ainda assim, quem o viveu guarda a memória desse instante breve em que a porta se abria para o nada, e o nada era, afinal, um festim secreto de gargalhadas ao virar da esquina.


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