S. Gonçalo segundo Gil Vicente



Aproxima-se o Dia do Município, amiúde confundido com o da cidade (que, esse sim, é a 27 de Janeiro), e eu dei em lavrar esta crónica, inspirada nesse feriado que Lagos celebra a 27 de Outubro.

Senhores e senhoras de fino ouvido e paciência infinita, escutai-me um instante, que não vos tomarei mais tempo do que o diabo leva a rir-se de um frade. Já o mestre Gil Vicente ia velho e trôpego, com a memória a falhar-lhe, mas ainda assim, por artes do destino ou teimosia minha, logrei entrevistá-lo; sim, o próprio pai dos dramaturgos lusos, esse que pôs reis e vilões a falar no mesmo palco sem pedir licença a ninguém.

Não foi empresa fácil pois o homem já confundia o Auto da Barca com o das Almas, e chamava-me ora anjo, ora mafarrico. Ainda assim, entre um bocejo e uma praga, lá me contou quanto pôde sobre São Gonçalo de Lagos e o resto inventei eu, que também é ofício de autor.

Desses ditos, memórias e esquecimentos nasceu esta micrónica que ora vos apresento, mistura de fé e troça, com algum enxofre e muita devoção. Se o mestre Gil lá do Céu me ouvir, há-de rir-se, ou chamar-me a prestar contas. Seja o que Ele quiser, e o público também.

Diz-se, e com razão, que cada cidade tem o seu santo que lhe serve de espelho. Lisboa tem o António, que fala com os peixes; no Porto, o João, que acende fogueiras; em Braga, o Jesus bonzinho, que vigia olhando longe, como uma gigantesca suricata, e em Lagos, temos S. Gonçalo, frade dominicano de boa alma, que de tanto amar o mar, acabou por ser o seu capelão.

Não se julgue que o dito santo lacobrigense se limitou a benzer redes e acalmar borrascas. Não! S. Gonçalo foi, é e será o mais prático dos taumaturgos; santo de atuns, remendos e milagreiro de ocasião, sempre pronto a acudir ao conterrâneo aflito, desde que este lhe prometa uma vela, uma sardinha e um pouco de fé, ainda que racionada.

Nasceu o moço Gonçalo nesta mui piscosa Lagos, quando os homens ainda lavavam as barbas ao jeito mourisco e os barcos eram de remos, pequenas velas e muita esperança. Cresceu entre redes, sermões e espinhas, e dizem que, ainda menino pregava às gaivotas sobre a vaidade do mundo, o que causava grande alvoroço entre as aves e riso entre os homens. Entrou, consequentemente, para frade, não por falta de engenho para o comércio, mas porque os peixes lhe pediram intercessão; e quem é o homem que nega súplica a um pargo?

Por via disso, fez S. Gonçalo milagres de toda a ordem e feitio, e alguns de desordem também. Conta-se que, em certa noite de temporal, salvou um barco com três rezas e meia, sendo a meia reza apenas um “Ámen” dito a tempo. Noutra ocasião, multiplicou sardinhas para um banquete em honra de Nª Sr.ª da Piedade, o que prova que a santidade é irmã da boa cozinha.

Mestre Gil pigarreou, lançando o olhar em redor à procura duma garrafinha de uísque, à maneira do professor Hermano Saraiva, que a usava para aclarar a voz, mas, achando-se sem tal tónico, prosseguiu o depoimento.

Conta-se, também, entre risos e terços mal rezados, que certo dia S. Gonçalo decidiu acudir às moças que suspiravam de amores tardios. Era um tempo em que as donzelas já rezavam com mais esperança do que fé, e o santo, condoído, entendeu que a melhor esmola seria dar-lhes um empurrãozinho… divino.

Uma certa noite, ao soar as doze no sino da igreja, S. Gonçalo desceu do seu nicho e foi passear pela margem do rio. Bateu três vezes com o bordão na muralha, e logo o rio em vez de correr para o mar, começou a correr para trás - tal era a magia do santo que até terá influenciado um tal David Copperfield muitos séculos depois.

Os rapazes, que já dormiam de ressaca e fadiga, acordaram de súbito com ânimo renovado e um fervor de namoro que só podia vir do Céu, ou de coisa parecida concentrada em pequenas pastilhas azúis.

Na manhã seguinte, metade da vila jurava ter visto sombras de véus e capas a deambular pelas ruas, e a outra metade contava que o sino da torre tocara Ave-Maria ao contrário. E nove meses depois, nasceram tantas crianças que o pároco teve de benzer a água num tanque de rega, para as baptizar.

Mas o mais curioso dos seus prodígios foi o da chamada “filosofia do vento”. Ensinava o santo que o vento do Norte trazia frio e indiferença, ambos difíceis de aquecer, enquanto o Levante, caprichoso como certas mulheres, ora soprava loucura, ora poesia, o que, no fim das contas, vem a dar praticamente no mesmo. Ainda hoje, os de “Lágues”, quando lhes dá para filosofar, dizem que o vento mudou; quem sabe se não é o próprio S. Gonçalo a soprar-lhes ao ouvido?

Depois da sua morte (que na verdade terá sido mais uma viagem do que um passamento), o santo continuou a visitar Lagos com o mesmo zelo que um fiscal da ASAE. Em cada 27 de Outubro, a cidade veste-se de festa; há procissão, foguetes e discursos, e cada político acha-se um pouco mais virtuoso e inspirado do que o outro. O santo, lá do seu pedestal, no Chão Queimado, observa tudo com aquele sorriso discreto de quem já viu muita missa e pouca conversão; ou será sorriso descorado de quem está incomodado com os dejectos das gaivotas que lhe escorrem pelo rosto?

Os lacobrigenses, por seu turno, herdaram de S. Gonçalo uma fé um tanto desconjuntada, uma filosofia salgada de maresia e uma inclinação incurável para beber… em sua memória. Foi por ele que Lagos aprendeu que a vida se parece com o mar que a beija: ora vai, ora vem; ora dá peixe, ora dá naufrágio; há calmaria à segunda-feira e borrasca ao Domingo.

Assim é S. Gonçalo, santo de remendos e esperanças, padroeiro dos que se molham, dos que prometem e dos que tardam em cumprir. E se algum dia o virdes, em sonhos ou em bruma, não lhe peçais ouro nem glória, pedi-lhe apenas um vento amigo, um peixe gordo ou um bom pretexto para rir. Porque, no fundo, S. Gonçalo não é apenas o padroeiro de Lagos, é o patrono do humor local; aquele que ensina que a vida, como o mar, é melhor navegada com alma despreocupada e língua afiada.

O vate do drama trágico-cómico já semicerrava os olhos de fadiga, recostado no desconfortável banco traseiro do velho Ford Prefect. Saí então de mansinho, sem bater a porta, deixando-o a murmurar entre sonhos: “Mais vale um asno que me carregue do que um cavalo que me derrube!”


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