Crónica de um Ornamento

 


Há criaturas que, por desígnio insondável ou distracção da Natureza, atravessam a existência sem nunca terem exibido qualquer préstimo palpável à sociedade que as alberga. Falo, claro, de um Ornamento Bípede, um indivíduo cuja mais nobre utilidade, caso estivéssemos a considerar uma ocupação há cinco décadas atrás, teria sido a de permanecer hirto ao lado do televisor, servindo de interruptor humano para alternar entre a RTP1 e a RTP2, dado não existir ainda o mágico telecomando.

Mas a vida é generosa para com os inúteis que se colocam bem. O progresso, esse cúmplice implacável do absurdo, retirou-lhe a última esperança de utilidade prática, o comando remoto surgiu e, com ele, a obsolescência do Homem-Pivô-de-Televisor. Seria de esperar que se recolhesse, resignado, ao limbo discreto dos inactivos funcionais. Nada disso. O nosso herói, ou melhor, o nosso bibelô institucional, reinventou-se.

Hoje, não mexe em botões, mas exibe com galhardia os seus. Vive da imagem, que cultiva com a sofreguidão de um narciso cultivado com o melhor húmus. Circula por congressos onde nada se discute, preside a comissões de coisa nenhuma, ostenta comendas que lhe são atribuídas pela sua inquestionável aptidão para a imobilidade. Foi elevado a dignitário do Nefando Instituto para a Promoção do Nada em Particular, e membro honorário do Grémio Internacional dos Cargos Pomposos e Irrelevantes.

O seu currículo é um rosário de nulidades laureadas. “Consultor Estratégico para a Visibilidade Transversal de Experiências Interdisciplinares”, seja lá o que isso for. Publicou um artigo sobre "Empatia em Ambientes Virtuais" e proferiu uma conferência sobre “O Silêncio como Forma de Expressão nas Organizações de Baixo Impacto”. O público não pateou, portanto gostou, ainda que a sala estivesse vazia.

É um vulto do nosso tempo, não por mérito, mas por ausência de alternativa. Onde dantes se exigia acção, hoje basta parecer ocupado. O inútil profissional tornou-se património simbólico da mediocridade organizada. Já ninguém espera dele o menor gesto de esforço: o seu simples estar é considerado contributo bastante. E tem porte para isso, como um candeeiro de iluminação pública, desses modernos a LED, de que nem se percebe a luz que irradiam.

E, no entanto, ali vai ele, gravata de nó duplo, peito eriçado de broches comemorativos de sessões protocolares, a receber o enésimo “Prémio Excelência em Relevância Potencial” com um semblante que diz tudo e nada.

E se o colocássemos ao lado do televisor, vá, para ver se ainda teria alguma utilidade? Mas desconfio que não. Seria demasiado exigente. E ele, coitado, já se cansa só de existir.

 


Um cagalhão na multidão

 


Há na presença de um cagalhão no meio de uma multidão uma irrupção ontológica que poucos ousam considerar com a devida reverência. Os mais superficiais vêem apenas excremento; os mais atentos pressentem um vestígio do Absoluto, um rasto de matéria que, tendo sido corpo, ousa permanecer quando o corpo já partiu.

O cagalhão, desprezado, escarnecido, impõe-se, todavia, como um sinal. Ele não é apenas o que resta da digestão, mas o que resta do Ser quando o Ser já não se pode justificar senão pela sua consequência mais inadiável, a expulsão. Ali, no chão de calçada onde pisam os distraídos e os apressados, jaz um manifesto contra a transcendência. A sua existência grita "Fui parte de alguém. Fui quente. Fui necessário. Agora sou repulsa e espanto." 

Na multidão, esse humilde dejecto interrompe o fluxo do real; faz-se intervalo. Onde antes havia apenas o ruído indistinto de passos, murmúrios e afazeres, instala-se o silêncio horrorizado, o desvio súbito, o levantar da saia, o puxar da criança. O cagalhão obriga à consciência do caminho, como se dissesse “Atenção, passais por mim como passais pela vida, de olhar para cima, sem ver o que importa.” 

Há quem diga que o cagalhão é democrático porque nivela o banqueiro e o mendigo, o académico e o carteirista. Nenhum deles o evita sem alterar o passo. Nenhum ousa negá-lo sem se desmentir a si mesmo. Se há algo que nos torna humanos, mais do que a razão, mais do que a linguagem, é o cagalhão e o constrangimento que provoca perante a merda. 

Por vezes, o cagalhão no meio da multidão não é apenas literal. É símbolo, é um intruso, um excluído, que não devia estar ali mas insiste em estar. É o filósofo entre contabilistas, o poeta num congresso de engenheiros, o louco na assembleia da razão. A sua função é desestabilizar, incomodar, recordar que a realidade não é higiénica, nem linear, nem confortável. É, antes, fecal e fecunda. 

E se, porventura, o cagalhão for pisado, ai! Então opera-se a catarse. A multidão, unida na repulsa, partilha o rito da tragédia, o infortúnio de um revela a fragilidade de todos. E, por instantes, somos comunidade. Não de ideias, não de afectos, mas de nojo. Uma comunhão visceral. 

Assim, o cagalhão no meio da multidão não deve ser removido com pressa, mas contemplado como metáfora. Ele é a matéria caída que se ergue em sentido. O que foi deixado para trás, mas nos confronta com o que somos. O que sai de nós, mas nos devolve a nós.

Em última análise, quem nunca reflectiu sobre um cagalhão talvez não esteja verdadeiramente apto a compreender a condição humana.

 

-

 

 


A Lousa e o lápis de pedra

 


Lembro-me bem do som, agudo, mineral, do lápis de pedra a riscar a ardósia. Havia ali qualquer coisa de mágico, como se cada traço obedecesse a um sortilégio. A pedra era pequena, um rectângulo negro limitado por uma moldura de madeira de pinho encardida pelo tempo e pelas mãos infantis, mas dentro dela cabia o mundo inteiro.

A professora caminhava entre as carteiras com a solenidade de quem carrega segredos. Detinha-se aqui e ali, corrigia um traço, soprava uma sílaba, desenhava uma letra com mão firme corrigindo algo indecifrável. Às vezes, bastava um olhar, não de censura, mas de encorajamento para que a ardósia se povoasse de novos signos. Era um espaço de magia silenciosa, onde o tempo parecia suspenso, e cada palavra desenhada valia por mil ditas.

O lápis de pedra deixava um rasto esbranquiçado, assim se lia a tonalidade cinza sobre o fundo negro, que ia ganhando corpo à medida que o pensamento se alinhava com a mão. O artista, concentrado, escrevia não apenas o que aprendera, mas também aquilo que, sem saber, começava a intuir: que há uma ligação secreta entre o gesto e o espírito, entre o traço e a memória.

E depois vinha o apagamento. A esponja húmida, ligeiramente fria ao toque, passava sobre a superfície escurecida e, num segundo, tudo desaparecia. As palavras que haviam sido erros e vitórias, os rabiscos tímidos e as construções orgulhosas, tudo voltava ao negro inicial. Mas não era uma perda, era um recomeço. Como quem lava o rosto para um novo dia, a ardósia preparava-se para outra lição, outra tentativa, outro milagre. Mesmo quando rachava não deixava de ter uso, sobretudo se a moldura ainda lhe garantia a integridade. Afligia, mas ainda servia.

Hoje, quando encaro os ecrãs brilhantes, dou por mim a suspirar por aquela simplicidade antiga. A ardósia ensinava-nos mais do que letras, mostrava-nos que tudo pode ser reescrito, que o erro não é o fim, mas parte do caminho; e que o saber, como a vida, se faz e desfaz numa dança constante de memória e esquecimento.

Será que deixámos mesmo de escrever na ardósia, ou só mudámos de superfície? Gostava de acreditar que sim, mas temo que a matéria tenha modificado o espírito. Já o fez no passado, quando à mão afeiçoámos os primeiros instrumentos pré-históricos; quando o domínio do fogo alterou a compreensão do Mundo, ou quando o computador alterou a velocidade de escrever ou a IA suplantou a capacidade de arquivar, selecionar e relacionar conhecimentos. 

Será que a mão, extensão que materializa o pensamento, ainda procura o sentido no meio do caos, como fazia naqueles tempos primordiais?!

 


Felizmente, ainda se vendem.


Mestre Chico

 


Francisco Lourenço Castelo nasceu a 28 de Julho de 1915 (exactamente há 110 anos) e faleceu a 2 de Março de 1985 (há 40 anos). Era mestre serralheiro e afinador de máquinas da indústria conserveira. Para além do labor diário na fábrica, fazia portas, portões, gradeamentos, formas para a fundição de chumbo e outros utensílios e equipamentos em ferro.

A partir de um livro de modelos, O Serralheiro Moderno, de 1936, escolhia o desenho da peça a executar e, com uma ou outra alteração ditada pela falta de determinada matéria-prima, levava a cabo o trabalho com esmero, atribuindo especial importância à simplicidade e à funcionalidade, por vezes em detrimento da estética da peça. Interessavam-lhe sobretudo os objectos duradouros e práticos, qualidades talvez moldadas pela exigência das maquinarias que cravavam, lavavam e esterilizavam as latas de conservas.

Na sua oficina particular, destacava-se um imponente balancé em ferro fundido: uma roda de balanço que imprimia, através de uma enorme rosca, uma pressão gigantesca, permitindo comprimir chapas, cantoneiras e tubos, moldando-os conforme a forma que os moldes previamente construídos lhes conferiam, fosse para uma balaustrada doméstica, um corrimão de varandim para uma traineira, ou para as sugestivas curvaturas de topo de algum portão rural.

Ali existia também um interessante e vetusto aparelho bifásico de soldar a arco voltaico, de robusta construção britânica, a par de outras máquinas-ferramentas que as décadas de serviço já haviam tornado dignas de museu, mas todas funcionavam. Era frequente ter de inventar ferramentas para resolver problemas específicos: chaves para montar e desmontar fixadores de difícil acesso em loiça sanitária, ou para alcançar os recantos ocultos das enormes cravadeiras sem necessidade de as desmontar integralmente.

Era engenhoso, meticuloso e paciente, à imagem de tantos outros mestres dos mais variados misteres, que, ao longo da vida, se socorreram da imaginação e do engenho para resolverem aquilo que, de outro modo, apenas avultadas quantias de dinheiro poderiam suprir.

A lanterna de parede exterior, que ainda hoje resiste ao tempo, é um objecto de inequívoca beleza que, à sua modesta escala, nos transmite as mesmas sensações que terão sentido os primeiros espectadores das grandes arquitecturas do ferro do século XIX: as deslumbrantes gares ferroviárias, pontes, quiosques, estufas e pavilhões de jardim, escadarias e varandas de imaginosos rendilhados onde o ferro forjado ou fundido se dobrava e torcia ao sabor da fantasia de poéticos artífices.

A eufemística “console para iluminação”, de que aqui se apresenta o modelo, é executada em vergalhão quadrado de 20 mm e barra de 20 mm x 12 mm. Após intenso e aturado trabalho de corte das várias peças, torção de algumas ao fogo da forja e remate na bigorna; após a soldadura eléctrica que funde e une os diferentes elementos; após a passagem com o disco de esmeril que alisa as rebarbas dos cortes e os excessos da soldadura, seguia-se a pintura em tom escuro e mate e, por fim, o meu singelo contributo: fazer passar o cabo eléctrico, instalar o casquilho de porcelana e colocar a lâmpada de tungsténio que havia de iluminar a noite a partir daquela admirável estrutura.

Agora, já se enxerga no escuro, Mestre Chico.

 


Cravadeiras numa fábrica de Sesimbra, idênticas às que o Mestre Chico tinha sob responsabilidade.



Cravadeira Luban, primeira à esquerda, seguida por duas cravadeiras mais antigas,
na fábrica da Ribeira - anos 60. Todas iguais às existentes na Fábrica Abel Figueiredo Luís,
onde Francisco Lourenço Castelo era o responsável técnico pela sua operacionalidade.  

Uma cravadeira 'moderna' dos anos 70

Outras produções do autor

EXERCÍCIOS DE ESCRITA E FICÇÃO

CLICAR NA IMAGEM ABAIXO PARA DESCARREGAR




ARQUIVO SOBRE MAR, INDÚSTRIA E HISTÓRIA
PARA DESCARREGAR
CLICAR NA IMAGEM  ABAIXO


Rasgando o Manual

 




Tinha lavrado no meu imaginário Manual de Autonegação para Almas Prudentes, germinado no início do novo milénio, que o segredo da vida reside em manter uma fronteira intransponível entre a realidade e a fantasia, erguendo, entre ambas, uma muralha de vigilância constante, onde não penetrem os devaneios, as extravagâncias nem as viscerais pulsões que tantas vezes nos arrastam ao abismo ou à glória. Enfim, guardar-se, como quem se protege da COVID, das excentricidades do desejo, das arritmias da esperança e das tonturas que os sonhos costumam causar a quem os leva a sério.

Viver, segundo esta doutrina, é um exercício de contenção lúcida: evitar que os ímpetos do desejo, por mais brilhantes que se mostrem, perturbem a tranquilidade do quotidiano e contaminem, com o seu fulgor febril, o mundo concreto das relações. É uma filosofia que preconiza o equilíbrio, a moderação, a harmonia; um ideal de vida isenta de sobressaltos, sem as agruras do entusiasmo nem as vertigens da esperança. Uma vida de superfície tranquila, onde as águas não se encrespam e o coração bate, sim, mas em surdina. A neutralidade emocional torna-se, aos poucos, uma espécie de armadura, pesada, mas eficaz.

No entanto, essa blindagem do real contra o imaginário, esse cordão sanitário entre o que se sonha e o que se faz, tem o seu preço. Ao interditar o sonho, cerceia-se a germinação das ideias que fundam e transformam o mundo. Impedir que as extravagâncias influenciem a realidade é, talvez, impedir a própria invenção da vida. Então não são os impulsos, as intuições e as desrazões súbitas que fazem nascer os grandes actos, os feitos eternos e as conquistas duradouras?!

Imaginemos alguém que admira, por exemplo, Tom Waits e Manuel João Vieira; como pode essa pessoa escolher uma vida sem ousar, sem risco, permanentemente com medo do julgamento dos outros?!

Ora aqui está um magnífico repto para reflexão. Admirar Tom Waits e Manuel João Vieira e, ao mesmo tempo, viver uma vida contida, asséptica, ordeira… é como venerar o deus Baco e fazer voto de sobriedade. Tom Waits, com aquela voz de prego enferrujado e alma de poeta bêbado, não canta a vida: esgana-a, mastiga-a, cospe-a em forma de beleza deformada. Ele vive no risco, na margem, no absurdo e convida-nos a dançar sobre os estilhaços disso tudo. Cada música sua é uma ode ao que é torto, falhado, mas vivo, visceralmente vivo.

E o Manuel João Vieira, esse príncipe do delírio luso que é a própria encarnação da ironia e da transgressão. Brinca com o kitsch como um demiurgo pop, desafia o bom gosto com uma sofisticação burlesca, e faz do absurdo um acto de resistência. O seu génio é uma gargalhada desobediente ao conforto estabelecido.

Então, como é que alguém que os admira pode escolher uma vida sem rasgo? A resposta é, no mínimo, incómoda: pela covardia disfarçada de lucidez. É que o admirador de Waits e Vieira sabe que existe um mundo mais interessante do que aquele, asséptico, onde se move. Um mundo onde se grita, se ama, se falha, se perde, se inventa. E em vez de dar um salto arrebatado, transgressor, limita-se a arrastar os pés polindo a calçada do quotidiano.

O rigor cartesiano da existência sem sobressaltos, se por um lado evita os tropeços, por outro inibe os voos. A alma, enclausurada numa austeridade emocional, facilmente resvala para uma melancolia elegante mas estéril, uma vida insípida, desbotada, onde a beleza é medida e o risco evitado. Vive-se, sim, com serenidade, mas uma serenidade talvez demasiado próxima da apatia.

Ainda assim, não se deve desprezar o valor dessa paz. Num mundo saturado de ruído, imediatismo e paixão desgovernada, a escolha de uma vida ordeira e livre dos caprichos do desejo é, ela própria, uma forma de rebeldia serena. Há quem encontre, nesse comedimento, uma felicidade discreta sem espectáculo nem sobressaltos, um contentamento feito de silêncio, tempo lento e previsibilidade. Um jardim sem rosas, mas também sem espinhos. Uma serenidade quase clínica, como a de um doente sedado que já não sente nem dor... nem emoção.

Há quem ache este o único modo sensato de existir. E talvez não estejam totalmente errados. Os exaltados vivem aflitos, os apaixonados sofrem, os visionários ardem depressa e os rebeldes acabam quase sempre na margem da estrada, rodeados de dívidas e arrependimentos. A contenção é segura. É aborrecida, sim, mas segura.

No fundo, trata-se de uma escolha, entre uma vida fervilhante mas caótica, onde se tropeça nos próprios desejos, e outra, higiénica e inodora, onde nada dói porque nada se sente. A primeira arrisca a ruína; a segunda garante o tédio. É inequívoco que os que ousam sonhar têm a irritante tendência de querer viver. Ora, há que evitar tudo o que implique risco, esforço, frustração, ou glória. As paixões, perigosas como fogos de Verão, são substituídas por hobbies seguros: Sudoku, jardinagem, ou indignação nas redes sociais. E, em vez disso, constrói-se uma existência exemplar, discreta, funcional, com um sorriso convencional e contas em dia.

E no fim? No fim há a grande recompensa: uma velhice saudável, lúcida, e perfeitamente desprovida de memórias que valham a pena. Uma colecção de dias iguais, guardados como recibos antigos. Nenhuma tragédia, mas também nenhum feito. Nenhum escândalo, mas também nenhum milagre. Os cemitérios estão cheios de almas assim, bem-comportadas e irrepreensivelmente imóveis.

Mas, porque é que há gente que vive, ou procura viver, desta forma? Creio que uma das razões, talvez até a mais importante, assenta no facto de que desde cedo somos amestrados para caber. Para caber na sala de aula, na profissão decente, na fotografia da família e, sobretudo, na ideia que os outros têm de nós. O que nos ensinam e pedem não é que sejamos ousados, mas submissos, a obediência ao bom senso, ao decoro, ao “não faças ondas”. A educação é, frequentemente, um subtil processo de castração simbólica, onde os impulsos mais autênticos, emocionais, até espirituais, são tratados como excentricidades ou delírios ameaçadores.

O julgamento dos outros assume-se como um tribunal interior permanente, um autêntico tribunal do Santo Ofício. É como se vivêssemos debaixo de um olhar invisível, dos pais, dos professores, dos colegas, da sociedade, de Deus, do algoritmo que regula o funcionamento da rede social; e esse olhar condiciona e molda a nossa acção. Rir alto demais? Risco. Dançar sem jeito? Risco. Amar quem não se deve, dizer o que não convém, seguir uma ideia absurda? Tudo riscos. Por isso, muitos não escolhem conscientemente a vida sem rasgo, cedem-lhe, derrotados pela exaustão de tentar parecer normais. Passam a vida a pedir desculpa por serem quem são e a usar a moderação como couraça. Tornam-se mestres da contenção, especialistas em abafar qualquer faísca antes que possa incendiar a reputação.

Talvez o equilíbrio esteja, como sempre, na justa medida; não deixar que os delírios conduzam a vida, mas tampouco expulsá-los dela. Permitir-lhes o lugar do hóspede, mas não do senhor. Uma existência inteiramente asséptica de paixão não é mais virtuosa, é apenas mais previsível. E a previsibilidade, quando não alimentada por algum frémito do imaginário, acaba por ser simplesmente entediante. Pois aquela vida que parecia tão tranquila e segura revela, finalmente, o que é, um palco demasiado breve para se viver apenas nos bastidores. Viver, afinal, é encontrar o exacto ponto onde a ousadia não nos destrói, mas também não nos abandona. É aceitar que a realidade, quando habitada com sensibilidade e arte, pode ser lugar de sonho.

Para viver sem temer a própria sombra, há que reconhecer que somos feitos também de falhas, contradições e zonas opacas, e que não há nisso nada de vergonhoso. Para viver sem o peso do juízo alheio, há que compreender a natureza de quem julga: quase sempre, os que censuram são os que não tiveram coragem de fazer. Os que exclamam: - Excêntrico! Perigoso! Irresponsável! São, muitas vezes, os que frustraram em si mesmos a audácia que agora vêem e criticam no outro.

Não devemos desculpar-nos por sermos como somos. Não devemos viver para ser compreendidos pelos outros, mas sim para não nos trairmos. Devemos viver com autenticidade, não com permissão.

E quanto à felicidade, esse conceito envernizado, higienizado e formatado pela norma social e pelo marketing da alma, talvez o melhor seja deixá-la em paz. Não a perseguir como quem corre atrás de um balão ao vento. Em vez disso, procurar viver com autenticidade, fruindo o momento, entregues àquilo que verdadeiramente nos move e aceitando o que vier como consequência, não como recompensa.

A felicidade deve chegar como uma visita inesperada. E se não chegar… que ao menos não tenhamos vivido à espera dela.

Quem nunca se permitiu enlouquecer um pouco, viveu, no fundo, sempre em coma.

E, assim, rasguei o meu Manual de Autonegação para Almas Prudentes.


Ma Que Jeite?!

Eu posso escrever Má Que Jeite, ou Máquejête, e outro algarvio escrever MaKejeit, Maquejet ou Máquejêit, ou outra coisa qualquer que soe semelhante àquilo que se pronuncia, em Lagos ou em Olhão, no Alferce ou em Martinlongo, sendo certo que se pronuncia de forma diferente em vários locais do Algarve.

Qual das formas de grafar a pronúncia dessa palavra será a correcta? Para um uso corrente, em linguagem coloquial (popular), diria que qualquer uma estará correcta. Mas se pretendemos comunicar com falantes de outras paragens diferentes, teremos de recorrer ao rigor da norma linguística, pois só ela nos permite redigir com exactidão os valores fonéticos (o som das sílabas e das palavras), usando uma ferramenta muito específica que se chama Transcrição Fonética. Só dessa forma poderemos transmitir a falantes de pronuncias diferentes, dentro da mesma língua padrão, a exacta sonoridade das palavras. Tomemos este exemplo da expressão algarvia Má Que Jeite?!

A expressão algarvia "má que jeite?!", como interjeição interrogativa, é uma forma popular e expressiva de dizer, "Mas que jeito?!" ou "Por que razão?!", sendo típica da oralidade e do falar regional.

A transcrição fonética exacta pode variar ligeiramente consoante o falante, mas com base numa pronúncia típica algarvia (acentuada, rápida, algo fechada nas vogais e com certas elisões), uma proposta de transcrição no Alfabeto Fonético Internacional seria:

[ˈma kə ˈʒɐjtɨ] ou [ˈma kə ˈʒɐjtə]

[ˈma] – corresponde a "má", com o acento na vogal aberta [a]; o "s" de "mas" é muitas vezes elidido ou reduzido oralmente.

[kə] – redução do "que", comum na fala rápida e popular; a vogal reduz-se a uma schwa [ə], som neutro típico do português europeu.

[ˈʒɐjtɨ] ou [ˈʒɐjtə] – representa "jeite", com o j como fricativa palatal sonora [ʒ], e o ditongo [ɐj]; a vogal final pode ser [ɨ] (fechada e central, típica do português europeu) ou [ə] (mais reduzida), dependendo da região ou do grau de informalidade.

A interrogação na entoação não se transcreve com símbolos fonéticos básicos, mas pode ser assinalada prosodicamente com uma subida tonal.

Esta expressão é muitas vezes dita com emoção, surpresa ou desconfiança; e o tom, mais do que o conteúdo, revela o sentido.

No Sotavento algarvio (ex. Tavira, Olhão, Vila Real de Santo António) a pronúncia é rápida, com redução de vogais átonas, entoação expressiva e elisão de consoantes finais, resultando:

"Má que jeite?!" → [ˈma kə ˈʒɐjtɨ] ou [ˈma kə ˈʒɐjtə]

No Barlavento algarvio (ex. Lagos, Portimão, Monchique) a pronúncia pode apresentar menos redução de vogais, mas ainda apresenta um ritmo informal e vogais algo fechadas:

"Má que jeite?!" → [ˈma kɨ ˈʒɐjtɨ]

Enquanto que em Português europeu padrão (formal ou lido) a pronuncia da mesma palavra apresenta maior cuidado na articulação, sem reduções extremas:

"Mas que jeito?!" → [mɐʃ kɨ ˈʒɐjtu]

Em síntese: alguém que pretenda insistir numa forma correcta de reproduzir em palavras a pronúncia de um regionalismo linguístico terá de respeitar as regras da Transcrição Fonética.

Em alternativa, pode continuar a escrever como pensa que melhor reproduz aquilo que diz ou ouve, sendo certo que qualquer outro falante poderá grafar a mesma expressão de modo substancialmente diferente, sem que nenhum possa reivindicar o cumprimento da norma ou a exactidão daquilo que apresenta.

Estando viva, a língua mexe e remexe-se. É bom sinal.

Mákejetes, mon?!




Saída de Liverpool, entrada no Limoeiro


Nas manhãs de Julho, o mar ao largo da Ponta Ruiva costuma parecer um espelho preguiçoso, reflectindo o céu algarvio com a inocência de quem não guarda memórias. Mas o Atlântico tem boa memória, ainda que não fale. E foi ali, nas águas traiçoeiras de Sagres, que o ERATO encontrou o seu canto final.

Corria o ano de 1832. A bordo, o capitão Carter levava o navio rumo a Livorno, com a dignidade própria de quem desafia os continentes na sua deriva geológica. Saíra de Liverpool a 21 de Junho, embalado pela confiança da marinhagem inglesa e por mercadorias que jamais chegariam ao destino. No dia 12 de Julho o ERATO vergou-se à costa agreste da Ponta Ruiva, onde as ondas não perdoam e os rochedos guardam segredos antigos.

Do desastre salvaram-se alguns restos, como é costume. Mas os salvados, em vez de irem parar às mãos de quem de direito, foram desviados por quem jurava proteger os interesses da Coroa britânica. Macedo e Brito, o vice-cônsul inglês em Lagos, que usava o cargo como quem veste um casaco pomposamente engomado, viu ali uma oportunidade e ajudou-se, generosamente, no espólio do naufrágio. Esqueceu-se apenas de um pormenor: não era profissional da pilhagem, nem vivia em tempos de corso. Foi preso no Limoeiro, o velho cárcere de Lisboa, onde muitos nobres e patifes partilhavam paredes húmidas e culpas mal distribuídas.

O ERATO, batizado com nome de musa, filha de Zeus, acabou submerso no reino de Neptuno. Já Macedo e Brito perdeu a honra em terra firme onde, às vezes, se naufraga com mais estrondo. A história esqueceu os nomes dos marinheiros, dos carregadores e dos humildes que viviam do mar. Mas ainda hoje, quando o vento sopra de levante e as gaivotas se inquietam à vista da falésia, há quem diga que o oceano se lembra. E que o canto da musa naufragada ressoa, de quando em quando, entre os arenitos rubros da Ponta Ruiva.

 

Liverpool e o Limoeiro no séc xix

 


Gastar de Olhos Fechados e Mão Estendida - Ensaio Científico sobre a Economia Portuguesa


Há nações que vivem do petróleo, outras do turismo, umas da indústria pesada, outras da ligeira, algumas da finança engenhosa, outras da agricultura extenuada. Portugal, país de navegadores reformados e influencers virtuais, vive de uma arte mais subtil e profundamente refinada: a arte de parecer miserável sem abdicar da pose de novo-rico.

É um milagre moderno. ou melhor, uma tragicomédia ibérica com encenação permanente, que um país cuja indústria se resume, em boa parte, ao aluguer de quartos com cheiro a mofo e sombreiros de praia fabricados na China, consiga manter em funcionamento um sistema público que faz inveja à Disneylândia, com a única diferença de que na Disneylândia os bilhetes são pagos e os castelos têm utilidade. O turismo tem o seu lugar, mas Portugal precisa de uma economia diversificada, mas como se os decisores não possuem um cérebro eclético?

A agricultura? Ah, essa nobre tradição. Serve hoje sobretudo para cultivar subsídios, colher candidaturas e plantar painéis fotovoltaicos entre dois sobreiros ameaçados por uma vara de suínos de aspecto suspeito.

Ainda assim, o país lá vai erguendo faraónicos estádios de futebol e investe alegremente em voláteis centrais de hidrogénio; encomenda esculturas públicas com preços de penthouses, como a simpática aberração de 1,25 milhões de euros em Oeiras, uma espécie de homenagem ao desperdício com formas artísticas.

E que dizer do nosso venerável Banco de Portugal, que, por pudor de pensar sozinho, decidiu pagar 245 mil euros em consultoria financeira durante dois meses, porque a banca é uma ciência oculta, e mais 190 mil para saber como se gere... um banco. Com essa lógica, brevemente teremos consultores para ensinar ministros a despachar e deputados a estar acordados.

O auge, porém, é o presidente do Inatel, que teve o bom gosto de pagar cinco mil euros para se fazer entrevistar por uma revista que até é distribuída como peça de publicidade em encarte de periódico nacional. Nada mais natural num país onde se financia o ego como se fosse infraestrutura crítica.

Quanto às regalias dos altos cargos públicos, é melhor não mexer, não por falta de coragem, mas por não caberem num ficheiro Excel. Fala-se de carros com motorista, cartões mágicos, reformas aos quarenta e um, e dietas que alimentam vícios mais do que o corpo. Versalhes em dia de gala pareceria, ao pé disto, um retiro franciscano.

Endividados até ao tutano, e também nas futuras encarnações (em caso de reencarnação fiscal), os portugueses olham para os fundos europeus com a fé de um peregrino e a sofreguidão de um glutão. Bruxelas, essa espécie de fada-madrinha tecnocrática, tornou-se mãe, pai, padrinho, mecenas, terapeuta e, às vezes, esposa violenta. Quando a produtividade falta, aparecem compensações. Quando a nação tropeça, vêm cimeiras com folhetos coloridos e discursos em PowerPoint com muito impacto e pouco conteúdo.

É verdade, produzimos pouco. Ou mal. Mas, convenhamos, produzimos com arte. Há pareceres para tudo: desde como estender a toalha na praia sem ferir a biodiversidade, até ao impacto ecológico de uma sardinhada. Planos estratégicos há tantos que se podia construir um aeroporto com eles, e se calhar ainda é isso que vai ser feito – esperemos, porque sairá mais em conta.

Onde faltam tractores, sobram consultores. Há mais projectos que projectistas, mais diagnósticos que médicos e mais reformas anunciadas do que tentadas e, menos ainda, realizadas.

No meio de tudo isto, o cidadão comum, esse Quixote sem cavalo, mas com crédito à habitação – existindo habitação – vive num estranho equilíbrio: acima das suas possibilidades, mas sempre aquém das suas exigências. Quer saúde gratuita, educação gratuita, transportes gratuitos, justiça célere (um devaneio romântico), pensões justas, reformas aos sessenta e jantares fora ao fim-de-semana. E tudo isto pago, claro, pelos impostos de alguém mais organizado, mais a norte, e preferencialmente com nome terminado em “…mann”.

Entre uma greve dos professores, outra dos transportes, uma da função pública, outra vez dos professores porque não tinham terminado a anterior, e mais uma dos transportes só para marcar posição, o país vai resmungando com distinção. A culpa é sempre do passado: colonialismo, neoliberalismo, o Salazar, o FMI, o euro, ou a troika, ainda. Quando se quer culpar alguém próximo, há sempre o Governo ou os sindicatos, depende da disposição, ou da posição.

Portugal é, assim, uma sinfonia barroca desafinada, mas tocada com entusiasmo: endividado com graça, improdutivo com método, e pobre com requinte. Um país onde se vive como se o amanhã fosse um detalhe técnico, e onde se confia que alguém, algures, com paciência e fundos, acabará por pagar a conta. As reformas que o País precisa, nenhum Governo as faz. E não há estratégias, nem planeamento, nem ideias; só há a mão estendida de um país que se resignou a ser pedinte. Em suma, Portugal é um país incapaz de se governar decentemente a si próprio e assim continuará a ser enquanto forem outros a pagar a conta das asneiras.

Eis o verdadeiro milagre português: transformar défice em destino, dívida em identidade, e subsídio em religião. E, afinal, o que somos nós?

Poetas, pois claro, mas com cartão de crédito.

 






Baixo de uma nota só



Dizia o saudoso sargento Alfarroba, antigo calafate e músico da Marinha, que “quem nasce para estopa nunca chega a ser linho”. Embora esta máxima não se aplique sempre, há casos em que o tecido em questão nem para esfregona daria. Vejamos, por exemplo, o caso do nosso estimado e algo descompassado, aprendiz de baixista, Chico, aliás Pako Sindedos, de seu nome artístico.

Este Pako, indígena algarvio bem-intencionado e de bom feitio, decidiu certa manhã, enquanto barrava a torrada com azeite e alho, que estava na altura de dar um novo rumo à vida. E porque o destino gosta de pregar partidas em ritmo de contrabaixo, a escolha recaiu sobre o instrumento mais discreto e, ao mesmo tempo, mais exigente da banda: o baixo eléctrico.

Ora, dizem os entendidos que o baixo é a espinha dorsal de qualquer música. Mas para o Pako mais parecia um labirinto de cordas sem saída. No primeiro ensaio com a “ORQUESTA EXTRELA RUÇA”, composta por quatro entusiastas da música erudita algarvia, com mais rugas na alma do que calos nos dedos, o nosso herói tropeçou logo na introdução de um clássico dos Beatles, confundindo “Come Together” com “Ó Rama Ó Que Linda Rama”. A coisa começou mal e, como era de prever, não melhorou.

Os compassos fugiam-lhe como enguias lisgosas, e a mão esquerda parecia ter-se licenciado em Sociologia: muito contacto visual, pouca acção. Já a direita… bem, a direita fazia o que podia, mas parecia estar constantemente a perguntar à esquerda: "É agora? Já? Ainda não?" E, claro, a outra não respondia.

Vieram os ensaios com bossa nova, e o Pako, cheio de entusiasmo, apresentou-se com camisa florida e sorriso tropical. Mas depressa percebeu que a suavidade enganadora do género escondia ritmos diabólicos e síncopes assassinas, sem falar nas dissonâncias. Ao fim de vinte minutos a tentar acompanhar “Garota de Ipanema”, estava tão perdido que se diz ter tocado, inadvertidamente, um excerto dos “Parabéns a Você” em tempo de valsa vienense.

O rock, por sua vez, revelou-se traiçoeiro. Durante uma versão improvisada de “Smoke on the Water”, o Pako insistiu em repetir a mesma nota com um fervor quase litúrgico, convencido de que a monotonia era, afinal, minimalismo criativo maximizado. O guitarrista, um reformado da aviação com gosto por solos épicos, fitou-o uma vez e declarou: “Rapaz, estás a tocar em ré maior, mas o resto da banda está em si menor… emocionalmente.”

O auge, o verdadeiro apogeu do descalabro, deu-se na noite da actuação ao vivo na esplanada do Infante, quando o grupo decidiu ousar interpretar o “Samba da Utopia” de Jonathan Silva. Logo ao terceiro compasso, o Pako perdeu-se num contratempo e caiu sobre o ritmo como um polvo atónito sobre um salame de chocolate. Lambuzou-se, e o samba transformou-se em samba-canção, depois saltou para um free jazz de Coliseu e, por fim, numa marcha fúnebre.

As senhoras da linha da frente, que julgavam estar a ouvir música do mundo, levantaram-se num misto de espanto e comoção, convencidas de que o grupo estava a reinterpretar as dores da crise global. Um turista alemão aplaudiu, julgando tratar-se de música de vanguarda portuguesa. E o Pako, no auge da aflição, aplicou inadvertidamente um slap que ecoou como bofetada cósmica nos tímpanos dos presentes. O silêncio que se seguiu foi digno de missa de sétimo dia.

Mas, como em todas as epopeias musicais, houve redenção. No final da noite, enquanto arrumava o amplificador, Pako Sindedos (aliás, Chico, porque já havia terminado o espectáculo), foi abraçado por uma criança de cinco anos, que lhe disse: “Gostei muito do som da tua guitarra. Parecia o vento no mar, num belíssimo dia de tempestade.”

E o Chico sorriu. Porque, mesmo sem saber distinguir um fá sustenido de um sarrajão, aprendeu que o mais importante na música, como na vida, não é acertar nas notas, mas tocar com alma, como bem postulava Sid Vicious, esse expoente do punk e mentor daquela ‘orquesta’. 

Um Sábado de 1914 no cinema

«Célebre na história de Lagos, foi o Cine-Teatro Ideal, de Simões Neto, localizado na Rua Cândido dos Reis, onde hoje se encontra o hotel Riomar. Este empresário explorou, antes, o “Salão Animatográfico” ou “Salão do Simões”, localizado na Rua do Outeiro (actual Rua Dr. Joaquim Telo), a primeira sala de cinema existente em Lagos. Em finais de 1914 ali se deu uma récita de caridade a favor das viúvas e órfãos belgas, promovida por um grupo de rapazes de Lagos.» in CASTELO, F. (2012) “O Teatro e os teatros em Lagos”.

Naquele Sábado ventoso de Novembro de 1914 esta pequena cidade algarvia foi sacudida por um inusitado alvoroço: alguns rapazes da terra, um grupo irrequieto, dado mais à traquinice do que à disciplina, organizavam uma récita de caridade em prol das viúvas e órfãos belgas, vítimas da invasão alemã à sua pátria.

O evento decorreria no Salão Animatográfico, propriedade do Sr. António Simões Neto, homem de bigode retorcido, paletó desbotado e eterno odor a cânfora. A sala, com as suas cadeiras rangentes de madeira escura, as tapeçarias desbotadas e um projector que crepitava como lareira atiçada, fora apetrechada à pressa com uma enorme cortina de sarja que fingia ser pano de boca. Ao fundo, junto à entrada de serviço, um candeeiro oscilava a cada passo, ameaçando incendiar o cartaz pintado à mão onde se lia, com pompa exagerada: «Grande Soirée Artístico-Humanitária – Entrada: 200 réis».

Os jovens intérpretes, vestidos com o que se pôde arranjar de um baú de velhas roupas da D. Ana Rijo, protectora dos talentos dramáticos da cidade, ensaiaram durante três tardes e meia uma peça cujo enredo já ninguém conseguia explicar sem tropeçar na lógica. Era, ao que constava, uma fábula alegórica sobre o sofrimento dos povos, envolvendo um ferreiro flamengo, uma princesa eslava, um pastor da Boémia e, inexplicavelmente, um fauno que versejava em alexandrinos, para além de figurantes sem papel definido.

O espectáculo começou com vinte minutos de atraso, por culpa do Taquelim, o mais novo do grupo, que perdera o sapato esquerdo no caminho e aparecera com um chinelo de senhora enfiado no pé, coberto de serapilheira para disfarçar. Quando finalmente se abriram as cortinas (na verdade, quando o pano cedeu à força conjunta de dois rapazes escondidos nos bastidores), surgiu em cena o Galvão, encarnando o ferreiro flamengo com uma pronúncia que mais parecia de Alvor, e um martelo de cozinha enfiado no cinto.

A récita decorreu num crescendo de desastres: o fauno caiu do tamborete que fazia de rochedo e rasgou as calças em frente à primeira fila; a princesa, interpretada pela M.elle Amélia Sant’Anna, desmaiou por ter apertado demasiado o espartilho, e foi reanimada com um copo de gasosa e palmadinhas pouco cerimoniosas; e o pastor da Boémia, não decorando as deixas, improvisava com rimas que faziam o público rir até às lágrimas, sobretudo quando confundiu "peidão" com "perdão" num dos monólogos mais dramáticos, em que ignorara as linhas sopradas pelo ponto, o experiente Sr. Ladeira.

Um figurante, imóvel em segundo plano, deixou tombar o cinto que lhe segurava as calças e, ao tentar, atabalhoadamente, evitar a sua descida, deu um passo atrás e pisou outro figurante, que soltou um grito agudo no exacto momento em que o ferreiro flamengo proclamava, com voz grave, ou melhor, esganiçada: –“A justiça será feita!”. E à boca de cena, o pastor da Boémia lutava, agora, contra a gravidade: a peruca escorregava-lhe lentamente sobre os olhos, conferindo-lhe o aspecto solene e perdido de um carneiro pensativo.

As melodias em surdina, arrancadas com devoto esforço por D. Clotilde Cássio ao piano decrépito, pairavam etereamente sobre a cena, tentando imprimir-lhe uma gravidade quase trágica, num esforço nobre, embora em vão. O contraste entre a música grave, que continuava a insistir numa tensão inexistente, e os tropeços cada vez mais absurdos da representação, levou os espectadores da contenção inicial à gargalhada aberta, primeiro contida, depois irresistível.

Para rematar a soirée, o Sr. Simões, visivelmente comovido (ou sensibilizado por um abafadinho generoso), ofereceu ao público uma sessão cinematográfica com "As últimas maravilhas do mundo", que consistia num documentário sobre as cheias em Paris, seguido de uma curta-metragem onde um cão perseguia um polícia, ladrando, sem que se percebesse porquê e sem que se ouvisse o ladrar do cão, já que o filme era mudo – como todos os outros da época. A fita partiu-se duas vezes e a máquina engasgava-se com estalidos que faziam os mais crédulos temer que pegasse fogo ao edifício.

A récita, no seu conjunto, foi um absoluto êxito: não pelo rigor teatral, mas pela alegria que semeou e pelos tostões que, ao fim da noite, encheram uma modesta caixa de sapatos com a inscrição "Para os Nossos Irmãos Belgas". Os senhores da cidade fingiram solenidade, as senhoras suspiraram com ternura pelos pequenos desastres e os rapazes, eufóricos, já discutiam nos bastidores o próximo espectáculo que, diziam, teria cavalos, acrobatas e fogo-de-artifício.

Para isso, porém, teriam de aguardar até 1937 e confiar no novo arrojo do Sr. Simões, a Esplanada-Jardim do Cine-Teatro Ideal, também conhecida por Hipódromo, implantada a céu aberto na Rua da Meia Laranja (hoje Rua da Estrema), a fim de antecipar, quase profeticamente, a mesma caridade para com outras viúvas e órfãos, que os alemães, reincidentes na tragédia, viriam a semear, de novo, pela Europa fora.





 

Regresso ao Passado

 


nesta rua onde os telhados conversam aos gritos
(telha contra telha, nervo contra goteira),
moram os vizinhos de sempre:
o da esquerda, com o relógio às três e o coração às avessas;
a da direita, de cabelo aos berros e alma em ponto de fervura.

 

ninguém se entende, claro.
porque a parede é fina,
mas o orgulho, grosso.

 

a vizinha coze feijões de rancor desde 82,
e o vizinho responde com pregos no silêncio do domingo.
— bom dia, diz ninguém,
— está bom é para calar-se, responde o eco.

 

a roupa no estendal dança mais do que as palavras.
e as janelas, ora abertas, ora cuspidoras de olhares.

 

há um cão que ladra por hábito
(e talvez por solidariedade com a discórdia crónica).

 

ah, se ao menos chovesse conciliação!
mas não: chove loiça, panelas sobretudo.
chove queixas na caixa do correio.
chove silêncio agudo, que corta melhor que faca.

 

a aldeia (porque isto era aldeia antes de virar bairro)
já não lembra o cheiro do pão quente 
só o calor das discussões mornas e dos muros frios.

 

e no entanto, num canto invisível da rua,
um gato dorme sobre o muro que os separa.
ronrona uma paz que ninguém ouve.
talvez amanhã alguém escute.
-

 

Era mais ou menos assim que eu escrevia nos anos 80, numa busca pelo absurdo iniciada na década anterior, em que a escassa mestria das regras da escrita me lançava num registo nefelibata: sonhador, errante e transgressor. Hoje, escrevo sobre o mesmo tema, mas de forma diferente embora idêntico registo continue presente.

-

Naquela rua estreita onde as casas pareciam erguer-se apenas para se enfrentarem, os vizinhos não se suportavam. Não era um ódio grandioso, dramático, de punhos cerrados e lágrimas no chão, era um fastio persistente, um cansaço de convivência que se enraizava nas paredes finas e nos passos mal medidos. Cada um morava como quem ocupa uma trincheira: o homem da casa da esquerda contava os minutos para que a da direita tropeçasse na própria teimosia; e a mulher da casa da direita afivelava um sorriso de guerra sempre que o outro esquecia o lixo à porta.

Era uma relação coreografada pelo desacordo: ela cozinhava com janelas abertas para espalhar o cheiro do alho de propósito; ele batia os tapetes no muro comum sempre que sabia que ela dormia. Cumpriam, sem saber, um ritual antigo de inimizade mútua, como se tivessem nascido para o antagonismo e não soubessem já viver sem ele.

O mais curioso era que, por baixo das farpas, havia uma sintonia insuspeita. Ambos amavam hortênsias, mas fingiam desprezo por flores. Ambos deixavam água e pão para o mesmo gato vadio, mas diziam que era por piedade, não afeição. Ambos escutavam a mesma canção antiga nas noites de sábado, mas baixavam o volume assim que percebiam o outro a ouvir também.

A rua vivia deste equilíbrio dissonante. As paredes rangiam com a tensão contida, os estores subiam com um tilintar de desconfiança, os estendais abanavam como bandeiras de guerra. Ninguém ali se cumprimentava sem uma vírgula de ironia. Ninguém pedia sal sem cuspir fel.

Até que, um dia, sem aviso, tudo se dissolveu numa suspeita de revelação. O homem, ao mirar-se ao espelho, percebeu que as viagens ao passado que julgava ter feito (as cenas de outros tempos, as gentes que vira e os lugares distantes), talvez nunca tivessem sido mais do que projecções da sua própria ânsia. E com essa descoberta veio outra: também a sua vizinha, com todos os seus gestos teatrais, era apenas uma parte do mesmo enredo interior.

Percebeu, então, que toda aquela vida de birras e implicâncias era menos sobre ela e mais sobre ele. Que o mundo, com os seus vizinhos intragáveis, os seus ruídos e fantasmas, talvez sempre tivesse habitado dentro de si, e não fora. E com isso veio um certo alívio, como a acalmia que sucede ao fim de uma tempestade: uma ausência súbita de necessidade de ter razão, de responder, de vencer.

Nessa manhã, em vez de fechar a janela com estrondo, deixou-a escancarada. O vento entrou sem pedir licença e, por um instante, levou com ele o velho prazer da guerra. O gato subiu ao muro. E não houve nenhuma panela a voar.

 

P.S. - Embora o óbvio dispense enunciação, dirijo-me aos amantes de bonecos (imagens) para esclarecer: o tema não é a vizinhança, mas a escrita.


Não dialogo, declaro!

 

Temos dois ouvidos, mas apenas uma boca; portanto, a nossa natureza convida-nos a escutar mais do que a falar. Porém, cada vez mais, a sociedade se esquiva de ouvir as partes e de construir uma opinião consciente sobre os factos. No mundo actual já não há muitas discussões genuínas; as pessoas já não querem debater, preferem as suas convicções ou o silêncio. Ora, como nos diz Zygmunt Bauman: «O verdadeiro diálogo não é falar com pessoas que acreditam nas mesmas coisas que nós acreditamos».

Quem tem consciência e um nível intelectual substancial tem o dever de dizer tudo quanto pensa; só dessa forma poderá combater o achismo que prolifera nos discursos dos ignorantes. Mas é verdade que o empenho e a disponibilidade para ouvir os outros, na sua alteridade e diversidade, num diálogo sincero que aceite o diferente não como adversário, mas como concidadão partilhando dos mesmos sentimentos de fraternidade, é algo difícil na presente sociedade, em que pontifica o ruído e os dogmas irracionais partilhados por multidões.

Por exemplo: defender que devemos respeitar as opções religiosas dos outros, nomeadamente as idiotices que pretendem desmentir o conhecimento científico, equivale a colaborar em autos-de-fé semelhantes àqueles que a Santa Inquisição protagonizou ao longo de três séculos. E não é de admirar, pois o pensamento religioso está sempre pronto a apontar e a criticar, até torturar e matar, os infiéis ao seu dogma. Essa podridão religiosa, composta por Igrejas e proclamados vigários de Deus, é um lastro insuportável e retardador do progresso da Humanidade.

Peroram umas igrejas evangélicas que a Terra foi criada como Reino de Deus há cerca de 6 mil anos e, consequentemente, nada pode ser mais antigo do que isso; e que o ‘reino’ é plano e não esférico. Ora, pactuar com estes disparates constitui uma afronta ao conhecimento adquirido ao longo dos últimos milénios e representa um criminoso retrocesso civilizacional.

Acresce que esta gente desmiolada fala de ‘barriga cheia’, gozando as conquistas da Ciência e da Tecnologia, que lhes permite voar pelos ares, contactar em segundos com os antípodas e tratar com sucesso as mais verrinosas doenças. E esta gente ignorante, e as suas ideias asininas, deve ser respeitada? Gente enganada e temerária que engana outros mais, é gente cega e perigosa para a Humanidade.

O problema dos ignorantes não radica exactamente numa total ausência de conhecimento, mas no facto de terem alcançado conhecimento suficiente para acreditarem naquilo que lhes foi transmitido, mas não suficiente para o questionarem. Essa alienação mental não é uma alienação total, de quem vive à margem da sociedade e dos acontecimentos, mas uma alienação do exercício da reflexão e do questionamento permanentes. Entre a preguiça e a estultícia campeia a perigosa e destrutiva ignorância.

Face a isto, como cultivar o diálogo? Eis porque também tantos intelectuais cada vez mais optam pelo axioma: «Não dialogo, declaro!», engrossando o exército dos que já não querem conversar.




Retratos de beltrano e sicrana - por um (in)certo fulano nefelibata

 

Para escrever ficção é necessário construir personagens e dotá-las de existência verosímil, eis os perfis de duas das minhas personagens mais frequentes, descritos na primeira pessoa:

 

Monólogo num Auto-de-Fé

 

«Chegado à meia-idade — esse território onde o passado pesa mais do que o futuro promete — fui constrangido a reconhecer, com alguma lucidez e não menos ironia, aquilo que talvez sempre fui: um parvalhão. A palavra é feia, admito, mas carrega em si uma verdade crua, irrefutável, que nenhuma elegância verbal consegue disfarçar. Há, contudo, uma liberdade singular no acto de nomear o próprio ridículo: como se, ao dizê-lo, se abrisse uma brecha na couraça da vergonha e se respirasse, por fim, algum ar puro.

 

Sou, por natureza — ou talvez por deformação — um sujeito de trato difícil. Impaciente, intolerante com tudo quanto me parece inútil, superficial ou simplesmente estúpido. O problema, bem sei, é que esse juízo é por vezes precipitado, e aquilo que em mim se afirma como discernimento não passa, frequentemente, de impaciência travestida de inteligência.

 

Tenho, em suma, o pavio curto. E esse defeito — porque é, inequivocamente, um defeito — tem-me afastado de pessoas, de oportunidades, talvez até de mim mesmo. Há momentos em que tento disfarçá-lo, corrigir-lhe os efeitos, remendar o estrago; mas o ímpeto é mais veloz do que o juízo, e quando dou por mim, já disse ou fiz o que não devia.

 

Não fujo às causas. Alguns problemas de saúde, que me acompanham como uma sombra muda, acentuam esta disposição irritadiça, como se o corpo maltratado se vingasse nas palavras azedas. Mas seria demasiado cómodo atribuir tudo às maleitas. Prefiro reconhecer, com alguma vergonha e algum estoicismo, que o verdadeiro cerne da questão está na minha má educação — não no sentido da instrução académica, mas na falta de domínio sobre mim mesmo.

 

Fui, em certos momentos da vida, ofensivo, agressivo, até aviltante. E se é certo que o álcool teve a sua quota-parte de responsabilidade — não enquanto vício instalado, mas como catalisador de impulsos —, mais certo é ainda que o homem permanece, sóbrio ou embriagado, fiel à sua essência. E a minha, ao que tudo indica, inclina-se para o descomedido.

 

Hoje, no entanto, não me consumo em arrependimentos vãos. Vivo, tanto quanto posso, dentro da minha concha — ou em órbita discreta em torno dela —, sem ruído, sem ambições desmedidas, sem a ilusão de me tornar outro. Não há, nesta confissão, qualquer heroísmo. Há, talvez, um desígnio de serenidade: essa quietude que advém do reconhecimento humilde daquilo que somos, mesmo sem termos esgotado as desculpas possíveis.»

 

-

Monólogo de uma Senhora Respeitável

«Sempre soube que a vida não é para os fracos. Quem espera justiça ou merecimento neste mundo, cedo se desilude. A minha ascensão não foi um acidente, nem tampouco fruto do acaso. Nasci no seio certo, filha de um homem cuja autoridade se fazia sentir mesmo nas conversas murmuradas nos corredores do poder. Viemos de longe, é certo, mas não tardou que todos soubessem quem éramos — ou, melhor dizendo, quem eu viria a ser.

Desde cedo percebi que a verdade tem pouco valor se não for convenientemente apresentada. A influência, essa sim, é a verdadeira moeda. E eu aprendi a cunhá-la com mestria. Se hoje falo, se hoje me ouvem, não é por terem algo a aprender comigo, mas porque precisam de mim para serem vistos, para existirem. Fiz do meu nome um selo de aprovação social; do meu olhar, um veredicto.

Muitos tentam reduzir-me a etiquetas banais: “influencer”, dizem com um misto de despeito e reverência. Mal sabem que a influência, quando bem jogada, não se limita a produtos ou convites para eventos. A influência verdadeira move lugares, desfaz reputações, constrói lendas — e eu domino essa arte como quem respira.

Sempre houve quem me criticasse. “Verrinosa”, murmuram — como se a acidez do engenho não fosse necessária num mundo apodrecido de hipocrisia. “Desonesta”, acusam, como se as regras tivessem sido feitas para todos. Para mim, não. Nunca foram. O que eles chamam de manipulação, eu chamo estratégia. O que apelidam de tráfico de influências, eu entendo como a justa recompensa de quem sabe posicionar-se.

Cercar-me de fieis? Naturalmente. Ninguém sobe sozinha. Mas ao contrário das almas ingénuas, eu não procuro lealdades por afecto. Procuro utilidade. Cada um tem o seu papel no tabuleiro. São peças necessárias — lambe-botas, dirão uns. Executores, corrimões, escadas humanas, digo eu. E que agradeçam, pois, sem mim, seriam irrelevantes.

Fiz o que era preciso. Fiz mais do que muitas ousariam. E não, não me arrependo. Arrependimento é coisa de quem reconhece erro — e eu jamais errei. Fui implacável, sim. Ambiciosa? Sem dúvida. Mas cobrir-me-iam de flores se fosse homem.

Se hoje opero um balanço da minha vida, não é para prestar contas, mas para medir a extensão da minha obra. E, olhando em redor, vejo que tudo, ou quase tudo, me pertence — pela acção directa ou pelo medo que instilo. Os que se afastaram? Nunca fizeram falta. Os que ficaram? Sabem a quem devem o nome que ainda ostentam.

A moral alheia nunca me guiou. Porque hei-de dobrar-me à mediocridade do senso comum? Que me julguem. Que sussurrem. Que odeiem. A verdade é esta: continuo aqui, intacta, indelével, inabalável. E eles... eles continuam a precisar de mim.»