EXERCÍCIOS DE ESCRITA E FICÇÃO
CLICAR NA IMAGEM ABAIXO PARA DESCARREGAR
EXERCÍCIOS DE ESCRITA E FICÇÃO
CLICAR NA IMAGEM ABAIXO PARA DESCARREGAR
Outra memória da
juventude suscitada por esta pintura (The Runaway Knock, de S. A. Forbes, 1888).
Havia, outrora,
um jogo pueril, quase ritual, que fazia parte do calendário secreto da
infância: bater à porta do vizinho e fugir, antes que a aldraba concluísse o
seu eco metálico. Era a inocência travestida de travessura, uma maneira ingénua
de experimentar a adrenalina do proibido.
O vizinho, ou a
vizinha, surgia à soleira com o sobrolho franzido, olhando o vazio do pátio, a
sombra do beco ou o alinhamento das portadas. Nada. Apenas o silêncio cúmplice
da rua. A intriga ficava-lhe gravada no rosto, e era esse o triunfo da pequena
malícia, provocar o espanto, a dúvida, a suspeita de que o mundo guardava
mistérios insondáveis mesmo à porta de casa.
Nos bairros mais
antigos, de ruas estreitas e calçadas polidas pelo tempo, a corrida fazia-se em
velocidade, com o coração a galopar tanto como os pés. Os postigos fechados
pareciam observar em segredo, e cada esquina era refúgio possível. Já nos
arrabaldes modernos, com prédios altos e campainhas eléctricas, o jogo adquiria
outra música: um zumbido breve, seguido da debandada pelos corredores anónimos,
onde o eco dos passos se confundia com o rumor distante do trânsito.
A cultura de
cada rua temperava a brincadeira. Havia vizinhas de avental que, desconfiadas,
juravam a pés juntos que era “a canalha do rés-do-chão”, e havia velhos
benevolentes que abriam a porta sorrindo, fingindo ignorar o ardil, como se
participassem também no enredo. Noutros lugares, mais sisudos, a repetição da
façanha arriscava represálias, sermões, puxões de orelhas, até o rosnar
irritado “um dia será a tua vez”.
Mas, no fundo,
essa vetusta traquinice era a pedagogia secreta da infância. Aprendia-se a
medir o tempo exacto entre o toque e a fuga, a calcular distâncias, a escutar o
som da fechadura como quem aguarda o tiro de partida de uma corrida.
Aprendia-se, sobretudo, a saborear o poder da invisibilidade, como se o mundo
inteiro fosse palco e nós actores disfarçados.
Hoje, raramente
se vê tal arte, talvez porque as ruas mudaram, ou porque os vizinhos perderam a
paciência, ou porque as crianças já não treinam o riso nas pequenas sombras do
perigo. Ainda assim, quem o viveu guarda a memória desse instante breve em que
a porta se abria para o nada, e o nada era, afinal, um festim secreto de
gargalhadas ao virar da esquina.
Calcorreando sítios de imagens na Internet (em busca
de navios e velas), encontrei esta Natureza Morta, pintura de meados dos anos
50, do húngaro Toth Gabor.
Fiquei escorado na imagem, recebendo o sopro dos tempos idos que dela emana. Não a vejo como uma natureza morta, mas como uma confidência, feita em silêncio, a quem se dispõe a escutar.
No centro, repousa uma garrafa de vinho tinto Ouro Velho, da casa Casalinho (acho eu que se disso se trata), daquelas que guardam no nome a promessa de calor e de história. Ao lado, um copo onde o líquido rubi reflecte a luz oblíqua, como se o próprio sol de fim de tarde se tivesse dissolvido no vinho.
À sua frente, o copo parece hesitar entre convidar ao gesto ou preservar intacto o instante. A luz, suave, derrama-se sobre os demais elementos. O cacho de uvas que repousa com a serenidade das coisas que já cumpriram o seu destino. As folhas, rendidas ao amarelecer do tempo, sugerem guardar o cheiro da terra molhada; há, nelas, uma beleza discreta, feita de finitude, como um suspiro telúrico que vem do campo.
Finalmente, o búzio, esse viajante do mar, que desarma qualquer lógica. Está ali, junto ao vinho e às uvas, como um convidado improvável. Não sei se o pintor o colocou ali por capricho ou para fazer alguma ligação com o campo e o vinho, mas sei que é impossível não o ver como uma âncora lançada ao mar da memória. É grande, com as suas espirais de calcário gasto. Basta imaginá-lo junto ao ouvido e logo se ouve um mar que não está na tela, o rumor distante das marés de infância, das tardes lentas à beira da água, dos verões que nunca mais acabavam.
Esta composição não é inocente. Entre o vinho, as uvas e o búzio, constrói-se um diálogo secreto entre a terra, o tempo e o mar, entrelaçados como fios de um mesmo tear. O Ouro Velho é o sabor que envelhece bem, mesmo quando já não temos quem o partilhe. As uvas são o gesto generoso da natureza, sempre cíclica, mesmo que nós não o sejamos. E o búzio é o eco persistente de tudo o que foi mas não se perdeu.
Olho a tela e sinto que nela há uma despedida, resignada, como quem sabe que a vida é feita de breves abundâncias e longas ausências. E, no entanto, há também a promessa de que, enquanto houver memória, o vinho terá sempre o seu rubi, as uvas o seu brilho, e o mar o seu murmúrio.
14 de Agosto de 1385. Lá estávamos, modesto escriba e cronista de nome pouco conhecido, incumbidos da nobre e ingrata tarefa de registar para a posteridade os feitos de uma batalha que prometia ser mais barulhenta do que os músicos de rua nas cidades do Algarve. As autoridades haviam-nos escolhido com base num critério rigorosíssimo: erámos o único que sabia escrever sem manchar o pergaminho com molho à espanhola. Também ajudou o facto de a máquina fotográfica ainda estar a seis séculos de ser inventada e, sejamos francos, ninguém queria um retratista a óleo em campo de batalha. Os cavaleiros não aguentam tanto tempo em pose sem matar alguém.
A planície de Aljubarrota fervia, não só de sol, mas de nervos, e exalava dela um cheirinho a guerra e a intenso odor corporal proveniente do interior das armaduras de lata. D. João, Mestre de Avis e recém-proclamado Rei de Portugal, de semblante sério, ajeitava o elmo com a paciência de quem sabe que dali a instantes vai ter de provar que é mais do que um bastardo; é um bastardo com jeito para espadeirar franceses, espanhóis e outros mais.
Do outro lado, D. João de Castela bufava de confiança. Trazia consigo um exército que parecia mais uma convenção medieval: cavaleiros, alabardeiros, clérigos, alguns pasteleiros, três estandartes e uns franceses de cabelos armados que juravam que aquilo se resolvia com um empurrão e um bom vinho da Borgonha.
Ao lado do nosso João português, o Condestável Nuno Álvares Pereira fazia as últimas afinações na táctica de combate, traçada com a minúcia de quem monta castelos de areia com esquadro e compasso. O plano era simples: escolher bem o terreno, escavar trincheiras, fincar estacas, polir todos os calhaus e fazer com que os castelhanos, sedentos de glória, tropeçassem e escorregassem em tudo aquilo como turistas em calçada portuguesa.
“Mestre, não seria melhor esperar por reforços? Perguntou um escudeiro nervoso, olhando o exército adversário, que parecia mais uma procissão com armaduras reluzentes.”
“Reforços? Meu rapaz, nós temos os besteiros do Porto e de Lisboa, homens de vista certeira, dedo nervoso e uma paciência limitada para nobres arrogantes. E além disso temos os turistas ingleses recém-chegados do Algarve, aqueles que ali vez com as sobrancelhas levantadas e escaldões no rosto.”
Depois de escutado este diálogo entre o Condestável e o escudeiro Azeite, instalámo-nos num modesto outeiro, com bom ângulo para ver tudo e, mais importante, bastante afastados para evitar levar com uma flecha perdida. Ali, com pena e tinteiro, e um odre de vinho que fomos dizendo ser “água para diluir a tinta”, preparámo-nos para registar o que viria a ser o dia mais atribulado desde que nos pediram para redigir o rol de ofensas do arcebispo de Braga.
A batalha começou ao meio-dia e durou menos do que uma missa breve. Os castelhanos, confiantes, lançaram-se como se fossem conquistar o Eldorado colombiano, mas acabaram enterrados até aos joelhos nas armadilhas lusas. Os franceses, elegantemente vestidos, diga-se, caíram em fila como quem tropeça na própria etiqueta.
Mas a grande surpresa para os invasores veio sob a forma de um contingente disciplinado de homens de tez pálida, estranhamente queimada, e pronúncia exótica: Sir John Holland, que vinha com recomendação directa do primo Ricardo II de Inglaterra (um rei com tempo livre e pouca utilidade bélica), desceu da mula com o ar de quem já tinha lido o guião. Alinhou os seus homens numa encosta suave, preparou os arcos longos, verdadeiras máquinas de distribuir estropícios, e gritou com aquele charme britânico: “Loose!”
Os archeiros ingleses, alinhados com a precisão de quem joga xadrez, soltaram as setas, e junto com elas o caos e a desordem nas hostes inimigas. As flechas iam em enxames tão cerrados que os cavaleiros de Castela pensaram estar sob um ataque de abelhas de ferro. Um cavalo de nobre francês (chamava-se Philibert, o cavalo, não o nobre), recusou-se terminantemente a avançar. Sentou-se, ali mesmo. Um historiador tentaria mais tarde explicar isso como "manobra defensiva equina voluntária". Foi, na realidade, puro bom senso.
Já os besteiros portugueses, com as suas bestas de madeira bem oleada e músculos que fariam corar qualquer ginasta moderno, tratavam de tudo o que se mexia: cavaleiros, estandartes, copeiros distraídos; ninguém escapava ao virote luso. Um besteiro do Porto acertou num francês em pleno recuo, a 300 passos, enquanto comia uma francesinha. A crónica oficial omitiu a francesinha, mas nós estávamos lá e testemunhamos a verdade. Um outro, juramos por Santiago, acertou num francês que mal tinha saído da tenda. O pobre homem ainda levava o guardanapo ao pescoço. Registámos isso com nota: “Morreu em elegante despreparo.”
Mas nada, absolutamente nada, preparou os cronistas presentes para o momento da Padeira de Aljubarrota. Uma mulher com mais músculo que um cavalo de guerra, armou-se da pá e transformou a cozinha num campo de justiça sumária. A coisa ocorreu assim: Brites de Almeida, padeira de profissão e mulher de maus fígados, encontrou sete castelhanos escondidos na padaria, provavelmente atraídos pelo cheiro a broa. Sem cerimónia, agarrou na pá do forno e aplicou-lhes justiça popular com tanta força que as farinhas do dia seguinte vinham com sabor a hermano. Foi o único caso na História em que o pão foi simultaneamente arma, testemunha e memorial.
Mas nem só a exímios archeiros e enérgicas padeiras se deveu a vitória, devemos referir que, entre lanças afiadas e mandíbulas cerradas, se destacou uma curiosa falange de combatentes: a notável Ala dos Namorados. Não se tratava, como o nome poderia sugerir, de um batalhão de poetas suspirantes nem de trovadores de olhar lânguido. Nada disso. Eram moços de vinte primaveras mal contadas, que, além de espada e escudo, carregavam nos bolsos retratinhos bordados das suas donzelas; e no coração uma determinação que só os amores expectantes costumam incitar.
Lutavam como possuídos, não por ardor patriótico — que o tinham, sim senhor — mas pelo receio de que, caso caísse o reino nas mãos dos castelhanos, as suas Ineses e Constanças fossem obrigadas a dançar ao som de fandangos alheios. E isso, na alma de um rapaz enamorado, é mais doloroso que uma espadeirada entre as costelas.
Em dado momento da refrega, ao ouvir um arauto castelhano gritar “Castilla!”, um dos moços retorquiu de lança erguida: “Castelo levas tu no toutiço”. E aí foi o arauto à terra, vencido como tantos outros pelos rapazes da Ala dos Namorados, firmes como estátuas de pedra… e ciúmes. Por mais que os livros de história descrevam a heroicidade bélica, o certo é que Portugal também se fez com amores inflamados, punhos cerrados e um ou outro bilhetinho perfumado escondido sob a cota de malha.
E se a Ala dos Namorados pelejou por ciúmes e promessas de beijos ao luar, a cavalaria portuguesa, essa, entrou em campo com o porte digno de quem passa os dias a treinar com lança e os serões a endividar-se, na jogatana. Montados em corcéis que sabiam mais de guerra do que muitos fidalgotes sabiam de cartas e contas, os cavaleiros portugueses apresentaram-se à lida vestidos de ferro, envoltos em penachos, e com aquele olhar solene, mesmérico, que apenas o desconforto de uma armadura completa consegue proporcionar. Ao contrário de certas cavalarias estrangeiras que avançam em campo aberto como pavões em procissão, os nossos cavaleiros eram dados ao improviso: entravam onde podiam, saíam onde calhava e se encontravam um castelhano perdido, davam-lhe a conhecer a robustez do aço português (na verdade, importado da Escócia) com toda a franqueza da ocasião.
D. Nuno Álvares Pereira, esse asceta com punho de ferro, gritou à sua hoste montada: “Quem cair, que caia com dignidade. E quem ficar, que faça barulho, que o estrondo assusta mais do que a razão.” Resultado: o inimigo, baralhado entre estratégia e bravura, recuou a rezar e a galopar em simultâneo, um feito digno de menção em qualquer crónica.
E assim foi que a cavalaria portuguesa, mais dada a rompantes do que a coreografias tácticas se tornou em peça chave da vitória deixando no campo não só cascos partidos e inimigos vencidos, mas também um significativo odor a bosta de cavalos que perduraria por dias nas redondezas de Aljubarrota.
Mas, enquanto os fidalgos suavam dentro das armaduras e os moços da Ala dos Namorados riscavam o destino a golpes de paixão e aço, havia também um outro exército presente em Aljubarrota, este desarmado, mas não menos ruidoso: o povo. Sim, o povo. Essa multidão de olhares aguçados, língua afiada e disposição para o escândalo. Gente vinda das aldeias próximas, das hortas ao redor, das tabernas de Leiria, dos fornos de Alcobaça e até de um SPA das Caldas da Rainha que, ao pressentir que algo de grandioso se cozinhava na planície, acorreu como quem vai a romaria, mas trocando os santos por estandartes e os círios por arrobas de curiosidade. Postaram-se em colinas, sobre muros, pendurados em sobreiros e até em cima de burros. As mulheres levavam cestas com pão e azeitonas, os homens carregavam odre ao ombro e opinião pronta.
Quando a poeira se ergueu e os primeiros gritos se ouviram, houve quem fizesse apostas sobre o desfecho da luta. E quando a sorte se inclinou para o lado português, a multidão, num êxtase tão nacional quanto irreverente, soltou vivas, saltou das pedras, sacudiu as saias e correu, não para ajudar os feridos, que isso é ofício de frades, mas para recolher lembranças da peleja: uma lança partida, um elmo sem dono, e até, vimos bem, um dente castelhano ainda cravado na mandíbula. Mais tarde, nos serões de Inverno, em redor do lume, essas gentes contariam, cada qual ao seu modo, que estiveram “lá”, que viram tudo, que foram parte da glória. E assim o povo, que não empunhou espada, cravou na História o seu olhar atento, a sua gargalhada matreira e a inestimável arte de transformar cada batalha em narrativa pessoal e agigantada.
Finalmente, quando a poeira assentou e os estandartes inimigos jaziam no chão (um deles a servir de toalha de piquenique a dois archeiros que decidiram almoçar cedo), D. João de Castela viu o seu exército transformado num bando derrotado e pensou que talvez a ideia de anexar Portugal fosse um pouco... precipitada.
Na outra banda, D. João I olhou para o Condestável Nuno Álvares Pereira: “Ganhámos, Nuno. E com estilo.”
“Mestre, com estilo inglês, ímpeto português e um pão mais duro que o orgulho de Castela.”
Sir John Holland, limpando uma mancha de barro da armadura, acenou com cortesia: “Lovely war, gentlemen. Call me when there’s another one”.
Então D. João chamou-me. Com as mãos ainda sujas de pó e glória, disse-me: “Cronista faz o favor de escrever tudo. Mas com graça, que os séculos hão-de lembrar-se disto melhor com um sorriso. E não te esqueças dos ingleses. Foram úteis.” “Sim, meu senhor.” Respondi, limpando discretamente uma nódoa de vinho do pergaminho. “Mas se Vossa Alteza me permite, ponho também a padeira. Ela tem mais carisma que meio exército.”
E assim nos tornámos, sem saber, em improvável fotógrafo do século xiv, com pena em vez de lente e ironia em vez de rolo. Não sei se o fizemos com rigor, mas garantimos: ninguém saiu da batalha sem ficar na História. Nem nós. Afinal, alguém tinha de contar como tudo aconteceu antes que o primeiro selfie com armadura chegasse ao mundo.
O povo celebrou, as badaladas tocaram e assim se fez História: com cavalos, flechas, pão e uma pá homicida. Aljubarrota não foi apenas uma batalha, foi um festival de criatividade bélica com convidados anglo-saxónicos e um cheirinho a broa de milho no ar. Assim o vimos.
Há imagens que
são sementes lançadas ao terreno fértil da imaginação. Algumas nascem do clarão
súbito de uma fotografia; outras, da poética colorida de uma pintura. Nas
minhas recentes errâncias pelos vastos oceanos da Internet, à procura de telas
onde grandes veleiros rasgam o horizonte, ou se defrontam em épicos combates
navais, encontrei esta pintura, pungente na sua quietude.
É autor desta
obra intitulada “The Stay at Homes/Looking Out to Sea”, o norte-americano
Norman Rockwell que a publicou na revista “Story Illustration for Ladies Home
Journal” de Outubro de 1927.
A publicação do
FB de onde copiei a imagem tinha vários comentários, um deles propunha uma
legenda para a pintura “not yet, not anymore” (ainda não / já não), remetendo
para a condição do neto e do avô.
Não conheço a
história que a imagem ilustrou originalmente, mas certamente não será muito
diferente desta que imaginei e burilei na calma das férias, e de que
resultou o que aqui se oferece.
A Vigia
Era
uma manhã límpida de Junho, dessas em que o mar parece um espelho
verde-azulado, cortado apenas pelo traço branco das velas. Naquela colina batida
pelo vento, o avô e o neto eram como sentinelas de pedra. Só o cachorro
saltitava, irrequieto. O velho, com a mão pousada no ombro do rapaz,
transmitia-lhe, sem palavras, a antiga ciência dos que sabem ler o mar: que
cada partida é uma promessa e cada regresso, um milagre.
As
velas enfunadas brilhavam ao sol, e o casco cortava a ondulação como se
soubesse de cor o caminho para o alto-mar. Lá dentro, algures entre cordas,
barris e sal, seguia o pai, marinheiro experimentado, agora rumo a uma longa
viagem de comércio. O menino, de chapéu na mão, mantinha os olhos presos ao
navio que se afastava lentamente, enquanto assimilava que o mar não é só azul e
horizonte, é também espera e silêncio.
O avô, antigo capitão reformado, pousava
a mão firme sobre o ombro do rapaz. O gesto dizia mais do que qualquer palavra:
era promessa de que estariam ali, naquele mesmo lugar, para receber o pai quando
regressasse.
O cachorro, inquieto, farejava o ar
salgado, como se também quisesse guardar na memória o rasto do navio. As
gaivotas riscavam o céu, e o vento trazia o eco longínquo das vozes e do
estalar das velas. O menino respirava fundo, como se quisesse guardar todo
aquele momento dentro de si, o azul do mar, o brilho da luz, a figura do pai a
acenar no convés.
- Ele volta, não é, avô? – perguntou o
petiz, sem desviar o olhar.
- Voltam sempre, meu rapaz… voltam sempre. Respondeu o velho, embora soubesse
que o mar, por vezes, não devolve todos os que nele se aventuram.
E
ali ficaram, lado a lado, como guardiões silenciosos, a olhar para a linha do
horizonte onde o navio se tornava cada vez mais pequeno, até desaparecer na
curvatura da Terra.
Passaram-se meses. O verão deu lugar a um outono ventoso, e este cedeu a um inverno áspero, em que as ondas rebentavam contra o molhe com tal força que os borrifos de água se sentiam nas ruas da vila. E mais tempo foi passando, medido não só pelos anos, mas pelo diálogo constante entre o vento e as ondas.
O menino crescera um pouco nesse tempo. Já não corria pela praia com a mesma energia; aprendera, com o avô, a ler cartas náuticas, a reconhecer o rumo de um navio pelas velas, e a interpretar o humor do mar pelo tom do vento. Guardava no quarto um pequeno diário onde desenhava os barcos que via passar ao largo, imaginando sempre que, entre eles, podia estar o do pai.
O avô, por seu lado, mantinha-se fiel ao ritual: todos os dias, ao amanhecer, subiam juntos à colina. O cão, agora mais sereno, já não corria na frente; caminhava devagar, mas nunca faltava à vigia.
E então, certa manhã, o horizonte alterou a respiração. Uma mancha branca cresceu, rompendo o limite entre céu e água.
O menino sentiu o coração bater mais depressa.
- Avô… é ele? — perguntou, quase sem respirar. O
velho capitão apertou-lhe o ombro com mais força, o olhar fixo no navio que se
aproximava. Reconheceu, antes de qualquer outro, a forma familiar do casco, a
mancha do remendo na vela grande, e o modo como as velas se inclinavam ao sabor
do vento.
- É ele, meu rapaz… o teu pai voltou.
O grito de alegria do menino misturou-se com o ladrar do cão, e ambos correram pela encosta abaixo, deixando o avô seguir ao seu ritmo. Naquele momento, todos os invernos que tinham vivido pareceram dissolver-se no calor do reencontro e a distância entre partida e regresso desfez-se num só instante, como se o tempo fosse apenas espuma.
O pai desceu a prancha com os braços abertos, trazendo consigo o cheiro do mar e histórias que, naquela noite, se prolongariam à mesa, sob a luz tremeluzente do candeeiro a petróleo. Naquele abraço junto ao cais, o mar devolveu não apenas o pai, mas também a certeza de que a espera é um acto de fé. E, na colina, ficou gravada uma herança invisível: o saber que, mesmo quando o horizonte parece vazio, há sempre um navio a caminho.
E assim, o ciclo fechava-se: o mar levava, o mar devolvia, e na colina ficaria sempre alguém à espera, de vigia com os olhos postos no horizonte.
Era uma vez um menino chamado Simão, que passava
férias com os avós. Todas as noites, antes de adormecer, ficava à janela a
olhar as estrelas e pensava: Um dia, vou ser astronauta!
No quarto dos brinquedos, Simão tinha um capacete de astronauta feito de cartão pintado de prata, e um foguetão construído com almofadas e cadeiras. Quando fechava os olhos, imaginava que entrava no foguetão e partia para o espaço. Como os heróis Thunderbirds de que tanto gostava.
Numa dessas noites, sonhou que estava dentro do seu foguetão, a contar em voz alta: Dez… nove… oito… três… dois… um… partida! E o foguetão levantou voo com um rugido e atravessou o céu, passando por nuvens fofas e brilhantes.
Primeiro, visitou a Lua. Saltou de pedra em pedra, deixando pegadas na poeira dourada. Encontrou um coelho lunar que lhe ofereceu um chá de erva-doce. Depois, voou até a um planeta azul onde viviam peixes no ar, a nadar entre pequenas nuvens. Os peixes cantavam canções suaves que faziam cócegas no corpo das pessoas que os ouviam. Por fim, chegou a Saturno, onde as argolas eram feitas de milhões de bolas de gelado que pairavam pelo espaço. Simão provou uma de chocolate e outra de baunilha, eram fresquinhas e muito doces.
Quando o Sol começou a nascer, o foguetão voltou devagarinho à Terra. Simão acordou, ainda com o sabor do gelado nos lábios e um sorriso no rosto. Um dia, pensou, as aventuras não serão só sonhos.
Noutra noite de céu limpo e estrelado, Simão enfiou o seu capacete de cartão e sentou-se no foguetão de almofadas, pronto para mais uma viagem imaginária: Cinco… quatro… três… dois… um… partida!
Desta vez o foguetão levou-o até um planeta coberto de campos verdes, com árvores que brilhavam como candeeiros e flores que cantavam canções alegres. Simão correu pelos prados, acompanhado por pequenos cogumelos coloridos que rodopiavam como piões.
Mais adiante, encontrou um rio de água muito limpa, quase invisível, onde nadavam peixinhos transparentes que iluminavam o caminho. Um deles, muito curioso, ofereceu-se para guiar Simão até ao maior arco-íris do universo, que se estendia de uma montanha de cristal até ao céu. No regresso, passou por uma chuva de estrelas cadentes e apanhou uma delas com uma rede de sonho, para a guardar no bolso. E mais adiante ficou de boca aberta quando passou por ele um automóvel vermelho-vivo, a grande velocidade, era o Faísca McQueen, vejam só!
Quando acordou, já de manhã, sentia ainda o calor suave da estrela junto ao coração. Um dia - murmurou com um sorriso -, vou mesmo lá voltar.
E, desde então, todas as noites, Simão continuou a olhar as estrelas, certo de que o Espaço guardava um lugar especial para ele.
A bordo deste submarino vivo num exercício constante de
resistência física e psicológica. O espaço exíguo transforma cada movimento
numa coreografia apertada, onde cotovelos, ombros e costas chocam contra
paredes de metal e contra os corpos dos camaradas. O ruído grave e incessante
do motor mistura-se com o silvo de válvulas e o estalar de tubagens, criando
uma sinfonia metálica que não cessa nem para o sono. O ar é denso, carregado
com o cheiro quente da maquinaria, o suor entranhado nas roupas, o óleo
queimado, a humidade salgada e outros odores indiscritíveis que brotam de recantos
onde o ar escassamente circula.
A temperatura, sufocante, cola as camisas à pele. A comida, enlatada,
repete-se até à náusea: conservas de sardinha ou de cavala flutuando em azeite,
carnes prensadas, arroz que parece massa de preencher buracos, ovos emborrachados
e bolachas duras. O sabor torna-se tão monótono quanto os dias de patrulha,
quebrados apenas pela tensão permanente de que, a qualquer momento, o casco
pode implodir sob a explosão de uma carga de profundidade ou o choque com uma
mina à deriva.
Nestas condições, os pensamentos vagueiam entre a nostalgia
da terra firme e a obsessão pela sobrevivência. Cada estalido metálico soa a
prenúncio de desastre; cada silêncio súbito, um aviso mais terrível que o
ruído. E, no entanto, ao posar para a fotografia, consigo sorrir, não de
alegria, mas por desafio… ou será nervosismo?! Talvez não passe de um instante
roubado ao medo, uma pequena vitória contra aquela prisão submersa e a morte
que ronda invisível nas águas. Ou talvez seja apenas um sorriso em que exclamo:
ainda estou aqui e um dia irei candidatar-me a Presidente da República?!
Há criaturas que, por desígnio
insondável ou distracção da Natureza, atravessam a existência sem nunca terem
exibido qualquer préstimo palpável à sociedade que as alberga. Falo, claro, de
um Ornamento Bípede, um indivíduo cuja mais nobre utilidade, caso estivéssemos
a considerar uma ocupação há cinco décadas atrás, teria sido a de permanecer
hirto ao lado do televisor, servindo de interruptor humano para alternar entre
a RTP1 e a RTP2, dado não existir ainda o mágico telecomando.
Mas a vida é generosa para com os inúteis que se colocam bem. O progresso, esse cúmplice implacável do absurdo, retirou-lhe a última esperança de utilidade prática, o comando remoto surgiu e, com ele, a obsolescência do Homem-Pivô-de-Televisor. Seria de esperar que se recolhesse, resignado, ao limbo discreto dos inactivos funcionais. Nada disso. O nosso herói, ou melhor, o nosso bibelô institucional, reinventou-se.
Hoje, não mexe em botões, mas exibe com galhardia os seus. Vive da imagem, que cultiva com a sofreguidão de um narciso cultivado com o melhor húmus. Circula por congressos onde nada se discute, preside a comissões de coisa nenhuma, ostenta comendas que lhe são atribuídas pela sua inquestionável aptidão para a imobilidade. Foi elevado a dignitário do Nefando Instituto para a Promoção do Nada em Particular, e membro honorário do Grémio Internacional dos Cargos Pomposos e Irrelevantes.
O seu currículo é um rosário de nulidades laureadas. “Consultor Estratégico para a Visibilidade Transversal de Experiências Interdisciplinares”, seja lá o que isso for. Publicou um artigo sobre "Empatia em Ambientes Virtuais" e proferiu uma conferência sobre “O Silêncio como Forma de Expressão nas Organizações de Baixo Impacto”. O público não pateou, portanto gostou, ainda que a sala estivesse vazia.
É um vulto do nosso tempo, não por mérito, mas por ausência de alternativa. Onde dantes se exigia acção, hoje basta parecer ocupado. O inútil profissional tornou-se património simbólico da mediocridade organizada. Já ninguém espera dele o menor gesto de esforço: o seu simples estar é considerado contributo bastante. E tem porte para isso, como um candeeiro de iluminação pública, desses modernos a LED, de que nem se percebe a luz que irradiam.
E, no entanto, ali vai ele, gravata de nó duplo, peito eriçado de broches comemorativos de sessões protocolares, a receber o enésimo “Prémio Excelência em Relevância Potencial” com um semblante que diz tudo e nada.
E se o colocássemos ao lado do televisor, vá, para ver se ainda teria alguma utilidade? Mas desconfio que não. Seria demasiado exigente. E ele, coitado, já se cansa só de existir.
Há
na presença de um cagalhão no meio de uma multidão uma irrupção ontológica que
poucos ousam considerar com a devida reverência. Os mais superficiais vêem
apenas excremento; os mais atentos pressentem um vestígio do Absoluto, um rasto
de matéria que, tendo sido corpo, ousa permanecer quando o corpo já partiu.
O cagalhão, desprezado, escarnecido, impõe-se, todavia, como um sinal. Ele não é apenas o que resta da digestão, mas o que resta do Ser quando o Ser já não se pode justificar senão pela sua consequência mais inadiável, a expulsão. Ali, no chão de calçada onde pisam os distraídos e os apressados, jaz um manifesto contra a transcendência. A sua existência grita "Fui parte de alguém. Fui quente. Fui necessário. Agora sou repulsa e espanto."
Na multidão, esse humilde dejecto interrompe o fluxo do real; faz-se intervalo. Onde antes havia apenas o ruído indistinto de passos, murmúrios e afazeres, instala-se o silêncio horrorizado, o desvio súbito, o levantar da saia, o puxar da criança. O cagalhão obriga à consciência do caminho, como se dissesse “Atenção, passais por mim como passais pela vida, de olhar para cima, sem ver o que importa.”
Há quem diga que o cagalhão é democrático porque nivela o banqueiro e o mendigo, o académico e o carteirista. Nenhum deles o evita sem alterar o passo. Nenhum ousa negá-lo sem se desmentir a si mesmo. Se há algo que nos torna humanos, mais do que a razão, mais do que a linguagem, é o cagalhão e o constrangimento que provoca perante a merda.
Por vezes, o cagalhão no meio da multidão não é apenas literal. É símbolo, é um intruso, um excluído, que não devia estar ali mas insiste em estar. É o filósofo entre contabilistas, o poeta num congresso de engenheiros, o louco na assembleia da razão. A sua função é desestabilizar, incomodar, recordar que a realidade não é higiénica, nem linear, nem confortável. É, antes, fecal e fecunda.
E se, porventura, o cagalhão for pisado, ai! Então opera-se a catarse. A multidão, unida na repulsa, partilha o rito da tragédia, o infortúnio de um revela a fragilidade de todos. E, por instantes, somos comunidade. Não de ideias, não de afectos, mas de nojo. Uma comunhão visceral.
Assim,
o cagalhão no meio da multidão não deve ser removido com pressa, mas
contemplado como metáfora. Ele é a matéria caída que se ergue em sentido. O que
foi deixado para trás, mas nos confronta com o que somos. O que sai de nós, mas
nos devolve a nós.
Em última análise, quem nunca reflectiu sobre um cagalhão talvez não esteja verdadeiramente apto a compreender a condição humana.
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Lembro-me bem do som, agudo, mineral, do lápis de pedra a riscar a ardósia. Havia ali qualquer coisa de mágico, como se cada traço obedecesse a um sortilégio. A pedra era pequena, um rectângulo negro limitado por uma moldura de madeira de pinho encardida pelo tempo e pelas mãos infantis, mas dentro dela cabia o mundo inteiro.
A professora caminhava entre as carteiras com a solenidade de quem carrega segredos. Detinha-se aqui e ali, corrigia um traço, soprava uma sílaba, desenhava uma letra com mão firme corrigindo algo indecifrável. Às vezes, bastava um olhar, não de censura, mas de encorajamento para que a ardósia se povoasse de novos signos. Era um espaço de magia silenciosa, onde o tempo parecia suspenso, e cada palavra desenhada valia por mil ditas.
O lápis de pedra deixava um rasto esbranquiçado, assim se lia a tonalidade cinza sobre o fundo negro, que ia ganhando corpo à medida que o pensamento se alinhava com a mão. O artista, concentrado, escrevia não apenas o que aprendera, mas também aquilo que, sem saber, começava a intuir: que há uma ligação secreta entre o gesto e o espírito, entre o traço e a memória.
E depois vinha o apagamento. A esponja húmida, ligeiramente fria ao toque, passava sobre a superfície escurecida e, num segundo, tudo desaparecia. As palavras que haviam sido erros e vitórias, os rabiscos tímidos e as construções orgulhosas, tudo voltava ao negro inicial. Mas não era uma perda, era um recomeço. Como quem lava o rosto para um novo dia, a ardósia preparava-se para outra lição, outra tentativa, outro milagre. Mesmo quando rachava não deixava de ter uso, sobretudo se a moldura ainda lhe garantia a integridade. Afligia, mas ainda servia.
Hoje, quando encaro os ecrãs brilhantes, dou por mim a suspirar por aquela simplicidade antiga. A ardósia ensinava-nos mais do que letras, mostrava-nos que tudo pode ser reescrito, que o erro não é o fim, mas parte do caminho; e que o saber, como a vida, se faz e desfaz numa dança constante de memória e esquecimento.
Será que deixámos mesmo de escrever na ardósia, ou só mudámos de superfície? Gostava de acreditar que sim, mas temo que a matéria tenha modificado o espírito. Já o fez no passado, quando à mão afeiçoámos os primeiros instrumentos pré-históricos; quando o domínio do fogo alterou a compreensão do Mundo, ou quando o computador alterou a velocidade de escrever ou a IA suplantou a capacidade de arquivar, selecionar e relacionar conhecimentos.
Será que a mão, extensão que materializa o pensamento, ainda procura o sentido no meio do caos, como fazia naqueles tempos primordiais?!
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Felizmente, ainda se vendem. |
A partir de um livro de modelos, O Serralheiro Moderno, de 1936, escolhia o desenho da peça a executar e, com uma ou outra alteração ditada pela falta de determinada matéria-prima, levava a cabo o trabalho com esmero, atribuindo especial importância à simplicidade e à funcionalidade, por vezes em detrimento da estética da peça. Interessavam-lhe sobretudo os objectos duradouros e práticos, qualidades talvez moldadas pela exigência das maquinarias que cravavam, lavavam e esterilizavam as latas de conservas.
Na sua oficina particular, destacava-se um imponente balancé em ferro fundido: uma roda de balanço que imprimia, através de uma enorme rosca, uma pressão gigantesca, permitindo comprimir chapas, cantoneiras e tubos, moldando-os conforme a forma que os moldes previamente construídos lhes conferiam, fosse para uma balaustrada doméstica, um corrimão de varandim para uma traineira, ou para as sugestivas curvaturas de topo de algum portão rural.
Ali existia também um interessante e vetusto aparelho bifásico de soldar a arco voltaico, de robusta construção britânica, a par de outras máquinas-ferramentas que as décadas de serviço já haviam tornado dignas de museu, mas todas funcionavam. Era frequente ter de inventar ferramentas para resolver problemas específicos: chaves para montar e desmontar fixadores de difícil acesso em loiça sanitária, ou para alcançar os recantos ocultos das enormes cravadeiras sem necessidade de as desmontar integralmente.
Era engenhoso, meticuloso e paciente, à imagem de tantos outros mestres dos mais variados misteres, que, ao longo da vida, se socorreram da imaginação e do engenho para resolverem aquilo que, de outro modo, apenas avultadas quantias de dinheiro poderiam suprir.
A lanterna de parede exterior, que ainda hoje resiste ao tempo, é um objecto de inequívoca beleza que, à sua modesta escala, nos transmite as mesmas sensações que terão sentido os primeiros espectadores das grandes arquitecturas do ferro do século XIX: as deslumbrantes gares ferroviárias, pontes, quiosques, estufas e pavilhões de jardim, escadarias e varandas de imaginosos rendilhados onde o ferro forjado ou fundido se dobrava e torcia ao sabor da fantasia de poéticos artífices.
A eufemística “console para iluminação”, de que aqui se apresenta o modelo, é executada em vergalhão quadrado de 20 mm e barra de 20 mm x 12 mm. Após intenso e aturado trabalho de corte das várias peças, torção de algumas ao fogo da forja e remate na bigorna; após a soldadura eléctrica que funde e une os diferentes elementos; após a passagem com o disco de esmeril que alisa as rebarbas dos cortes e os excessos da soldadura, seguia-se a pintura em tom escuro e mate e, por fim, o meu singelo contributo: fazer passar o cabo eléctrico, instalar o casquilho de porcelana e colocar a lâmpada de tungsténio que havia de iluminar a noite a partir daquela admirável estrutura.
Agora, já se enxerga no escuro, Mestre Chico.
Uma cravadeira 'moderna' dos anos 70
Tinha lavrado no meu imaginário Manual de Autonegação para Almas Prudentes, germinado no início do novo milénio, que o segredo da vida reside em manter uma fronteira intransponível entre a realidade e a fantasia, erguendo, entre ambas, uma muralha de vigilância constante, onde não penetrem os devaneios, as extravagâncias nem as viscerais pulsões que tantas vezes nos arrastam ao abismo ou à glória. Enfim, guardar-se, como quem se protege da COVID, das excentricidades do desejo, das arritmias da esperança e das tonturas que os sonhos costumam causar a quem os leva a sério.
Viver, segundo esta doutrina, é um exercício de contenção lúcida: evitar que os ímpetos do desejo, por mais brilhantes que se mostrem, perturbem a tranquilidade do quotidiano e contaminem, com o seu fulgor febril, o mundo concreto das relações. É uma filosofia que preconiza o equilíbrio, a moderação, a harmonia; um ideal de vida isenta de sobressaltos, sem as agruras do entusiasmo nem as vertigens da esperança. Uma vida de superfície tranquila, onde as águas não se encrespam e o coração bate, sim, mas em surdina. A neutralidade emocional torna-se, aos poucos, uma espécie de armadura, pesada, mas eficaz.
No entanto, essa blindagem do real contra o imaginário, esse cordão sanitário entre o que se sonha e o que se faz, tem o seu preço. Ao interditar o sonho, cerceia-se a germinação das ideias que fundam e transformam o mundo. Impedir que as extravagâncias influenciem a realidade é, talvez, impedir a própria invenção da vida. Então não são os impulsos, as intuições e as desrazões súbitas que fazem nascer os grandes actos, os feitos eternos e as conquistas duradouras?!
Imaginemos alguém que admira, por exemplo, Tom Waits e Manuel João Vieira; como pode essa pessoa escolher uma vida sem ousar, sem risco, permanentemente com medo do julgamento dos outros?!
Ora aqui está um magnífico repto para reflexão. Admirar Tom Waits e Manuel João Vieira e, ao mesmo tempo, viver uma vida contida, asséptica, ordeira… é como venerar o deus Baco e fazer voto de sobriedade. Tom Waits, com aquela voz de prego enferrujado e alma de poeta bêbado, não canta a vida: esgana-a, mastiga-a, cospe-a em forma de beleza deformada. Ele vive no risco, na margem, no absurdo e convida-nos a dançar sobre os estilhaços disso tudo. Cada música sua é uma ode ao que é torto, falhado, mas vivo, visceralmente vivo.
E o Manuel João Vieira, esse príncipe do delírio luso que é a própria encarnação da ironia e da transgressão. Brinca com o kitsch como um demiurgo pop, desafia o bom gosto com uma sofisticação burlesca, e faz do absurdo um acto de resistência. O seu génio é uma gargalhada desobediente ao conforto estabelecido.
Então, como é que alguém que os admira pode escolher uma vida sem rasgo? A resposta é, no mínimo, incómoda: pela covardia disfarçada de lucidez. É que o admirador de Waits e Vieira sabe que existe um mundo mais interessante do que aquele, asséptico, onde se move. Um mundo onde se grita, se ama, se falha, se perde, se inventa. E em vez de dar um salto arrebatado, transgressor, limita-se a arrastar os pés polindo a calçada do quotidiano.
O rigor cartesiano da existência sem sobressaltos, se por um lado evita os tropeços, por outro inibe os voos. A alma, enclausurada numa austeridade emocional, facilmente resvala para uma melancolia elegante mas estéril, uma vida insípida, desbotada, onde a beleza é medida e o risco evitado. Vive-se, sim, com serenidade, mas uma serenidade talvez demasiado próxima da apatia.
Ainda assim, não se deve desprezar o valor dessa paz. Num mundo saturado de ruído, imediatismo e paixão desgovernada, a escolha de uma vida ordeira e livre dos caprichos do desejo é, ela própria, uma forma de rebeldia serena. Há quem encontre, nesse comedimento, uma felicidade discreta sem espectáculo nem sobressaltos, um contentamento feito de silêncio, tempo lento e previsibilidade. Um jardim sem rosas, mas também sem espinhos. Uma serenidade quase clínica, como a de um doente sedado que já não sente nem dor... nem emoção.
Há quem ache este o único modo sensato de existir. E talvez não estejam totalmente errados. Os exaltados vivem aflitos, os apaixonados sofrem, os visionários ardem depressa e os rebeldes acabam quase sempre na margem da estrada, rodeados de dívidas e arrependimentos. A contenção é segura. É aborrecida, sim, mas segura.
No fundo, trata-se de uma escolha, entre uma vida fervilhante mas caótica, onde se tropeça nos próprios desejos, e outra, higiénica e inodora, onde nada dói porque nada se sente. A primeira arrisca a ruína; a segunda garante o tédio. É inequívoco que os que ousam sonhar têm a irritante tendência de querer viver. Ora, há que evitar tudo o que implique risco, esforço, frustração, ou glória. As paixões, perigosas como fogos de Verão, são substituídas por hobbies seguros: Sudoku, jardinagem, ou indignação nas redes sociais. E, em vez disso, constrói-se uma existência exemplar, discreta, funcional, com um sorriso convencional e contas em dia.
E no fim? No fim há a grande recompensa: uma velhice saudável, lúcida, e perfeitamente desprovida de memórias que valham a pena. Uma colecção de dias iguais, guardados como recibos antigos. Nenhuma tragédia, mas também nenhum feito. Nenhum escândalo, mas também nenhum milagre. Os cemitérios estão cheios de almas assim, bem-comportadas e irrepreensivelmente imóveis.
Mas, porque é que há gente que vive, ou procura viver, desta forma? Creio que uma das razões, talvez até a mais importante, assenta no facto de que desde cedo somos amestrados para caber. Para caber na sala de aula, na profissão decente, na fotografia da família e, sobretudo, na ideia que os outros têm de nós. O que nos ensinam e pedem não é que sejamos ousados, mas submissos, a obediência ao bom senso, ao decoro, ao “não faças ondas”. A educação é, frequentemente, um subtil processo de castração simbólica, onde os impulsos mais autênticos, emocionais, até espirituais, são tratados como excentricidades ou delírios ameaçadores.
O julgamento dos outros assume-se como um
tribunal interior permanente, um autêntico tribunal do Santo Ofício. É como se
vivêssemos debaixo de um olhar invisível, dos pais, dos professores, dos
colegas, da sociedade, de Deus, do algoritmo que regula o funcionamento da rede
social; e esse olhar condiciona e molda a nossa acção. Rir alto demais? Risco.
Dançar sem jeito? Risco. Amar quem não se deve, dizer o que não convém, seguir
uma ideia absurda? Tudo riscos. Por isso, muitos não escolhem conscientemente a
vida sem rasgo, cedem-lhe, derrotados pela exaustão de tentar parecer normais.
Passam a vida a pedir desculpa por serem quem são e a usar a moderação como
couraça. Tornam-se mestres da contenção, especialistas em abafar qualquer
faísca antes que possa incendiar a reputação.
Talvez o equilíbrio esteja, como sempre, na justa medida; não deixar que os delírios conduzam a vida, mas tampouco expulsá-los dela. Permitir-lhes o lugar do hóspede, mas não do senhor. Uma existência inteiramente asséptica de paixão não é mais virtuosa, é apenas mais previsível. E a previsibilidade, quando não alimentada por algum frémito do imaginário, acaba por ser simplesmente entediante. Pois aquela vida que parecia tão tranquila e segura revela, finalmente, o que é, um palco demasiado breve para se viver apenas nos bastidores. Viver, afinal, é encontrar o exacto ponto onde a ousadia não nos destrói, mas também não nos abandona. É aceitar que a realidade, quando habitada com sensibilidade e arte, pode ser lugar de sonho.
Para viver sem temer a própria sombra, há que reconhecer que somos feitos também de falhas, contradições e zonas opacas, e que não há nisso nada de vergonhoso. Para viver sem o peso do juízo alheio, há que compreender a natureza de quem julga: quase sempre, os que censuram são os que não tiveram coragem de fazer. Os que exclamam: - Excêntrico! Perigoso! Irresponsável! São, muitas vezes, os que frustraram em si mesmos a audácia que agora vêem e criticam no outro.
Não devemos desculpar-nos por sermos como somos. Não devemos viver para ser compreendidos pelos outros, mas sim para não nos trairmos. Devemos viver com autenticidade, não com permissão.
E quanto à felicidade, esse conceito
envernizado, higienizado e formatado pela norma social e pelo marketing da
alma, talvez o melhor seja deixá-la em paz. Não a perseguir como quem corre
atrás de um balão ao vento. Em vez disso, procurar viver com autenticidade, fruindo
o momento, entregues àquilo que verdadeiramente nos move e aceitando o que vier
como consequência, não como recompensa.
A felicidade deve chegar como uma visita inesperada. E se não chegar… que ao menos não tenhamos vivido à espera dela.
Quem nunca se permitiu enlouquecer um pouco, viveu, no fundo, sempre em coma.
E, assim, rasguei o meu Manual de Autonegação para Almas Prudentes.
Eu posso escrever Má Que Jeite, ou Máquejête, e outro algarvio escrever MaKejeit, Maquejet ou Máquejêit, ou outra coisa qualquer que soe semelhante àquilo que se pronuncia, em Lagos ou em Olhão, no Alferce ou em Martinlongo, sendo certo que se pronuncia de forma diferente em vários locais do Algarve.
Qual das formas de grafar a pronúncia dessa palavra será a correcta? Para um uso corrente, em linguagem coloquial (popular), diria que qualquer uma estará correcta. Mas se pretendemos comunicar com falantes de outras paragens diferentes, teremos de recorrer ao rigor da norma linguística, pois só ela nos permite redigir com exactidão os valores fonéticos (o som das sílabas e das palavras), usando uma ferramenta muito específica que se chama Transcrição Fonética. Só dessa forma poderemos transmitir a falantes de pronuncias diferentes, dentro da mesma língua padrão, a exacta sonoridade das palavras. Tomemos este exemplo da expressão algarvia Má Que Jeite?!
A expressão algarvia "má que jeite?!", como interjeição interrogativa, é uma forma popular e expressiva de dizer, "Mas que jeito?!" ou "Por que razão?!", sendo típica da oralidade e do falar regional.
A transcrição fonética exacta pode variar ligeiramente consoante o
falante, mas com base numa pronúncia típica algarvia (acentuada, rápida, algo
fechada nas vogais e com certas elisões), uma proposta de transcrição no
Alfabeto Fonético Internacional seria:
[ˈma kə ˈʒɐjtɨ] ou [ˈma kə ˈʒɐjtə]
[ˈma] – corresponde a "má", com o acento na vogal aberta [a];
o "s" de "mas" é muitas vezes elidido ou reduzido
oralmente.
[kə] – redução do "que", comum na fala rápida e popular; a
vogal reduz-se a uma schwa [ə], som neutro típico do português europeu.
[ˈʒɐjtɨ] ou [ˈʒɐjtə] – representa "jeite", com o j como fricativa palatal sonora [ʒ], e o ditongo [ɐj]; a vogal final pode ser [ɨ] (fechada e central, típica do português europeu) ou [ə] (mais reduzida), dependendo da região ou do grau de informalidade.
A interrogação na entoação não se transcreve com símbolos fonéticos
básicos, mas pode ser assinalada prosodicamente com uma subida tonal.
Esta expressão é muitas vezes dita com emoção, surpresa ou desconfiança; e o tom, mais do que o conteúdo, revela o sentido.
No Sotavento algarvio (ex. Tavira, Olhão, Vila Real de Santo António) a
pronúncia é rápida, com redução de vogais átonas, entoação expressiva e elisão
de consoantes finais, resultando:
"Má que jeite?!" → [ˈma kə ˈʒɐjtɨ] ou [ˈma kə ˈʒɐjtə]
No Barlavento algarvio (ex. Lagos, Portimão, Monchique) a pronúncia pode
apresentar menos redução de vogais, mas ainda apresenta um ritmo informal e
vogais algo fechadas:
"Má que jeite?!" → [ˈma kɨ ˈʒɐjtɨ]
Enquanto que em Português europeu padrão (formal ou lido) a pronuncia
da mesma palavra apresenta maior cuidado na articulação, sem reduções extremas:
"Mas que jeito?!" → [mɐʃ kɨ ˈʒɐjtu]
Em síntese: alguém que pretenda insistir numa forma correcta de reproduzir em palavras a pronúncia de um regionalismo linguístico terá de respeitar as regras da Transcrição Fonética.
Em alternativa, pode continuar a escrever como pensa que melhor
reproduz aquilo que diz ou ouve, sendo certo que qualquer outro falante poderá
grafar a mesma expressão de modo substancialmente diferente, sem que nenhum possa
reivindicar o cumprimento da norma ou a exactidão daquilo que apresenta.
Estando viva, a língua mexe e remexe-se. É bom sinal.
Mákejetes, mon?!
Nas
manhãs de Julho, o mar ao largo da Ponta Ruiva costuma parecer um espelho
preguiçoso, reflectindo o céu algarvio com a inocência de quem não guarda
memórias. Mas o Atlântico tem boa memória, ainda que não fale. E foi ali, nas
águas traiçoeiras de Sagres, que o ERATO encontrou o seu canto final.
Corria o ano de 1832. A bordo, o capitão Carter levava o navio rumo a Livorno, com a dignidade própria de quem desafia os continentes na sua deriva geológica. Saíra de Liverpool a 21 de Junho, embalado pela confiança da marinhagem inglesa e por mercadorias que jamais chegariam ao destino. No dia 12 de Julho o ERATO vergou-se à costa agreste da Ponta Ruiva, onde as ondas não perdoam e os rochedos guardam segredos antigos.
Do desastre salvaram-se alguns restos, como é costume. Mas os salvados, em vez de irem parar às mãos de quem de direito, foram desviados por quem jurava proteger os interesses da Coroa britânica. Macedo e Brito, o vice-cônsul inglês em Lagos, que usava o cargo como quem veste um casaco pomposamente engomado, viu ali uma oportunidade e ajudou-se, generosamente, no espólio do naufrágio. Esqueceu-se apenas de um pormenor: não era profissional da pilhagem, nem vivia em tempos de corso. Foi preso no Limoeiro, o velho cárcere de Lisboa, onde muitos nobres e patifes partilhavam paredes húmidas e culpas mal distribuídas.
O ERATO, batizado com nome de musa, filha de Zeus, acabou submerso no reino de Neptuno. Já Macedo e Brito perdeu a honra em terra firme onde, às vezes, se naufraga com mais estrondo. A história esqueceu os nomes dos marinheiros, dos carregadores e dos humildes que viviam do mar. Mas ainda hoje, quando o vento sopra de levante e as gaivotas se inquietam à vista da falésia, há quem diga que o oceano se lembra. E que o canto da musa naufragada ressoa, de quando em quando, entre os arenitos rubros da Ponta Ruiva.
Liverpool e o Limoeiro no séc xix
Há nações que vivem do petróleo, outras do turismo, umas da indústria pesada, outras da ligeira, algumas da finança engenhosa, outras da agricultura extenuada. Portugal, país de navegadores reformados e influencers virtuais, vive de uma arte mais subtil e profundamente refinada: a arte de parecer miserável sem abdicar da pose de novo-rico.
É um milagre moderno. ou melhor, uma tragicomédia ibérica com encenação permanente, que um país cuja indústria se resume, em boa parte, ao aluguer de quartos com cheiro a mofo e sombreiros de praia fabricados na China, consiga manter em funcionamento um sistema público que faz inveja à Disneylândia, com a única diferença de que na Disneylândia os bilhetes são pagos e os castelos têm utilidade. O turismo tem o seu lugar, mas Portugal precisa de uma economia diversificada, mas como se os decisores não possuem um cérebro eclético?
A agricultura? Ah, essa nobre tradição. Serve hoje sobretudo para cultivar subsídios, colher candidaturas e plantar painéis fotovoltaicos entre dois sobreiros ameaçados por uma vara de suínos de aspecto suspeito.
Ainda assim, o país lá vai erguendo faraónicos estádios de futebol e investe alegremente em voláteis centrais de hidrogénio; encomenda esculturas públicas com preços de penthouses, como a simpática aberração de 1,25 milhões de euros em Oeiras, uma espécie de homenagem ao desperdício com formas artísticas.
E que dizer do nosso venerável Banco de Portugal, que, por pudor de pensar sozinho, decidiu pagar 245 mil euros em consultoria financeira durante dois meses, porque a banca é uma ciência oculta, e mais 190 mil para saber como se gere... um banco. Com essa lógica, brevemente teremos consultores para ensinar ministros a despachar e deputados a estar acordados.
O auge, porém, é o presidente do Inatel, que teve o bom gosto de pagar cinco mil euros para se fazer entrevistar por uma revista que até é distribuída como peça de publicidade em encarte de periódico nacional. Nada mais natural num país onde se financia o ego como se fosse infraestrutura crítica.
Quanto às regalias dos altos cargos públicos, é melhor não mexer, não por falta de coragem, mas por não caberem num ficheiro Excel. Fala-se de carros com motorista, cartões mágicos, reformas aos quarenta e um, e dietas que alimentam vícios mais do que o corpo. Versalhes em dia de gala pareceria, ao pé disto, um retiro franciscano.
Endividados até ao tutano, e também nas futuras encarnações (em caso de reencarnação fiscal), os portugueses olham para os fundos europeus com a fé de um peregrino e a sofreguidão de um glutão. Bruxelas, essa espécie de fada-madrinha tecnocrática, tornou-se mãe, pai, padrinho, mecenas, terapeuta e, às vezes, esposa violenta. Quando a produtividade falta, aparecem compensações. Quando a nação tropeça, vêm cimeiras com folhetos coloridos e discursos em PowerPoint com muito impacto e pouco conteúdo.
É verdade, produzimos pouco. Ou mal. Mas, convenhamos, produzimos com arte. Há pareceres para tudo: desde como estender a toalha na praia sem ferir a biodiversidade, até ao impacto ecológico de uma sardinhada. Planos estratégicos há tantos que se podia construir um aeroporto com eles, e se calhar ainda é isso que vai ser feito – esperemos, porque sairá mais em conta.
Onde faltam tractores, sobram consultores. Há mais projectos que projectistas, mais diagnósticos que médicos e mais reformas anunciadas do que tentadas e, menos ainda, realizadas.
No meio de tudo isto, o cidadão comum, esse Quixote sem cavalo, mas com crédito à habitação – existindo habitação – vive num estranho equilíbrio: acima das suas possibilidades, mas sempre aquém das suas exigências. Quer saúde gratuita, educação gratuita, transportes gratuitos, justiça célere (um devaneio romântico), pensões justas, reformas aos sessenta e jantares fora ao fim-de-semana. E tudo isto pago, claro, pelos impostos de alguém mais organizado, mais a norte, e preferencialmente com nome terminado em “…mann”.
Entre uma greve dos professores, outra dos transportes, uma da função pública, outra vez dos professores porque não tinham terminado a anterior, e mais uma dos transportes só para marcar posição, o país vai resmungando com distinção. A culpa é sempre do passado: colonialismo, neoliberalismo, o Salazar, o FMI, o euro, ou a troika, ainda. Quando se quer culpar alguém próximo, há sempre o Governo ou os sindicatos, depende da disposição, ou da posição.
Portugal é, assim, uma sinfonia barroca desafinada, mas tocada com entusiasmo: endividado com graça, improdutivo com método, e pobre com requinte. Um país onde se vive como se o amanhã fosse um detalhe técnico, e onde se confia que alguém, algures, com paciência e fundos, acabará por pagar a conta. As reformas que o País precisa, nenhum Governo as faz. E não há estratégias, nem planeamento, nem ideias; só há a mão estendida de um país que se resignou a ser pedinte. Em suma, Portugal é um país incapaz de se governar decentemente a si próprio e assim continuará a ser enquanto forem outros a pagar a conta das asneiras.
Eis o verdadeiro milagre português: transformar défice em destino, dívida em identidade, e subsídio em religião. E, afinal, o que somos nós?
Poetas, pois claro, mas com cartão de crédito.