Nevralgia abdominal
Uma culposa frase da autoria de João Pedro Vala, publicada na Revista Ler nº 173 (Inverno 2024/2025) e o ambiente de quadra festiva que ora se atravessa, televisivamente dramatizada pelos protagonistas da novela Campanha Eleitoral, acariciaram-me o córtex e incitaram os dedos à ginástica materializadora da diarreia mental que daí resultou. Aqui defeco a produção entérica que o passar dos milénios transformará em coprólito digital para regozijo dos paleoantropólogos cibernéticos do futuro.
“Quaisquer tradições e regras que nos trouxeram até aqui têm a pairar sobre si o anátema da culpa pelo estado a que chegámos.” In Bolo de Bolacha ou uma Ideia de Imitação, de João Pedro Vala.
A crise em que nos encontramos — seja ela moral, social ou política — não pode ser dissociada do legado que herdámos e que, em muitos aspectos, aceitámos sem questionamento. A veneração cega por estruturas antigas, por convenções petrificadas no tempo, tem-se revelado um entrave à renovação necessária para responder aos desafios contemporâneos. Durante demasiado tempo, confundimos respeito pela tradição com imobilismo. Cultuámos o passado como se dele emanasse uma sabedoria inquestionável, esquecendo que até os alicerces mais firmes podem ruir quando não se adaptam às realidades do presente. Não se trata de negar a importância da História, mas de reconhecer que algumas das normas que nos regem foram concebidas para contextos que já não existem. A continuidade cega de tais regras tem perpetuado desigualdades e abafadas vozes dissidentes. É, pois, legítimo interrogar se a fidelidade a esses pilares — jurídicos, culturais, institucionais — nos tem servido ou se, pelo contrário, tem contribuído para o desgaste da identidade social. A responsabilidade não é exclusiva de quem os criou, mas recai sobretudo naqueles que, tendo o poder de os reformular, optam por os manter, temendo o julgamento da ruptura e o incómodo da mudança. Temendo o julgamento popular e a consequente perda de eleitores?!
Toda a tradição, quando transformada em dogma, deixa de ser memória viva para se tornar numa prisão. E é nesse cárcere simbólico que muitas sociedades, inclusive a nossa, permanecem enredadas — incapazes de conceber um futuro diferente, precisamente porque se sentem compelidas a perpetuar os erros do passado sob a capa do respeito. Urge, pois, um acto de coragem: o de revisitar o nosso legado com espírito crítico, resgatando o que nele houver de verdadeiramente valioso, mas rejeitando, sem pejo, aquilo que já não serve. Porque só ao confrontarmos o peso dessas tradições com a honestidade da razão poderemos aspirar a um novo pacto social, mais justo, mais livre e, sobretudo, mais humano.
Persistimos num modelo que privilegia o formalismo sobre a substância, a estabilidade sobre a justiça, a continuidade sobre a renovação. E, ao fazê-lo, traímos a promessa de um sistema (Democracia) que deveria servir o bem comum, e não proteger os interesses de uma elite instalada. A tradição política, que em tempos ofereceu garantias contra o arbítrio, tornou-se ela própria um obstáculo à mudança. O respeito quase sacral pelas instituições herdadas impede que se questionem as suas falhas mais evidentes — o distanciamento dos representantes face aos representados, a captura do Estado por interesses económicos, a opacidade dos mecanismos de decisão, etc.
Não surpreende, pois, que a confiança popular nas
instituições democráticas se tenha erodido. Quando a norma se torna escudo para
a manutenção de privilégios e não instrumento de transformação, instala-se a
apatia e, com o passar do tempo, a revolta. E são nestas brechas que florescem
os discursos populistas, que, mesmo quando erráticos ou perigosos, se alimentam
da justa indignação de quem se sente defraudado ou excluído.
O problema não reside apenas nas regras em si, mas na
forma como elas foram naturalizadas, como se o regime vigente fosse o culminar
inevitável da história. Esquecemos que a democracia é uma construção em
permanente aperfeiçoamento, e não um monumento a conservar. O apego dogmático a
tradições políticas caducas é, pois, um acto de conservadorismo disfarçado de
prudência. E nessas águas navegam os mais apregoados democratas.
A construção do futuro exige rupturas — não irresponsáveis, mas necessárias. Será necessário repensar o papel do Estado, a forma como se organiza o poder, os mecanismos de participação cidadã, e até os fundamentos da própria representação. A política terá de se libertar do peso morto das tradições que já não servem e reencontrar o seu impulso original: o de organizar a convivência humana segundo princípios de justiça, liberdade e dignidade. Considerando o gritante falhanço da Justiça, a falaciosa Liberdade (como, sem autonomia económica?), o atropelo constante à dignidade do indivíduo, sucessivamente ludibriado e espoliado, tal tarefa implica coragem e visão. Mas sobretudo implica reconhecer que, se chegámos até aqui seguindo certas regras, talvez só possamos avançar, avançar no sentido de progredir, questionando-as.
A realidade mostra-nos um país onde o sistema político permanece excessivamente centrado nos partidos, com escassa abertura à participação cívica directa. Esperar que os cidadãos invadam os partidos para modelar a sua vontade, restabelecer a ética republicana e moralizar a sua actuação é um devaneio pueril. Os mecanismos de representação mantêm-se enraizados num modelo de listas bloqueadas, que perpetua lógicas de obediência interna em detrimento da responsabilidade perante os eleitores. Os deputados eleitos pelos círculos distritais respondem, na prática, mais às direcções partidárias do que às populações que supostamente representam. Esta distorção mina a legitimidade do parlamento e contribui para o crescente afastamento entre governantes e governados.
Ademais, assistimos à cristalização de uma classe política profissionalizada, que transita entre cargos públicos e privados, entre governos e administrações, num movimento que suscita fundadas suspeitas de promiscuidade e conflito de interesses. A regulação ética, embora propagada em discursos e presente no papel, revela-se ineficaz na prática, sendo frequentemente contornada ou ignorada. A constante sucessão de casos mediáticos envolvendo figuras de topo da governação — nomeações duvidosas, negócios opacos, incompatibilidades não declaradas — alimenta um clima de desconfiança e cinismo generalizado. O cidadão assume capacidade crítica, mas não auto-crítica, esquecendo que aqueles políticos são oriundos do mesmo húmus de onde ele provém.
O sistema judicial, por seu turno, embora formalmente independente, não escapa à crítica. A morosidade da justiça, os processos arquivados por prescrição e a percepção de que os poderosos raramente enfrentam consequências reais corroem o sentimento de igualdade perante a Lei. Tudo isto reforça a ideia de que as regras em vigor já não asseguram um funcionamento transparente, justo e eficaz do regime. Neste contexto, torna-se evidente que muitas das tradições e normas que foram essenciais na consolidação da democracia portuguesa revelam hoje sinais de exaustão. A invocação constante do “consenso constitucional” ou da “estabilidade institucional” serve, demasiadas vezes, como escudo contra qualquer tentativa séria de reforma. Fala-se de revisão do sistema eleitoral, de reforço da participação cidadã, de maior transparência na administração pública — mas tudo permanece invariável, refém do medo de tocar nos alicerces.
A regeneração política de Portugal não passará por paliativos nem por reformas cosméticas. Exige uma reflexão profunda sobre a forma como o poder é exercido e fiscalizado, sobre o lugar que se reserva ao cidadão no processo democrático, e sobre a coragem de romper com hábitos que, embora legalmente estabelecidos, já não servem os interesses da colectividade. Só assim poderá o país reencontrar um rumo em que a política seja vista, não como um jogo de interesses privados, mas como um verdadeiro serviço à res publica.
A crise da participação cidadã em Portugal é hoje um dos sintomas mais preocupantes do desgaste democrático. A crescente abstenção eleitoral, o desinteresse generalizado pelo debate político e a falta de envolvimento nos mecanismos institucionais de decisão denunciam um profundo mal-estar. Muitos portugueses deixaram de acreditar que a sua voz conta — e, quando o cidadão se sente irrelevante, recua, desliga-se, abandona a praça pública. Este alheamento não surgiu por acaso, nem pode ser imputado unicamente a uma suposta indiferença cívica. É, antes, o resultado de décadas de governação centrada nas cúpulas partidárias, de políticas decididas à porta fechada, de uma cultura política que desconfia da participação activa fora das estruturas tradicionais. Os conselhos consultivos municipais, as assembleias de freguesia, os processos de consulta pública são, na maior parte dos casos, inócuos ou meramente decorativos. A participação é frequentemente entendida como um favor concedido pelo poder, e não como um direito pleno dos cidadãos.
Para combater esta apatia, é necessário transformar profundamente a forma como o Estado se relaciona com a sociedade civil. A participação não pode ser um apêndice opcional da democracia — deve ser um dos seus fundamentos. Isso implica criar canais efectivos de escuta e decisão, dotados de poder vinculativo ou, pelo menos, de influência real sobre as políticas públicas. Exemplos concretos não faltam. A introdução de orçamentos participativos em várias autarquias foi um primeiro passo promissor, mas que carece de maior ambição. Estes mecanismos, quando bem implementados, permitem que os cidadãos definam prioridades de investimento local, promovendo um sentimento de pertença e responsabilidade colectiva. No entanto, muitos destes processos foram esvaziados por falta de financiamento significativo, por regras pouco claras ou por ausência de acompanhamento técnico.
Outro caminho possível é o reforço das assembleias deliberativas com participação aleatória de cidadãos — fóruns de cidadãos escolhidos por sorteio, com tempo e informação adequados para discutir temas complexos e propor soluções. Estas assembleias, já testadas em países como a Irlanda ou a França, permitem escapar à lógica partidária e aproximar a decisão política do senso comum informado. Em Portugal, experiências incipientes neste domínio (como o Conselho de Cidadãos para o Clima) mostraram potencial, mas ainda não lograram consolidar-se como instrumentos permanentes de governação.
É também fundamental que o sistema educativo cultive, desde cedo, uma cultura de cidadania activa. A educação para a participação não se pode limitar ao ensino formal sobre instituições; deve incluir práticas concretas de debate, organização, intervenção no espaço público. Uma democracia saudável começa nas escolas, nas associações juvenis, nas colectividades locais.
Por fim, será preciso reabilitar o valor do compromisso cívico. Isso passa por devolver dignidade à acção colectiva, valorizando quem se envolve no associativismo, no voluntariado, nas causas públicas. E também por garantir que o tempo do cidadão não é desperdiçado com processos burocráticos, consultas simbólicas ou promessas vãs. Quando a participação produz resultados visíveis, o cidadão regressa. Mas quando é ignorado ou manipulado, afasta-se — e com razão. Combater a apatia exige, pois, mais do que campanhas institucionais ou apelos morais. Exige uma reconfiguração do próprio contrato democrático: uma democracia onde o cidadão não seja mero espectador, mas protagonista. Só assim será possível resgatar a confiança perdida e devolver vitalidade à democracia portuguesa.
Tudo tem de começar por algum lado e a realidade local poderá contribuir para a mudança da sociedade. Assim, e para cativar a participação cívica a nível local devem ser reforçados alguns aspectos já ensaiados nalguns municípios e adoptados outros igualmente importantes, como:
Orçamentos Participativos com Poder Real e Inclusivo, que muitas câmaras municipais e juntas de freguesia em Portugal já adoptaram mas que, frequentemente, são simbólicos ou subfinanciados. Para torná-los verdadeiramente eficazes será necessário garantir a atribuição de verbas significativas do orçamento municipal destinado a esses projectos propostos e votados pelos cidadãos.
Implementar Assembleias de Cidadãos por Sorteio, inspiradas nos modelos de democracia deliberativa europeus, que envolvem cidadãos sorteados aleatoriamente para debater temas relevantes e propor recomendações.
Criar Conselhos Consultivos Locais com Mandato Cívico. Em vez de conselhos nomeados apenas por critérios políticos, seriam criados Conselhos de Bairro ou de Zona com representantes eleitos directamente pelos moradores e lugares reservados a associações locais, escolas, clubes, colectividades e IPSS. Esses representantes teriam mandatos limitados e rotativos.
Transformar as escolas e espaços culturais em núcleos de cidadania activa, criando oficinas de cidadania em bibliotecas e centros culturais, onde se pudesse dar formação em literacia cívica (especialmente em zonas com baixa participação eleitoral, através de parcerias com universidades, ONGs ou associações culturais).
Desburocratizar e fortalecer a capacidade dos cidadãos para apresentar propostas concretas através de uma plataforma de petições locais online, integrada nos sites das autarquias, com contagem visível de apoios e um limite de assinaturas acessível, por exemplo, 1% da população residente para obrigar a discussão em assembleia municipal.
Criar mecanismos de controlo público sobre obras, gastos e contratos, através de comissões de acompanhamento compostas por cidadãos voluntários e entidades independentes.
Com todas estas medidas em execução, será expectável uma diminuição da abstenção e do desinteresse pela política, uma promoção mais efectiva da transparência na gestão pública e um estímulo inequívoco ao envolvimento cívico dos jovens, acompanhado de uma participação mais abrangente dos cidadãos nos assuntos públicos. Em consequência, fortalecer-se-ia o tecido social e o sentido de pertença à comunidade e ao território. Com efeito, a verdadeira transformação democrática tem início quando os cidadãos deixam de ser meros espectadores para se tornarem co-autores da vida política das suas comunidades. As autarquias, pelo seu carácter de proximidade, encontram-se numa posição privilegiada para liderar este processo de renovação democrática. Se não assumirem esse papel, esta democracia enferma poderá, a breve trecho, extinguir-se em definitivo.
Prognóstico: O povo está-se nas tintas (incluindo os próprios
políticos, que dele fazem parte) e assim continuará, de braços cruzados,
aguardando, inconscientemente, a derrocada do circo.