Lembro-me bem do som, agudo, mineral, do lápis de pedra a riscar a ardósia. Havia ali qualquer coisa de mágico, como se cada traço obedecesse a um sortilégio. A pedra era pequena, um rectângulo negro limitado por uma moldura de madeira de pinho encardida pelo tempo e pelas mãos infantis, mas dentro dela cabia o mundo inteiro.
A professora caminhava entre as carteiras com a solenidade de quem carrega segredos. Detinha-se aqui e ali, corrigia um traço, soprava uma sílaba, desenhava uma letra com mão firme corrigindo algo indecifrável. Às vezes, bastava um olhar, não de censura, mas de encorajamento para que a ardósia se povoasse de novos signos. Era um espaço de magia silenciosa, onde o tempo parecia suspenso, e cada palavra desenhada valia por mil ditas.
O lápis de pedra deixava um rasto esbranquiçado, assim se lia a tonalidade cinza sobre o fundo negro, que ia ganhando corpo à medida que o pensamento se alinhava com a mão. O artista, concentrado, escrevia não apenas o que aprendera, mas também aquilo que, sem saber, começava a intuir: que há uma ligação secreta entre o gesto e o espírito, entre o traço e a memória.
E depois vinha o apagamento. A esponja húmida, ligeiramente fria ao toque, passava sobre a superfície escurecida e, num segundo, tudo desaparecia. As palavras que haviam sido erros e vitórias, os rabiscos tímidos e as construções orgulhosas, tudo voltava ao negro inicial. Mas não era uma perda, era um recomeço. Como quem lava o rosto para um novo dia, a ardósia preparava-se para outra lição, outra tentativa, outro milagre. Mesmo quando rachava não deixava de ter uso, sobretudo se a moldura ainda lhe garantia a integridade. Afligia, mas ainda servia.
Hoje, quando encaro os ecrãs brilhantes, dou por mim a suspirar por aquela simplicidade antiga. A ardósia ensinava-nos mais do que letras, mostrava-nos que tudo pode ser reescrito, que o erro não é o fim, mas parte do caminho; e que o saber, como a vida, se faz e desfaz numa dança constante de memória e esquecimento.
Será que deixámos mesmo de escrever na ardósia, ou só mudámos de superfície? Gostava de acreditar que sim, mas temo que a matéria tenha modificado o espírito. Já o fez no passado, quando à mão afeiçoámos os primeiros instrumentos pré-históricos; quando o domínio do fogo alterou a compreensão do Mundo, ou quando o computador alterou a velocidade de escrever ou a IA suplantou a capacidade de arquivar, selecionar e relacionar conhecimentos.
Será que a mão, extensão que materializa o pensamento, ainda procura o sentido no meio do caos, como fazia naqueles tempos primordiais?!
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Felizmente, ainda se vendem. |
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