Há
na presença de um cagalhão no meio de uma multidão uma irrupção ontológica que
poucos ousam considerar com a devida reverência. Os mais superficiais vêem
apenas excremento; os mais atentos pressentem um vestígio do Absoluto, um rasto
de matéria que, tendo sido corpo, ousa permanecer quando o corpo já partiu.
O cagalhão, desprezado, escarnecido, impõe-se, todavia, como um sinal. Ele não é apenas o que resta da digestão, mas o que resta do Ser quando o Ser já não se pode justificar senão pela sua consequência mais inadiável, a expulsão. Ali, no chão de calçada onde pisam os distraídos e os apressados, jaz um manifesto contra a transcendência. A sua existência grita "Fui parte de alguém. Fui quente. Fui necessário. Agora sou repulsa e espanto."
Na multidão, esse humilde dejecto interrompe o fluxo do real; faz-se intervalo. Onde antes havia apenas o ruído indistinto de passos, murmúrios e afazeres, instala-se o silêncio horrorizado, o desvio súbito, o levantar da saia, o puxar da criança. O cagalhão obriga à consciência do caminho, como se dissesse “Atenção, passais por mim como passais pela vida, de olhar para cima, sem ver o que importa.”
Há quem diga que o cagalhão é democrático porque nivela o banqueiro e o mendigo, o académico e o carteirista. Nenhum deles o evita sem alterar o passo. Nenhum ousa negá-lo sem se desmentir a si mesmo. Se há algo que nos torna humanos, mais do que a razão, mais do que a linguagem, é o cagalhão e o constrangimento que provoca perante a merda.
Por vezes, o cagalhão no meio da multidão não é apenas literal. É símbolo, é um intruso, um excluído, que não devia estar ali mas insiste em estar. É o filósofo entre contabilistas, o poeta num congresso de engenheiros, o louco na assembleia da razão. A sua função é desestabilizar, incomodar, recordar que a realidade não é higiénica, nem linear, nem confortável. É, antes, fecal e fecunda.
E se, porventura, o cagalhão for pisado, ai! Então opera-se a catarse. A multidão, unida na repulsa, partilha o rito da tragédia, o infortúnio de um revela a fragilidade de todos. E, por instantes, somos comunidade. Não de ideias, não de afectos, mas de nojo. Uma comunhão visceral.
Assim,
o cagalhão no meio da multidão não deve ser removido com pressa, mas
contemplado como metáfora. Ele é a matéria caída que se ergue em sentido. O que
foi deixado para trás, mas nos confronta com o que somos. O que sai de nós, mas
nos devolve a nós.
Em última análise, quem nunca reflectiu sobre um cagalhão talvez não esteja verdadeiramente apto a compreender a condição humana.
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