recordações da Câmara Escura

Meia dúzia de passes

Tínhamos a sede do Centro de Estudos Subterrâneos (então, chamava-se GIAE – Grupo de Investigação Arqueológica e Espeleológica, inspirado pelo CIES de Coimbra, no distante ano de 1977), a funcionar no laboratório de processamento fotográfico do Estúdio CS. Ocupávamos a sala maior, de entrada. No interior, em dois compartimentos distintos, funcionavam os laboratórios de P&B e cor. Não pagávamos qualquer renda, pois contávamos com este desinteressado apoio do Mário Santos e do Bernardino, sócios, e fotógrafos dessa casa comercial estabelecida em pleno centro da cidade de Lagos.
Por vezes, como deferência para com tais facilidades concedidas (não só as instalações, como as muitas boleias para as grutas), eu ficava no laboratório a imprimir e revelar os passes. Noutras, tendo esse serviço já feito, ficava a esmaltar enquanto o Mário almoçava, em alturas em que o Bernardino andava pelos casamentos ou outras reportagens. Afinal, eu apenas seguia, e repetia, os passos do Carlos, o Presidente do grupo de espeleologia que, anos antes, assim fizera também. Agora, impossibilitado pelos estudos de medicina, em Lisboa.
É Verão de 79. Na obscuridade fresca do laboratório, à pálida luz avermelhada, de segurança, com os dedos mergulhados no líquido viscoso, faço dançar os rostos “espreitantes” dos quadradinhos de papel. E a mente vagueia por aí, à deriva, errante, como o percurso da morena de olhos brilhantes que retiro com cuidado do revelador e mergulho na tina de água que serve de banho de paragem. Um Óóóiiiiii... interrogativo, proveniente da entrada, desperta-me daquela catarse hipnotizante. É o Mário que vem da loja e vai para casa, almoçar: - Lianito, atão, tá tudo bem? Introduz-se, afastando o reposteiro negro e o pano rubro escurecido pela (suj)idade.
-Tá! Respondo. - Quer dizer que daqui a uma horinha tá tudo na esmaltadeira? Inquire ele.
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São estas recordações de pedaços de tempo perdidos (ou encontrados) no negrume do laboratório, e outras, como quando mirava atentamente e aprendia como jogam as cabeças de luz com o fundo e, entre elas, como posicionar os difusores e sobretudo, aquela insistência, aquela ordem repetida vezes sem conta: - Endireite as costas! - Olhe para aqui! – Aqui... para a minha mão! (a mão esquerda, fechada e curvada, fazendo um bico com os dedos, que ele colocava sobre a Linhoff ). Então, o Márinho empurrava o disparador, e o clarão cegava-me, momentaneamente.
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Nesses tempos racionalizava pouco do que via e aprendia, era a idade do desprendimento, da irresponsabilidade. Aquela idade em que temos a certeza de que as coisas hão-de vir ter connosco e não são necessários esforços ou preocupações acessórias. O que tivesse que acontecer aconteceria, mais tarde ou mais cedo.
De vez em quando pegava numa máquina, a Pentax Spotmatic ou a Rollei de formato 120, enfiava-lhe um rolo e ia passear pela cidade, à procura não sei de quê. Invariavelmente, seguia o caminho junto ao rio, próximo dos barcos, e disparava.
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A luz verde era um bluff, nunca consegui ver mais do que uma ténue amálgama leitosa e viscosa na superfície do rolo acabado de puxar do interior da tina vertical, qual serpente silenciosa a sair do buraco: - Tás a ver? Ainda não está bom. – Pois! Respondia eu, sem ver ponta de corno do filme que ele segurava nas mãos, a uns 20 cm da suposta “luz” verde.
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o Durst 7700 era um ampliador magnífico. Sentava-me no banco de tasca (daqueles de madeira, com um buraco ao centro para enfiar o dedo) e puxava a cabeça do ampliador agarrando nos dois punhos laterais, parecia um periscópio de um submarino. E como eu adorava aquela caixa de filtros, cheia de botões de afinação. Claro que nesses momentos de imaginação adolescente olhava de soslaio para o fundo da sala, não fosse abrir-se alguma tampa dos tanques de banho-maria da bancada de revelação cores e sair de lá um ser marinho ou, até, extraterrestre. Sim, porque às vezes o submarino transformava-se em nave espacial. A obscuridade é reveladora!
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-Não estão prontas? - Então disse-me que estavam hoje à tarde! Esgrimia a mulher ao Márinho, escudado no balcão, dando voltas à manivela da registadora, fingindo-se ocupado: - Amanhã é que estão! Tivemos um problema com a electricidade. Faltou a luz no laboratório… foi problema na central eléctrica. Eu, passeava os olhos pelo material fotográfico da montra, como se não fosse nada comigo.
Falha eléctrica, uma merda! Esquecera-me das fotos da senhora dentro da esmaltadeira, porque me entretivera a enrolar umas escadas Pierre-Alain (tipo daquelas do circo). Afinal era ali a sede dos estudos subterrâneos. Quando, finalmente, me cheirou a coisa ruim, rodei a manivela do tambor espelhado mas já não fui a tempo para acudir aos “torrados” 6 passes.
F. Castelo

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