Droga de Vida

Quando eu era pequeno, o Joe quis oferecer rebuçados holandeses, de aspecto suspeito, ao Paulinho. A vizinha Maria vendo aquilo, gritou, do quintal para a rua, que um estrangeiro estava a dar "rabeçades endrogados" aos moços pequenos. O Joe, intimidado pela gritaria daquele rosto rechonchudo e vermelhaço de irritação, esgueirou-se com o rebuçado preto na mão e, no rosto, um sorriso idiota, de "espreita" apanhado em flagrante. Quem diria! Aquele coiso redondo e parecido com um botão de macaco azul de serralheiro era um rebuçado com droga! O Joe virou à esquerda e esgueirou-se para o hotel, temeroso de alguma naifada de pai solícito, receio provocado pela miscelânea de preconceitos em que os nórdicos arrumam, na mesma prateleira mental: latinos; latino-americanos; ciganos; negros; índios e eteceteras de raça indefinida.
Nós, os moços, estávamos impressionados, demasiado excitados para continuarmos a brincar com carrinhos de lata à sombra da bagageira do velho Taunus. Quase fôramos vítimas de sequestro, ou suborno, ou outra treta qualquer, por parte de um estrangeiro. Raptados, imaginem! - raptados era uma boa tese, permitia-nos imaginar outras paragens, situações excitantes como nas aventuras d'Os Cinco. Imaginávamos, e a imaginação era boa. E a imaginação era a realidade. Ah...putos dum raio, penso hoje, à distância. E a vizinha Maria, agora à porta de casa, equilibrando os seus oitenta quilos de sabedoria na soleira de mármore rachado, dizia: - Vocês não aceitem coisas desta gente, ouviram?
Uns dias depois já conhecíamos o Joe que passava ali pela rua sempre a sorrir. Não lhe ligávamos muito, porque nos destruíra a emoção de um rapto, e os rebuçados, se não tinham droga, tinham outra caca qualquer que sabia a xarope para a tosse. Nem eram doces! E ainda por cima eram "emborrachados" como os supositórios. Que os metesse no c...!
Mais tarde, bastante mais tarde, em vésperas de ir para a tropa, andávamos todos "ganzados" com os charros de haxixe ou de óleo (porque a erva escasseava), e repudiávamos os poucos exemplos de consumo e consumidores de droga (das drogas duras), que conhecíamos.
Lembro-me que nos tempos da Secundária, um dia o S. levou uma seringa e um ampola de uma coisa qualquer e disse tratar-se de anfetaminas. Foi um gozo. A sacola foi jogada de mão em mão e acabou no chão, com todos a dançarem em cima. Éramos muito puritanos. Quer dizer, éramos mais do tipo conservador: ou fumas uns charros, ou tás quieto e não te metes em nada! Logo a seguir à tropa a malta voltou com as ideias mais aconchegadas e sentimos uma certa apreensão ao ver putos de doze e treze anos a injectarem, à noite, na rua.
As vidas têm uma corda que as puxam, invariavelmente, pelos caminhos antes percorridos por outras gerações, que é como quem diz: os dias sucedem-se às noites e estas, àqueles. E, de repente, damos conta que temos filhos, um clube de futebol ou recreativo, um computador, a tv cabo e que, na rua (e não só à noite), as coisas mudaram radicalmente. Onde ficaram aqueles rituais do xilom de água? Onde estão os jovens de olhos vivazes e alegria ampliada pela "pedra", os fumadores dos impressionantes "canhões" ou dos tradicionais "charros"?
As coisas mudaram completamente. As drogas de hoje são verdadeiramente drogas, capazes até, desconfio, de exterminarem algumas pragas de escaravelhos ou outros insectos pseudo-nocivos. Hoje, os apanhados pelo "pó" andam inchados como o peixe balão que está no Museu. O olhar já não é vivaço, os olhos parecem lanternas de arrumador de cinema, iluminados por lâmpadas de quatro volts e meio, das pequeninas. Da alegria, não sei.
Hoje, estas drogas matam rapidamente, no entanto os condenados ainda têm tempo para satisfazer algumas últimas vontades em liberdade (aparente, claro): subtrair uns auto-rádios; assaltar residências da vizinhança, tesourarias das escolas e Juntas de Freguesia; enfermarias dos postos médicos, etc. Só depois é que morrem! Normalmente sem grande estrilho mas, quando pensamos nas trajectórias das suas vidas, a idade com que desaparecem, as mutilações infligidas no seio da família, surgem então as interrogações.
E começamos, assim, a preocupar-nos com o rumo que as coisas levam. E tomamos uma atitude! Quer dizer, alguns tomam atitudes, outros tomam bicas e analisam o assunto e, outros ainda, tomam bicas, tomam notas, e escrevem prosas sobre o assunto. Então e as soluções? Pois é! Estas não vêm na última página de nenhum manual, nem tão pouco serão reveladas no final da aula. Alguém tem ideias? ESTÁ AÍ ALGUÉM? E agora desculpem lá, mas vou fazer o mesmo que vocês. Enfio os chinelos, reles imitação de ourela, comprados na loja dos 300 (mas custaram mil), afundo-me no cadeirão confortável, cruzo os braços e rendo homenagem ao Big Brother!

F.Castelo/2000

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