Teatralidades

O jovem congelou ao entrar em cena e, estático, mais não fez do que balbuciar a fala, de olhar arregalado e vítreo. Ali, imóvel, na esquerda baixa. A expressão descontrolada do rosto, e o movimento incerto do braço direito flectido, pairando vago, transformaram-no num ser grotesco, quase irreal, que nos arrancou, a nós, espectadores, profusas gargalhadas de puro gozo. E continuou, alternando o tom monocórdico discursivo com umas inflexões guturais incompreensíveis que nos inchavam o rosto de galhofa e soltavam lágrimas de gáudio.

Esperei-o à saída. Vinha cabisbaixo, abatido, miserável. Coloquei-me à sua frente exibindo, no alto do sobretudo e sob o meu admirável chapéu à Bogart, um sorriso de gratidão, e disparei com firmeza:
- Foste grande, pá. Magnífico!
Levantou a cabeça, e do rosto triste e pesaroso saiu, à meia voz, e em tom de confissão:
- Aquilo não era assim. Eu é que não consegui…
- Qual quê! Atalhei, não lhe deixando margem para protestos.
– Foste Sublime!
- O grande actor não é o que se mascara e encarna a personagem com um rigor inaudito e virtuoso. Grande, grande mesmo, é aquele que despe as máscaras e se mostra, revelando um outro eu que é seu, que é ele. E depois, todos os que me fazem rir merecem a minha admiração. Aliás, detesto, e sempre detestei pessoas que se levam demasiado a sério. Que se levam completa e permanentemente a sério. São anormais e inumanos. São bestas. Portanto, parabéns! Ainda que tenhas ficado decepcionado e desiludido, o que fizeste foi sublime.
Olhou-me com alguma curiosidade mas não respondeu. Continuei:
- Agora vais passar aquela porta, percorrer o átrio e descer as escadarias. Mas não o faças com esse semblante abatido, de derrota, de falhanço. Ergue a cabeça e abre um sorriso, o sorriso do atrevido que ousou ir além do habitual, do tradicional, do óbvio, do banal.
Deixei-o seguir à minha frente e, pela postura e andar decidido que foi adoptando e pelas manifestações de simpatia que outros espectadores lhe dispensaram, já na rua, percebi que levava o tal sorriso nos lábios.
A minha felicidade completou-se quando abotoei o sobretudo, enrolei o cachecol e enfrentei a noite fria na passeata de meio quilómetro que me conduziria a casa.
A vida é uma coisa tão simples. Porque me esqueço tantas vezes desse facto?

F. Castelo
2006-01-31

Sem comentários: