Sentimentos e Ilusões


A paixão é uma ilusão”, dizem alguns.

Como qualquer outro sentimento ou impressão também uma paixão pode revelar-se uma ilusão mas, da mesma forma que uma andorinha não faz a Primavera também uma paixão ilusória não tributa toda a Paixão. O problema não residirá na natureza arrebatadora e fugaz que caracteriza a maioria das paixões mas, mais, no facto de não a compreendermos e, por conseguinte, não aceitarmos o seu carácter singular. Singular, quanto à intensidade da sua essência. Singular, pelo facto desse fogo que arde tão visível nos deixar sensíveis apenas a determinados aspectos do alvo das nossas atenções mas, simultaneamente, ofuscados em relação a outros aspectos.

O problema reside na forma como lidamos com esse sentimento, como “negociamos” com a Paixão. A vida moderna, com o seu ritmo alucinante, mais os preconceitos e as convenções sociais, mais o crescente egoísmo de cada um de nós – somos cada vez mais exigentes com os outros e raramente atendemos ao reverso da medalha –, são factores que nos transformam em seres com pouca disponibilidade para aceitar as diferenças do outro, dificultando dessa forma a vivência da Paixão. Pelo menos, em relação à forma como ela tem integrado a cultura humana desde há mais de dois mil anos.

Assim, podemos identificar como causas que cada vez mais dificultam a ocorrência da paixão, a recusa de entrega incondicional ao outro e a incapacidade de aceitar aquilo que ele é - o conjunto das suas virtudes e defeitos. Insisto na importância deformadora desta exigência da perfeição. E como se isto não bastasse, concorre ainda o desconhecimento ou a incompreensão de que os sentimentos profundos não se estruturam sobre consensos feitos de cedências que buscam um qualquer compromisso ou denominador comum – coisa que não seria mais do que falsa harmonia, um autêntico pântano para a verdadeira Paixão.

Mas é a natureza intensa e arrebatadora desse sentimento que nos garante que ele não é uma ilusão. Bem pelo contrário, esse pulsar ardente, esse estado de vigília em que todos os sentidos estão despertos – com todos os nervos à flor da pele –, é uma das maiores afirmações de que estamos vivos, é um grito do ser concreto. Portanto, a Paixão encontra-se exactamente nos antípodas da ilusão. Ou não passariam de ilusões todas as maravilhosas criações da sensibilidade humana: a música, a poesia, e todas as artes, sempre movidas pela inquietude dos sentidos que a paixão provoca.

Hoje, procuramos moldar os outros à nossa imagem. Fazer com que se adaptem àquilo que somos. E que outra coisa se poderia esperar da cultura “fast-food”, do “pronto-a-vestir” e da “abertura fácil”, desta cultura de clichés repetidos ad aeternum?! Queremos tudo segundo um padrão por nós previamente definido (ou definido por outros e por nós inconscientemente integrado), tudo por encomenda. Mas as pessoas ainda não são fabricadas com ingredientes previamente definidos e seleccionados. O conjunto das nossas experiências pessoais, e o carácter único e diferenciador de cada um de nós, ainda garante uma razoável independência dos sentimentos em relação à cultura globalizante e igualizada que os mesmos humanos constroem. Valha-nos isso ou, então, sim, a Paixão seria uma simples quimera.

Nesta matéria, havendo problema para o qual se procure solução, não saberei eu indicá-la mas, em todo o caso, desconfio que passa por “rodar o objecto”, procurando os seus aspectos positivos, ainda que se trate de um objecto/acontecimento, aparentemente, exclusivamente negativo. Nada de mau do que me aconteceu na vida foi exclusivamente mau. Todos os acontecimentos negativos possuem um ou outro aspecto positivo, temos é que descobri-lo. E dar-lhe uso.

A ti, que dizes que a paixão é uma ilusão, desejo-te felicidades e faço votos de que venhas a conhecer, e viver, uma verdadeira paixão – ainda que raramente a Felicidade e a Paixão coexistam pacificamente.

4 comentários:

Anónimo disse...

Como diz a Yourcenar "chega-se virgem a todos os acontecimentos da vida", e como tal essa paixão só é ilusão, caso não se tranforme em apaixonarmo-nos, em amor, ou não se mantenha acesa tal como é.

Mas assim também é fácil de se julgar; se acaba, então não podia ser. Uma vez que há quase algo de inato na forma como procuramos insistentemente o um, o único, o tal que apague tudo o resto.

A vida não está no fim, mas no caminho até lá, acho eu ;)

éf disse...

Então se a paixão não se transformar em amor, é uma ilusão? Não acho. E nem mesmo o facto de a apaixão não se concretizar como tal (estar a caminho de algo), faz com que seja sentimento ilusório.

Concordo em absoluto com o: O homem que se realiza não é o que chega a um destino, mas sim o que caminha constantemente para ele.

vanus disse...

Eu também não concordo que seja uma ilusão. Eu acho que a paixão vale por si e não há melhor sentimento para nos sentirmos vivos, reais, em contacto com o mundo, como dizes.

O que queria dizer é que acho (mas posso estar enganada) que para a maioria das pessoas a paixão é só um início, e quando ela não se concretiza em algo mais, ou se mantém (o que é muito difícil), então, tende a dizer-se que ela é ilusão (aquele ah! afinal não era o tal, foi tudo uma ilusão). O adjectivo de ilusão vem precisamente à postriori, quando se acaba a paixão, e aparece como conforto ou justificação pessoal porque todos nós já sofremos paixões que não passaram disso mesmo, e que quase sempre quisemos que tivessem sido mais.

(eu é que às vezes tenho umas quebras de linha de pensamento, isto é se não deixar mesmo as frases a meio ;))

éf disse...

Assim compreendo, e concordo. Eis porque nunca poderia aceitar como ilusão uma coisa que consegue saltar do domínio dos sentimentos para os dos sentidos, que consegue passar de angústia a dor física: http://claustrofobias.blogspot.com/2004/05/lomografia-lobotomia.html


;)

E estou muito longe de considerar tratar-se cabalmente de uma experiência positiva. Poderá ser positiva, ou exactamente o contrário.