O limpa fossas


Para lá da importância do seu teor, confesso que a outra razão que me impeliu a escrever o presente texto respeita ao facto de, finalmente, ter surgido a oportunidade para utilizar este magnífico título.
Numa reportagem televisiva, recente, tomei conhecimento da história deste homem que se recusa a pagar a taxa de saneamento básico exigida pelos Serviços Municipais de uma autarquia da região de Lisboa (penso que se trata de Sintra). O munícipe argumenta que não possuindo ligação à rede de esgotos, mas sim uma fossa, não tem obrigação de pagar essa taxa. Nisto, dá-lhe razão a Inspecção Geral da Administração do Território (IGAT), após consulta realizada.
Da parte dos Serviços Municipalizados recolhe-se o depoimento de um técnico que enfatiza a entrada em serviço de uma Estação de Tratamento de Águas Residuais pelo que o pagamento dessa taxa é devido por todos os munícipes. Mas, o nosso bom homem não desiste da sua pretensão e para evitar a cobrança dessa taxa, junto à factura da água, até abriu um furo artesiano na sua propriedade. Por outro lado, contra argumenta que já paga o serviço do Limpa Fossas de cada vez que o requisita.
Aqui, abro um parêntesis pois interessa debruçarmo-nos sobre a reportagem em si. E uma vez mais se constata que não nos é fornecida toda a informação que seria necessária para a apreciação deste caso. Trata-se de uma peça informativa medíocre que denuncia o estado do jornalismo televisivo no nosso país. Aquilo que interessa às televisões é, unicamente, o "cabeçalho" da notícia e o respeito escrupuloso pela duração máxima da peça (segundo indicações de especialistas preocupados com o "arrefecimento" do interesse do telespectador). E assim, vivemos bombardeados por esse lixo informativo que só confirma que a Televisão constitui a maior "labreguice" cultural que transportámos para o novo milénio.
Esgotado o gozo de assistir à estóica revolta contra o Sistema, protagonizada por aquele munícipe transformado em herói à la minute, assaltaram-me as dúvidas, legítimas, de quem se sente defraudado pela suposta informação televisiva. Assim, seria interessante confirmar que a situação anterior consistia em proceder à remoção e transporte dos dejectos e sua libertação num rio ou no mar - vulgar em muitos municípios - e a nova situação consiste em remover e transportar os dejectos para uma estação de tratamento de águas residuais (ETAR) onde o produto é tratado e devolvido ao ambiente em condições inofensivas.
E aqui surge a questão: porque é que o munícipe se recusa a pagar pelo serviço de tratamento dos dejectos que produz? E o apresentador informativo (é a nova designação do antigo repórter) poderia ter, em seguida, questionado os Serviços Municipalizados noutra perspectiva: porque não resolvem o problema suprimindo essa taxa de saneamento aos munícipes nestas condições, mas aumentando o preço do serviço do Limpa Fossas? E talvez tivesse como resposta: é que muitas das pessoas que têm fossas nas suas habitações possuem fracos recursos económicos e assim estaríamos a agravar a sua condição económica e social! Também ficámos sem saber se o referido munícipe, ao recusar pagar a taxa de saneamento, procede à reciclagem total do lixo que produz ou se o deposita, furtivamente, no colector do vizinho.
E agora vamos à reflexão final. Porque é que não se critica o sistema contributivo da Previdência Social que integra o princípio da solidariedade, em que uns contribuem mais do que outros e, desta forma, se garante a prestação, inclusive, àqueles que nunca contribuíram e, por outro lado, tantos se acotovelam para criticar as incipientes medidas de protecção ambiental que, timidamente, têm vindo a surgir no nosso país? Então esta questão não merece um tratamento com base na solidariedade social em que, em primeiro lugar, todos devem contribuir com um pouco e, em segundo, aqueles que mais poluem, mais devem pagar?
Entretanto este teso munícipe brande, qual grotesco D. Quixote, uma lança embotada, ferrugenta e anacrónica que só colhe simpatias, temporárias, porque alimenta as “notícias a peso" e desperta a rebeldia contra o poder (qualquer poder), latente em cada um de nós. Claro que não estamos perante o acto de indisciplina social de um Agostinho da Silva que sempre recusou, e nunca possuiu, cartão de contribuinte. Mas isso era outra notícia, divertida q.b. para televisões e governantes. Até porque se tratava de um distinto Professor de Filosofia. Aqui, o caso é diferente e o nosso munícipe será, indubitavelmente, cilindrado pelo Sistema que ousa combater e engolido pelo seu aliado Limpa Fossas.
2001-05-13

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