Que balança utilizar para julgar as ofensas feitas aos outros? A balança da Psicologia facilmente me absolveria ou arquivaria o processo. Sem grandes exames bem podia remeter para a natureza competitiva e os instintos de sobrevivência. A balança da moral racional, a que estabelece os princípios éticos em que acredito, essa, leva-me à auto-condenação.
Se há um desígnio superior em tudo, e alguma espécie de equilíbrio justiceiro que rege a nossa vivência, aceito os sofrimentos entendendo-os como punições para as minhas faltas. Expio-as com a conformação do faltoso.
Se nada existe de transcendental, nem demiurgo algum que estabeleça uma justiça neste universo, então os meus padecimentos são consequência de deficiências genéticas e psicossomáticas a que se somam erros e excessos cometidos, e dos quais sou o grande culpado. Mereço tais sofrimentos, até porque sempre esteve ao meu alcance a livre escolha para evitar tais erros.
Podia ocupar cargos de destaque nos órgãos directivos das associações a que pertenço. Não o faço porque quem erra não deve desempenhar esse tipo de funções nem alcançar tais protagonismos. As pessoas públicas devem ser exemplos da moral e da virtude.
Não uma moral qualquer, como essas vinculadas às culturas religiosas que constituem heranças bizarras e distorcidas, como a judaico-cristã: diferenciadora; desigual; resignacionária; reaccionária; castradora, numa palavra, desumana. Mas sim uma moral racional sustentada numa ética evidente, clara e universal.
E da virtude equacionada e defendida pela maitê socrática. Por isso, olho com desprezo para esses vigaristas reincidentes que ocupam cargos públicos, quaisquer que sejam, de maior ou menor notoriedade. Por muito menos do que isso, eu não o faço. Irrita-me que outros o façam. Não devíamos permitir tal coisa.
Falhei. E os erros são nódoas que as qualidades, muitas ou grandes, jamais encobrirão pois são como buracos negros, minúsculos e invisíveis, que tudo devoram, precipitando no seu interior matéria e luz – venturas, alegrias e sorrisos que infalivelmente povoam a vida de qualquer um. Sou duro e exigente? Pois sou. Mas sou-o mais comigo do que com os outros.
Por um lado, prezo a vida e ainda me encanto com o que tem de belo mas, simultaneamente, vou desejando que ela corra rumo ao final e, quando acontecer e for conduzido diante de Anúbis, exibirei um sorriso de desdém e dir-lhe-ei: eu já me julguei e sentenciei, agora é a vez de te julgar a ti, ó deus de merda.
Na outra hipótese, a que perfilho, não estará lá nenhum juiz mas, unicamente, o oblívio – pois esse túnel de luz de que falam, mais não é que o extinguir da chama interior que nos anima.
Mas que treta é esta? Em que sarjeta sombria e malcheirosa mergulhei? Alto aí. Em vez de investir sobre territórios tão tenebrosos, será melhor contar-vos uma anedota.
A madre Teresa de Calcutá chega ao céu depois de mais um dia extenuante e pede a Deus o jantar. Recebendo uma sandes de pão de centeio, olhou para baixo e viu os que estavam no inferno a comer um opíparo banquete. No dia seguinte aconteceu a mesma coisa e a madre, intrigada, perguntou: - Meus Deus, porque é que nós só comemos pão de centeio e eles, no inferno, comem tão grande banquete? Responde-lhe o demiurgo: - Teresa, achas que vale a pena cozinhar para duas pessoas?
6 comentários:
o que acho é que uma pessoa é capaz de tudo, do melhor e do pior. Basta ter isso presente no que a respeita para melhor perceber que os outros não são diferentes. E de cada vez que evitamos o pior de nós dirigido ao outro, ou nos colocamos - por antecipação na pele dos outros (receptores) ou tememos (dos outros) a retaliação, somos bichos de matilha.
«E de cada vez que evitamos o pior de nós dirigido ao outro...somos bichos de matilha». Se tivesses dito "bichos do rebanho" teria concordado em absoluto com a tua apreciação. Ora, era belo se conseguíssemos superar os condicionalismos da moral entranhada (o mais pegajoso sucedâneo da cultura judaico-cristã) que corrói o interior do indivíduo que se atreve a "libertar" o ser natural que há em si, em vez do ser "artificial", contido, controlado e sintetizado em bicho do rebanho.
Acho que são sequelas disto, que Richard Dawkins denuncia: «A religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem religião teremos boas pessoas fazendo coisas boas e más pessoas fazendo coisas más. Mas é preciso a religião para que pessoas boas façam coisas más.»
E acrescento ainda: E uma coisa má é reprimir aquilo que verdadeiramente sentimos e desejamos manifestar (mas, lá está a funcionar a ideia de "pecado" e o pavor da retaliação).
o ter dito matilha e não rebanho deve ter sido falha de sentido crítico, abrangência, percepção da sociedade. a esta altura da manhã só consigo ver-me (pensar-me) entre os meus. :D
ser de rebanho pressupõe o seguidismo. Logo depende do pastor ou do carneiro/ovelha chefe, ou do cão, sabe-se lá, vigora ainda aí o melhor e o pior (nazismo, por ex.)
Ocorreu-me agora mesmo que isso de reprimir, pode passar pela forma como cada um aprende a construir a sua intimidade. Se o plano for apertado a intimidade do outro está a salvo, não se invade para não abrir frestas no nosso escudo.
Desculpa lá a fraca aderência ao conceito de pecado, culpa e tal, mas eu sou mesmo ateia de raiz (embora tenha tido uma educação no meu tempo normalíssima).
Tb eu sou ateu, mas uma coisa é o plano racional, outra coisa os reflexos condicionados pela educação e pela prática social.
Pois aí é que está o busílis (sendo certo, porém, que mesmo que tivesse consciência a tempo inteiro e tout court de todas, e em todas, as situações acabaria por fazer o que faz a maioria (o rebanho), para não levantar ondas, e porque ser insubmisso dá muito trabalho...e poucos amigos).
hehehehe
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