O Génesis segundo eu cá

A contrafacção do mundo

Embriagado, detido e interrogado no posto da GNR de Espiche, o homem lastima-se, tentando atenuar a penalização que o espera: - Pois, senhor guarda, isto começou tudo quando o meu avô, cansado da sua solidão no escuro, disse: - acendam a luz! E logo os tipos da EDP, ávidos por mais um contrato, ligaram a energia. Sim, o segredo de tudo é a energia. E…NER…GI…A.
E a partir daí se passou a diferenciar a parte iluminada da parte escura do planeta. A uma, o meu avô, chamou dia e à outra noite. E para contentar todos os bichos que iriam ser criados, fez rodar a terra para que o dia e a noite coubessem a toda a bicheza sem que estes tivessem de percorrer diariamente uns quatro ou mais fusos horários do planeta – o que implicaria deslocarem-se a uma velocidade enorme. Depois, cansado, Deus apagou a luz e foi dormir.


Ao segundo dia criou o firmamento, com restos da iluminação de Natal, que pendurou nos céus e, a partir daí, foi construindo tudo o mais. Mas, parando amiúde para descansar.

Já folgado, a meio do terceiro dia, o meu avô Deus criou o mar mas, ao reparar que a permanente humidade lhe estragava as alpercatas, depressa inventou a terra. E daí a transformá-la em coisa fértil, cheia de ervas e animalejos de molde a que a malta pudesse logo fumar uns charros e dar alface às iguanas, foi um clique de rato. Satisfeito, foi descansar.

O Sol, a lua e as estrelas mais perfeitas – que as feitas com os restos da iluminação de Natal não eram grande coisa –, fê-las então, ao quarto dia. E no dia seguinte povoou os oceanos com todo o tipo de animais que se viram à rasca, afogando-se, até aprenderem a respirar naquela substância estranha. Dentre os inúmeros cardumes de peixum não esqueceu a criação de sardinhas certificadas – com uma pequena etiqueta amarela na orelha - acautelando futuros dissabores com a ASAE portuguesa. Também criou muitas aves estranhas e exóticas, grandes e pequenas, para gáudio dos clubes de caçadores. E Deus viu que era bom o que fizera.


Ao sexto dia encheu a terra fértil com mamíferos, répteis, insectos, e outros insectos mais pequenos e seres microscópicos como a amiba, que lhe deram grande trabalheira porque já não via muito bem. Achando que lhe apetecia mais qualquer coisa – a criação do Ferrero Rocher não lhe é atribuída – lembrou-se de criar um ser à sua semelhança, quer dizer, mais ou menos parecido. Fez surgir o homem e deu-lhe vida, e todas as capacidades e sentidos. Porém, receoso de eventual sedição desta sua criação não lhe atribuiu muita inteligência e, mesmo assim, previdente, acabou por lhe arranjar uma recreação feita a partir de uma sua costela (sua, do homem, claro), a mulher. Neste dia tão preenchido, Deus, cansado, foi deitar-se fingindo dormir, posto que, como todos sabem, Deus não dorme.


No dia seguinte foi a vez de fabricar artefactos, armas, apetrechos diversos como o estojo de pesca, o papagaio de papel e o corpete. Seguiram-se carros de assalto, piercings, o míssil intercontinental e os descontos de fim de estação. Tudo inventou, de forma a tornar a sua criação mais interessante, divertida e… ocupada.


Ao oitavo dia (sim, é falso que Deus tenha criado tudo em 7 dias), Ele intuiu e gerou os jogos de azar e o arroz de cabidela. Coisa que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa logo aproveitou, os jogos de azar, não a cabidela por causa dos vegans que inicialmente só comiam o que colhiam do solo e, fartos de comer caca de pássaro, mesmo biológica, recorreram aos produtos hortícolas e à soja da Monsanto, e por aí se ficaram até hoje.


Ao nono dia, Deus foi finalmente descansar, merecidamente. Agora, à sombra de um enorme sobreiro. Não porque estivesse verdadeiramente cansado mas porque lhe fora exigido o registo das suas acções no SGD – Sistema de Gestão Documental. Ora, a partir daí passou a ser, apenas, um espectador.


O Éden, o pecado original, Cain e Abel, tudo por atacado

Nas suas deambulações e esquivas a um dos bichos rastejantes que insistia em vender-lhes maçãs normalizadas do Belmiro, o casal de humanos (homem e mulher, que nesta altura ainda não havia nojices e licenciosidades homossexuais), descobriu uma praia da costa Sul americana, virgem, sem vendedores ambulantes e pescadores andrajosos. Era o jardim do éden, ou seja, o primeiro paraíso fiscal. Por ele corriam abundantes rios de dinheiro provenientes dos melhores casinos do mundo, da contrafacção de produtos americanos, japoneses e europeus, do tráfico de droga e dos negócios do armamento e do petróleo. Só não entrava ali dinheiro do tráfico de órgãos humanos porque a única transacção feita resumira-se a uma costela e, mesmo assim, com autorização superior.


Interdito, estava o consumo de maçãs da árvore do Bem e do Mal. Deus não os queria maniqueístas. E bem os avisou que seriam electrocutados se comessem alguma daquelas maçãs. A cobra que as comesse que, assim como assim, já andava permanentemente ligada à terra. Satisfeito com as suas criações o Senhor aproveitou para tirar férias daquela semana e tal de trabalho intenso e deixou o homem encarregue do mundo...


Ó senhor guarda, desculpe lá mas como está a escrever muito devagar eu vou abreviar esta parte, que até é muito entediante. Pode ser?


A mulher, que andava aborrecida pois nunca mais chegava a época dos saldos no hiper-paradise, curiosa e meio descuidada, deixou que a cobra lhe enfiasse algures o primeiro bocado da maçã, e assim se deu o “pecado original”. Quer dizer, só se deu depois que o homem também comeu da maçã. E comeu. O resto já sabem, a partir daí a mulher passou a ter a menstruação e as dores de parto, até que alguém surripiou a seringa das epidurais a Deus. O homem foi condenado a trabalhar, assistir a jogos de futebol na televisão e beber cervejas, as duas últimas em simultâneo, ainda por cima. E mandou-os para um bairro de segunda, ali para os lados do Chinicato, criar a prole, nascida pecadora.


Ora desses filhos que eram irmãos legítimos entre si, Caim e Abel, acontece que o segundo deles, mais jovem e irrequieto, influenciado por uma caderneta de cromos da bola, fugiu e foi jogar para o Liverpool, enquanto o primeiro ficou a braços com a acusação de assassinato do mano desaparecido.


A grande invernia

Olhe, senhor guarda, abreviando, isto é mais ou menos igual ao episódio da novela das 11. O mais importante, mesmo, foi a chuvada, um autêntico dilúvio que não deixou secar a roupa durante meses a fio e que alagou o estacionamento da Câmara no piso menos dois até, a bem dizer, à entrada do menos um. Isso é que foi liquidez. E foi preciso construir uma barcaça grande, grande como o pavilhão e o estádio e as piscinas de Lagos, grande mesmo, ó u camandro ó u catano… eu já vou contar, acabe lá de escrever esta parte, senhor guarda.

...
A Banhada do Dilúvio, ou o primeiro banho que tomam os humanos lazeirentos

Alertado pelo boletim meteorológico da RTP-África, Noé construiu uma enorme barcaça, tipo uma gigantesca galera de remos, com que tencionava escapar à diluviana caqueirada de água que os rotos céus iam descarregar sobre o jovem planeta. Bem pensou, pois, em dotar a descomunal embarcação de milhentos remos, onde, cedo, foi acorrentando todo o tipo de animais em condições de despender o necessário esforço. Porém, teve de esperar uns 450 anos, pois a meteorologia desse tempo era semelhante à de hoje.

Com a barca encalhada no cocuruto de um monte ali para os lados do Alferce teve que procurar rentabilizar o empreendimento, o que conseguiu, transformando temporariamente o amontoado de tábuas, num SPA para animais. Os que não podiam pagar a diária, em metal sonante e amarelo, depressa enfileiravam no enorme exército de apanhadores de bagas vermelhas que o empreendedor transformava em líquido balsâmico por meio de umas caldeiras, tubagens e retortas oferecidas por uma nora que dizia ser tal engenho dispensador de força humana pois que, com ele, se conseguia, por meio da água sobre pressão, fazer andar o monstruoso paquete. Lérias, pensara o barqueiro, entusiasmado com os lucros da água fogosa que agora dispensava para todos os lares das Misericórdias do Mundo, por intermédio de um tal Malícias, excelente vendedor do produto.


Mas, avante, que a chuva já vai demorada, os rios transbordantes, as estradas submersas, e os picos dos montes mergulhando nas águas adivinham a proximidade da singradura da arca zoonáutica.

Durante 40 dias choveu como a merda. A malta já nem conseguia calçar uma peúga seca. Ao fim desses dias, soprando uma leve aragem de Sueste, a coisa amainou e o Sol apareceu. E Noé lançou um papagaio, o qual voltou pouco depois dizendo: - Já baixou, Já baixou! E Noé, satisfeito, logo completou: - Já baixou a água, Jacob? Ao que o papagaio respondeu: - Já baixou! Já baixou a cueca. A gaja do 7º esquerdo, podre de boa, já baixou a cueca. Cuaccc…!

Mas a água só começou a baixar uns cinco meses depois, desaparecendo, não se sabe para onde, coisa que desafia as Leis da Ciência. Há quem diga que um tal Sousa de Cintra a armazenou toda, o que explicaria os mais de 5 mil anos que tem passado a vendê-la, engarrafada.

Escorrida para a beira do mundo, que nessa altura era achatado como uma moeda, ou surripiada pelo tal Sousa, o facto é que a água desapareceu – nalguns sítios até demais, veja-se o Saara -, e a barcaça encalhou num tal monte Arafat – que recentes estudos de filologia revelam ter dado origem ao termo algarvio “marafados”, por corruptela de “monarafad” –, e os ocupantes do putrefacto caixote libertaram-se, finalmente, do horror pestilento que aquela coisa exalava. Saltaram para terra e andaram “bêbados” uns seis meses, que foi o tempo necessário para secar tudo. Convém esclarecer que o estado de embriaguez nada teve a ver com ingestão de produtos alcoólicos, referindo-se apenas ao cambalear periclitante e errático que podemos ver em todos os marujos que tocam terra depois de longas viagens.

Vocês nem imaginam o espectáculo da dança dos elefantes, indecisos onde colocar a pata, para não pisar, ou serem pisados por outros animais – não que houvesse outros animais capazes de magoar um elefante pondo-lhe um pé em cima, a menos que considerássemos algum brontossauro, mas isso não é possível porque nesta altura já Deus tinha destruído essa bicheza saúrica, por descuido, ao descarregar os intestinos durante um divino enteroclisma, episódio que desobstruiu a divinal tripa e soltou um conglomerado de indóis, ectóis, tióis e sulfeto de hidrogénio, tão comprimidos e coalhados num fenomenal excremento plásmico que, ao atingir o planeta, rebentou com os narizes dos répteis gigantes.
Os narizes, e o resto.

Instruído pelo Senhor, Noé, já com a bicharada à solta pelos vários continentes, montou uma tenda onde procedeu, religiosamente, a holocaustos a Ele dedicados, em todas as feiras (da segunda à sexta - que na primeira era para descansar e dar banho ao cão).

Assim aconteceu. E o demiurgo (nesta altura já havia pseudo-intelectuais em Lagos e portanto apareceu esta denominação que é mais chic) viu que era bom o que fizera.

- E foi assim que tudo começou, senhor guarda. Depois, o que aconteceu a seguir é que é outra história. Não sei se também a quer ouvir, ou se já me posso ir embora?!
- Sim, pode ir, mas terá de voltar daqui a cinco dias, porque eu quero saber o resto da história. E não adianta mentir-me, ouviu?!

(na semana seguinte)


Ao Senhor Guarda A. Humberto
do Posto da GNR de Espiche

Caro senhor guarda, na impossibilidade de me deslocar aí, a fim de concluir o depoimento iniciado na semana passada, devido a um desarranjo intestinal causado por marisco avariado, envio-lhe esta missiva com o relato dos acontecimentos.
Sem mais de momento, creia-me ao dispor.
Aceite os melhores cumprimentos deste seu criado.
José de Jesus Neto de Deus



A implosão divina de Sodoma – um teste ao arsenal nuclear do Senhor

A destruição de Sodoma coube a uma secção da Companhia de Comandos e Serviços de Demolição do 2º Regimento de Engenharia Militar dos Anjos (os do Céu, que ainda não existia o bairro lisboeta com esse nome) que chegaram ao teatro de operações ao cair da noite. Desde logo tiveram de evitar as prostitutas e os prostitutos que enfileiravam ao longo da estrada principal, de traseiro desnudado, exposto aos transeuntes como torrao de alicante na barraca da feira, a mão sobre a cabeça e o polegar estendido na vertical, o que, parece, é sinal erótico reconhecido aos sodomitas. Evitados esses vendedores de prazeres em corpos corruptos, o pequeno grupo de anjos militarizados (ou militares anjoados), encontra Lot*, que imediatamente os convida para sua casa. Claro que o amável anfitrião queria era alugar os quartos que tinha disponíveis, e que não rendiam desde o final do campeonato de futebol shemita, ia para mais de 3 meses.

Ora os habitantes de Sodoma, que tinham um faro apuradíssimo, cheirando rabinhos novos na cidade logo correram a exigir a Lot que os entregasse, a fim de matarem saudades duns cuzinhos apertadinhos - uma vez que já estavam cansados da lassidão da vizinhança. O Lot, que não queria ferir as susceptibilidades dos seus conterrâneos menos ainda as dos hóspedes (sabendo nós que não seriam as susceptibilidades destes que ficariam feridas caso ele os entregasse à populaça), presta-se a atirar as suas filhas virgens à fúria libidinosa da turba que bate forte, ameaçando quebrar a porta da pensão.

Os sodomitas, claro está, não vão na conversa de Lot. Sabem bem que em qualquer altura poderão atirar-se às filhas dele, enquanto os forasteiros, esses, representam uma oportunidade efémera.

A madrugada vai alta e a matula está prestes a rebentar com a casa, quando o alferanjo, comandante da tropa angelical, decide executar as ordens do meu avô, Deus. Ordena a Lot que parta, pois eles vão dar início ao fogo-de-artifício. E assim foi, Lot pisgou-se com as filhas. Inicialmente levava a família toda mas a parva da mulher voltou-se para trás, curiosa, e foi transformada em sal (quer dizer, foi completamente desidratada, que é mais científico) pela radiação das explosões que destruíram as duas cidades pecaminosas, Sodoma e Gomorra. Pensa-se que as forças do Céu usaram duas bombas equivalentes a 5 kilo toneladas de TNT, mas não é certo. As contas entre os arqueólogos e os físicos nucleares ainda não batem certo.


Felizes com a destruição e desaparecimento dos seus concidadãos, e de sua mãe - que as tratava asperamente -, as filhas de Lot organizaram uma rave e consumiram haxixe aos montes, dando também, em bolinhos, ao pobre pai, com que tiveram relações sexuais (pois as moças já eram entradotas e nunca mais viam a possibilidade de rebentar com o tímpano do amor, e elas queriam música, muita música). Claro que emprenharam logo e deram à luz uns tipos chamados moabitas e outros amitas. Por pouco não desbarrigavam amanitas (uma raça de cogumelos que inclui o célebre muscaria, ou mata-moscas, aquele com um chapéu ou cabeçorra vermelha, cheia de pintinhas brancas).

Tudo isto foi uma coisa horripilante, senhor guarda. Mas foi assim, sem tirar nem pôr.


Depois…houve um grande enredo, com umas excursões demoradas às construções na areia, ali ao pé de Vilamoura, com uma vida muito acamelada pelos desertos do mundo que nessa altura eram explorados pelos egípcios, até que apareceu um tipo da Marvel que lixou a moina a esses egípcios, um tal Moisés. O gajo era mesmo bom. E nem era filho de ninguém conhecido. O que deixa sempre a possibilidade de ser um filho de Deus (nesse caso ainda sou parente dele), ou um filho de uma pobre e anónima puta (aposto que os egípcios, a partir de certa altura, achavam que sim). Bom, mas isso é outra história. É o Exodus, e essa eu não tenho tempo para contar agora.

Então, saudinha.


*Foi este Lot que, casando em segundas núpcias com a menina Aria deu origem à célebre Lotaria, que todos conhecemos, mormente nas suas várias versões, a do Entrudo, da Páscoa, do Natal, etc. uma invenção do camandro.

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