O banho 29 é um misto de tradição folclórica e de ritual transmitido de pais para filhos com a crença que o banho daquela noite vale por 29 banhos. As suas origens são incertas. Quer provenientes de épocas muito antigas e ligadas aos ritos de fim do Verão, quer resultantes da herança árabe, o costume manteve-se.
As gentes dos campos já não vêm em grupos animados, com os seus burrinhos e carroças, mas os locais continuam a cumprir a tradição. Hoje, são grupos de jovens, mais foliões e menos rituais, que aproveitam essa noite para assar chouriço e contar histórias à volta de uma fogueira.
À meia-noite o momento do banho leva muitos ao mergulho nas águas fugazmente iluminadas pelos clarões dos fogos-de-artifício. Em Lagos, é na Solaria e na Praia da Batata que se junta maior número de entusiastas, reunidos pela proximidade da animação musical e do concurso de trajes de banho antigos. Mas é na Meia Praia que a tradição melhor se cumpre, com os entusiastas agrupados em torno das fogueiras alinhadas ao longo do areal. Ali se bebe, come, conta e canta antes e depois do tradicional mergulho no mar. E a tradição, genuína, é apenas isso.
Desconhece-se a existência
de qualquer fonte histórica ou texto historiográfico que revele cabalmente o
surgimento do banho 29. Existem, sim, descrições de escritores e jornalistas
que referem superficialmente esta tradição, inserindo-a num contexto
transversal, quer seja de crónica, romance ou, numa abordagem geograficamente
marcada, incidindo sobre a descrição da vida e costumes da região. São, regra
geral, descrições muito sintéticas e genéricas.
Sobre este costume conhecem-se
as lendas, com as suas variações locais (conf. Aljezur, Lagos, Fuzeta, etc.), que
não suplantam uma dimensão folclórica. Presumo que um estudo mais aprofundado sobre
esta tradição deverá partir de uma base etnográfica e associar as atenções da
antropologia social. Quanto à historiografia, estará sempre dependente da
existência de fontes escritas, sejam elas mais ou menos completas ou apenas
fragmentárias, pois sem estas não é possível produzir conhecimento histórico.
O texto seguinte foi
redigido tendo por base a obra “Festividades Cíclicas em Portugal” da autoria
de Ernesto Veiga de Oliveira, que será provavelmente o melhor texto de cunho
etnográfico que existe sobre o assunto:
Os
banhos santos apresentam, no Algarve, algumas diferenciações do resto do país
sendo a mais notória o facto de se celebrarem em duas datas distintas: a noite
de S. João, a 24 de Junho, e o dia 29 de Agosto (o S. João da Degola); em 24 de
Junho as gentes do campo e da beira-mar vão aos banhos da Serra, nomeadamente
às termas de Monchique, celebrando aí o banho santo com danças e música pela
noite fora. Ao contrário, as gentes da Serra e do interior vão, de preferência
tomá-los às praias; mas no dia 29 de Agosto. Porém, nas praias do litoral
algarvio, o banho santo toma-se antes do nascer do Sol, enquanto a água está
“benta”.
«Na Praia da Carrapateira (Aljezur), a
29 de Agosto, banham-se efectivamente pessoas e animais: logo pela manhã elas
vão chegando, umas a pé, outras montadas em burros, a a caminho do mar, pelas
veredas mal rasgadas nas ladeiras de fortes pendentes de xisto, para os aldos
da Pedralva. Nesse ano (1949) chegavam com merendas e alegres sob um sol já
impiedoso. Na praia, cada grupo tomou lugar junto à escarpa, alguns mesmo nas
grutas cavadas da rocha, e ali pousaram as merendas e se despiram. Eram
mulheres, raparigas, rapazes e poucos homens; destes alguns tinham preferido
pescar. O banho foi animadíssimo. O primeiro contacto com a água é difícil,
para quem está pouco habituado a banhar-se. Então trava-se a luta entre os mais
afoitos e os mais receosos. Uns atiram água aos outros, mas o mais frequente é
obrigarem os outros a mergulhar à força. Uma vez molhados sem remédio, já não
há receio e todos riem e brincam até não poderem mais. Quando saíram da água
vinham com os lábios roxos de frio. Mas depois correram, saltaram pela praia,
até aquecerem. Depois de brincarem bastante, mudaram as camisas e as cuecas
pela roupa seca e foram à merenda. Mas pela uma hora da tarde já estavam na
água outra vez, acrescidos dos que tinham chegado depois (relato de Fernando
Galhano).»
«… Os rebanhos de cabras descem à praia
e são levados aos grupos para os animais serem banhados. Alguns obrigam-nos a
subir a um rochedo, e depois a lançar-se à água. Os banhos dos animais –
cabras, chibos e ovelhas – têm lugar, neste dia, desde a praia da Zambujeira
(em frente a S. Teotónio, Odemira) até Portimão, por Aljezur, Bordeira,
Carrapateira, etc. (…)»
VEIGA
DE OLIVEIRA E. - Festividades Cíclicas em Portugal - Ed. D. Quixote 1988
Julgo que a abordagem
mais profícua para apresentar e divulgar este costume será a da ficção, procurando-se
a maior verosimilhança e a melhor aproximação à tradição oral, e alertando sempre,
para o carácter ficcional da explicação. Neste âmbito, o repertório literário
conta com várias peças produzidas. A título de exemplo apresento o conto/lenda
que redigi em 2012:
Ao
jeito de uma Lenda – lenda falsa neste caso –, imaginei uma pequena história
que poderia, com a plausibilidade admissível às lendas, explicar a tradição do
Banho 29. Reunida a estrutura e os elementos mais comuns a esse tipo literário,
que atribuem à presença árabe o fundo de muitas tradições portuguesas,
sobretudo do Sul do país, aqui fica esta reescrita que de minha autoria só
reconheço a construção sintáctica, atribuindo à memória colectiva e à tradição
popular a paternidade do conteúdo formado por elementos que os leitores facilmente
reconhecerão em muitas outras lendas de cunho semelhante.
A
moura de Lagos
Decorria o tempo em que Lagos era
governada por um alcaide mouro que vivia no castelo com uma filha e um
sobrinho. O alcaide tinha feito da filha a noiva do sobrinho Ahmed que
representava a única família de sangue que tinha nestas bandas do Al-garb, pois
a filha nem era moura, mas uma cristã cujos pais tinham morrido numa batalha, e
que o alcaide tinha adoptado. Entretanto o tempo passara e a pequena
transformara-se numa bela jovem, que muito adorava e animava o velho alcaide.
Em meados do séc. XIII, reinando em
Portugal D. Afonso III, o Algarve foi alvo da reconquista cristã e o castelo de
Lagos foi fortemente atacado, vendo-se os mouros obrigados a lutar
desesperadamente. No fervor da luta, a filha do alcaide saiu para a rua e, sem
demonstrar qualquer receio, vagueou por entre a confusão da turba beligerante.
Eis que um jovem guerreiro cristão repara na rapariga e acerca-se dela
interrogando-a sobre o que andava a fazer. A jovem responde-lhe que não
compreende a razão daquela peleja, da destruição e do ódio que lança homens
contra homens, lutando como se fossem feras selvagens. E revelou ao jovem
guerreiro que tinha sido por causa de uma guerra assim que tinha ficado órfã. O
guerreiro ordenou aos seus homens que retirassem dali a rapariga e que a
guardassem na sua tenda, onde ficaria a salvo de alguma flecha ou espadeirada
acidental.
A batalha, liderada por D. Paio Peres, é
coroada de êxito e os cristãos tomam a praça aos mouros. Ofertada a vitória ao
monarca português, este retribuiu concedendo aos valorosos guerreiros todo o
saque da batalha. Por via disso, a rapariga ficou a viver com o cavaleiro
cristão, por quem rapidamente se apaixonou, e os dois passaram a viver felizes
na Vila de Lagos.
Um dia em que a jovem moira passeava à
beira rio, na companhia de uma aia, surge-lhe um pedinte, suplicando, de mão
estendida, a providencial esmola. A jovem reconheceu imediatamente o sobrinho
do alcaide mouro e seu antigo noivo. Mas este, conhecendo o resultado do
desfecho da batalha, nunca lhe perdoara o facto de ela viver com um cavaleiro
cristão e, perante a evidente felicidade que a jovem demonstrava, Ahmed
lançou-lhe um feitiço que a aprisionou para sempre nas águas que banham Lagos;
feitiço do qual só se libertaria quando, numa noite de Verão, um jovem se
atrevesse a entrar nas águas e, encontrando-a, lhe desse um beijo. Mas esse
jovem não podia ser este com quem vivia, pelo que seria muito improvável que
alguma vez o feitiço se quebrasse.
Concluído o aziago anúncio,
imediatamente a jovem se desvaneceu numa espiral de fumo para nunca mais se
ver, para grande pavor da aia que correu rapidamente ao castelo, a contar o
sucedido. Fizeram-se buscas e esquadrinhou-se toda a região mas sem se
encontrar sinais da jovem ou do mendigo.
Daí para cá, e até aos dias de hoje,
muitos são os jovens que na noite de 29 de Agosto tentam encontrar a jovem
encantada para a resgatar ao seu feitiço. Porém, quer devido à agitação das
águas do mar, quer pela interferência das poderosas luzes artificiais ou dos
fogos-de-artifício que festejam a efeméride ou por não serem suficientemente
corajosos ou perspicazes para vislumbrar a imagem da jovem, ou por não ouvirem
o seu murmúrio suplicante, nenhum conseguiu, ainda, encontrar a linda moura e
desfazer o encantamento.
Francisco
Castelo
Texto actualizado em 2017.09.28
3 comentários:
Ai Jesus...!
Deixei passar em branco o dia 29!
Na minha zona o banho do 29 era às seis da manhã.
Um parente meu tinha fotografias extraórdinárias desse banho!
Nessa noite além de nos deitarmos tarde, acordavamos cedo, pois tinhamos de estar na praia quando começavam a arrumar o espaço que cada um destinava para armar a tenda com pão com chouriço e copinhos de aguardente, pois as cenas eram de morrer a rir.
As camisas de dormir de flanela eram os fatos de banho para as mulheres, porque eram mais tapadinhos, e para os homens ceroulas com atilhos nos tornezelos.
O pior era depois de tudo aquilo bem encharcado...! ahahah
Olhavam para nós de lado, para não ver as "sem vergonha" que iam para a praia quase núas.
Até breve
para o ano, os algarvios vao comemorar esta tradicao, aonde quer que estejam... e o Zé Troia vai lembrar-nos disso ! De acordo Zé ?
Quem é o Zé Troia?
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