Tempos houve em que o pobre era
encarado como potencial ladrão. Isto, claro, era uma apreensão que assaltava
aqueles que tinham “alguma coisinha de seu”, assim como todos os outros acima
de simples “remediados”. Por isso os tais pobres eram mantidos a uma distância
segura. Hoje, assiste-se ao inverso. Quem tem negócios e é bem-sucedido, ou
acaba espoliado pelo Estado, à força de tanto aperto fiscal, ou, sobrevivendo a
tal suplício, é olhado com desconfiança pela crescente turba de desempregados,
trabalhadores precários e demais pára-choques do desatino económico que a
voracidade da roleta financeira mundial tritura diariamente, mastigando pessoas,
empresas e nações.
Hoje, quem aparecer nas colunas
dos jornais identificado como sócio de uma qualquer sociedade de bens ou
serviços, até então anódina, logo passa a figurar no rol dos suspeitos de corrupção:
- como é que este tipo conseguiu isto? Tal é o libelo dessa multidão angustiada
que vê desaparecer diariamente os confortos e as pequenas mordomias que a vida
moderna trouxe; esses novos famintos, não tanto do pão para a boca (mas
também), e sim de outros “alimentos” que de há muito deixámos de considerar
como bens supérfluos. Como se pode passar sem o automóvel, a TV cabo, o
telemóvel, a Internet, ou sem assistir aos jogos de futebol no estádio, ou aos
três concertos anuais de rock? Quem consegue viver sem os dois cafezinhos do
dia, o almoço diário no café da esquina, o jantar semanal da tertúlia mais o
outro da família? Como sobreviver sem poder encher o carrinho do híper de quinze
em quinze dias? Quanto à prestação da casa, isso, então, já é assunto desarrumado.
Agora é vê-los por aí, coitados,
angustiados, desesperados, desiludidos, berrando em manifestações contra a
canalha que delapidou patrimónios, sorveu pecúlios, desbaratou cabedais e
fazendas públicas, comprou influências, vivendas, mercedes, votos, férias nos mares
do Sul, contas bancárias nas Caimão, e que comprou também as consciências dos que berram agora. E como
compraram tudo isso, pagaram tudo isso, alimentaram tudo isso com dinheiro
emprestado, era fácil imaginar que, um dia, não muito distante, a festa acabava
e a conta teria de ser paga.
Mas a verdade é que não
imaginámos tal coisa, ocupados na roda-viva do consumismo. E continuámos
a encarar o futuro com o nosso proverbial otimismo, gorduroso da inconsciência secular
do “deixa andar”. Até mesmo alguns mais avisados também se renderam ao ignominioso:
“quem vem atrás, que feche a porta”. Ora, a malta não esperava que a porta
fechasse tão repentinamente ou, dito de outra forma, que o mundo mudasse com
tanta rapidez. Pois é, mas o mundo muda com a dinâmica do mercado. E o mercado
é voraz, todos os mercados são vorazes, seja o de capitais ou o dos
hamburgers, o dos telemóveis, ou o das mines Sagres. Não consumimos tudo
isto, vorazmente, como autênticos Barões?
2 comentários:
Percebo, até porque a sinto na pele, a indignação contra a austeridade. O que me aborrece é que os que agora se manifestam de forma desabrida contra ela estavam caladinhos que nem ratos quando o país andava a ser arruinado por projectos megalómanos e pelos mais variados desvarios de carácter financeiro e económico. Entre os que, provavelmente, 2ªfeira vão chamar nomes ao Parvus Coelho - o gajo vem a uma terreola aqui ao lado - vão estar alguns desses que, se calhar, até contribuiram para o lindo estado a que chegámos.
Exactamente. Salvo as excepções daqueles que, já nesse tempo, alertavam para o descalabro de tal situação, a esmagadora maioria da população pactuou com os inconscientes, incompetentes e corruptos que nos governaram. Há quem lhes dê o benefício da ignorância mas isso não tem qualquer validade. Uma Democracia só o é se contar com a participação cívica e política de todos. Sem o exercício de uma cidadania activa não existe Democracia. Portanto, os portugueses são os únicos responsáveis pelos desmandos que fizeram e deixaram fazer. Agora corremos o risco de ter de começar a comer pão duro, e sem dentes.
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