O
incêndio Costa-Lacerda
Henrique Raposo
«Num país que levasse a sério a transparência e a
responsabilização, António Costa já estava politicamente destruído. Como se o
nepotismo do negócio TAP (amigo Lacerda) não fosse suficiente, assistimos nesta
semana a um desnorte inédito ao nível da estrutura do Estado. Agora percebe-se
que a campanha eleitoral desastrada de 2015 que conduziu à sua derrota não foi
um acaso: quando sai do círculo lisboeta onde é protegido por jornalistas,
comentadores e senadores, quando é testado a sério, Costa falha. É incompetente.
Mas a questão, como dizia há pouco, vai muito além desta semana. A tragédia de
Pedrógão é a consequência de falhas graves do passado de Costa e do regime.
O tal Siresp foi recontratado por Costa em 2005. O
problema aqui não é a mera incompetência ou falta de coragem para rasgar esta
PPP que tem o dedo da PT, do BES, do BPN — algo que Costa partilha com outros
ministros do PSD antes e depois de 2005. O problema, meus caros, é que Costa
recontratou o Siresp num negócio que envolveu o amigo Lacerda. A sua carreira
política devia ter morrido aqui. Não morreu. Costa é da esquerda lisboeta, ou
seja, tem um salvo-conduto que o coloca acima do bem e do mal. Sucede ainda que
os primeiros-ministros do PS têm o direito divino de trazer as suas amizades para
o perímetro do dinheiro público.
Mas continuemos, porque o incêndio Lacerda também
continua. Costa foi o ministro que desprezou o grande estudo feito neste século
para a reforma do combate aos fogos. Um dos grandes especialistas, José Miguel
Cardoso Pereira, escreveu nesse estudo o que agora é tragicamente evidente: não
se pode concentrar tudo a jusante, no combate; é preciso retirar a proteção
civil do combate ao fogo, é preciso criar um corpo de sapadores/engenheiros que
trabalhe de janeiro a dezembro; como se faz no Chile, Espanha, Austrália,
Califórnia, podemos fazer mais com menos dinheiro.
Como o próprio Ascenso Simões reconheceu, Costa
desprezou o estudo e optou pela política voluntarista do combate, adjudicando,
entre outras coisas, os helicópteros Kamov. Estes Kamovs, além de caríssimos,
são inúteis. Ou seja, a incompetência de Costa surge de novo, mas vem
acompanhada de algo ainda mais grave: nepotismo e eleitoralismo. Costa
contratou os Kamovs num negócio que voltou a envolver o amigo Lacerda, desprezou
o saber científico, cedeu ao mais fácil e ao mais telegénico: a foto ao lado
dos grandes meios, que, segundo os especialistas, não resolvem o problema. Em
resumo, tudo o que está errado no regime e no sistema de proteção civil
cruza-se com Costa e com esta tragédia — talvez a maior desde as cheias de
1967.
Não falo de 1967 por acaso. Costa e Marcelo
impuseram ao país uma atmosfera idêntica àquela que Salazar impôs em 1967: foi
a natureza, nada podia ser feito, não houve erros técnicos ou políticos, fazer
perguntas é antipatriótico, siga a banda. E muito jornalismo pactuou e pactua
com a narrativa. Aliás, tem sido abjeta a forma como muitos media têm
glorificado as lágrimas e abraços dos governantes, como se tivessem sido eles a
sofrer a tragédia, como se tivessem sido eles a perder filhos, pais e avós.
Está para lá do revoltante, é grotesco.»
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