“NÃO PODEMOS EVITAR A NECESSIDADE DE DEUS”
Angélica Lidell – Dramaturga, encenadora, actriz, escritora e poetisa
espanhola
«Sinto que se vive um tempo de puritanismo atroz. Onde tudo é ofensa. Não
se vê a beleza com naturalidade. Antes como uma ameaça. Os tempos mais
hipócritas são os mais puritanos. Vivemos num paradoxo. Por um lado, o sexo
está por todo o lado, por outro quando se aborda a sexualidade em palco a censura
é total. Quanto a Pasolini, ele está em mim desde sempre. É um companheiro de
viagem. Um amigo. Um amigo morto. Nem sequer é uma influência.»
(…)
«O ritual corresponde a uma necessidade interna de nos libertarmos de conflitos.
Em Itália, por exemplo, como julgo que aconteceu noutros sítios, os rituais
pagãos foram aproveitados pelas religiões. Há um livro de Ernesto de Martino,
chamado “La Terra del Rimorso” (1961), onde ele fala do efeito que a proibição
de praticar certos rituais e danças teve na população. Segundo ele, as pessoas
com problemas psiquiátricos e os internamentos em manicómios aumentaram
significativamente, o que estaria relacionado com o fim de uma relação
vertical, que não é horizontal na medida que essa é política. O fim da relação
vertical, com Deus, deixa-nos numa situação insustentável. É por isso que
acredito que é preciso devolver às pessoas a relação com o sagrado. Foi algo
que tentámos extirpar da condição humana, porque associámos essa relação à
Igreja, enquanto instituição. A verdade é que como seres humanos necessitamos
de algo que nos supere. Os rituais não são uma imposição. Existiram desde o
princípio do mundo, já estão inscritos nas pinturas rupestres. Safranski, por
exemplo, diz que criámos uma sociedade horizontal, que massacrou toda uma
relação vertical que também nos define. Há uma politização tão feroz que acaba
por empobrecer a expressão. O mundo da arte, da expressão artística, tem de
extirpar do ser humano tudo o que não nos corresponde.»
(…)
«As ideologias acabaram com o pensamento. Tornaram-se no oposto ao
pensamento. Daí que a democracia esteja em crise, e acabe por ser uma utopia.
Temos de regressar à democracia ateniense, e ao contrato social de Rousseau
para perceber de onde viemos e para onde vamos. Depois de tudo o que aconteceu
no século XX, só nos resta pensar que a democracia é uma velha utopia. O homem
é algo mais. O homem é algo mais do que a democracia, mais do que o homem
político»
In E – A Revista do Expresso, ed. 2343 de 23 Setembro de 2017
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