Contra todos os
iconoclasmas
Vítor
Serrão
A violência contra as obras de arte é sempre um acto
fascista, sejam quais forem as razões invocadas ou as bandeiras que se
desfraldem para o levar à prática.
13 de Junho de 2020, 0:00
Alegadamente ligadas a
manifestações de apoio ao esclavagismo, ao colonialismo, ao suprematismo branco
e a outras formas de ignominiosa opressão, tanto na Virgínia como em Antuérpia,
em Hamilton, em Lisboa, e em outras cidades do mundo, na sequência dos justos
protestos contra o bárbaro
assassinato do afro-americano George Floyd em
Minnesota, veio pôr a nu uma velha questão com que a humanidade se confronta
desde que existem registos históricos: a vandalização de monumentos que em
algum momento passaram a ser vistos como símbolos nefastos por parte de
determinadas dinâmicas políticas, sociais, religiosas, ou de defesa de um gosto
preestabelecido.
O tema é antigo e sempre perigosamente
recorrente, mostrando à saciedade quão acéfalo é o pendor dos homens para a
violência gratuita e quão frágeis para lhe resistir são as obras de arte e os
monumentos da História – sempre, nesse contexto, as primeiras vítimas a
tombar. O recente livro de Éric
Vuillard A Guerra dos Pobres,
centrado nas revoltas camponesas na Alemanha no tempo da Reforma protestante, e
na sua subsequente e violentíssima repressão, mostra bem como o ódio contra
tudo o que possa ser considerado diferente alimenta as ondas
de iconoclasma. Em nome da fé, em nome de Deus, em nome dos poderes
instituídos, em nome de direitos ditos inalienáveis, mataram-se povos inteiros
e destruíram-se patrimónios civilizacionais inestimáveis. Foi assim, mas parece
que esquecemos.
A História da Arte, a museologia e as
Ciências do Património têm justamente contribuído para fortalecer essa
consciência de pertença. Recorro às sábias palavras do discurso de José Tolentino de Mendonça no Dia de Camões e das Comunidades e cujo sentido é mais ou menos este: a
raiz da civilização é a comunidade, e o seu fermento é a cultura partilhada.
Como diz o poeta, “é na comunidade que a nossa história começa, quando do eu fomos
capazes de passar ao nós e de dar a este uma determinada
configuração histórica, espiritual e ética”. Com máximo propósito, estas
palavras ganham sentido face aos actos de violência contra obras de arte – os
monumentos públicos, as estátuas e os memoriais – que, nos últimos dias, se têm
multiplicado em várias cidades do nosso planeta, e também em Portugal, na
onda dos sentidos protestos contra a repressão xenófoba nos EUA.
Ora o repúdio mais que legítimo por tais
actos, bem como por outras ignomínias que se praticam contra a raça, a classe
social, a religião, a língua ou a cultura daqueles que são vistos como “os
outros”, destruindo os seus símbolos de identidade cultural e patrimonial,
não pode em nenhuma circunstância justificar respostas onde também o recurso à
iconoclastia faz parte da agenda de protesto Quando as coisas assim se
confundem, que capital de esperança sobra para a grande massa de mulheres e
homens conscientes e consequentes, que vêem no farol da Cultura o seu campo de
afirmação identitária ? O iconoclasma é sempre um acto inadmissível, e não se
resume naturalmente aos atentados do Daesh, ou dos talibans, contra museus,
monumentos e demais patrimónios da humanidade, pois se alarga às atrocidades
dos senhores do mundo nas guerras de cobiça contra populações inteiras para
pilhagem e controle dos seus recursos.
Tal como essas acções à margem dos mais
elementares princípios éticos, também a violência contra as obras de arte é
sempre um acto fascista, sejam quais forem as razões invocadas ou as bandeiras
que se desfraldem para o levar à prática. Chamar às obras de arte “degeneradas”
(como fazia Goebbels na tristemente célebre exposição de Munique em 1937) ou
“contaminadas” (como a historiografia de arte do Estado Novo chamava às artes
miscigenadas no contexto da colonização e do império) foi sempre, como se
recorda, linguagem dos totalitarismos e justificação para todos os actos
suprematistas contra a afirmação cultural “subdesenvolvida”.
Ora tal argumentação anti-patrimonial e
cunho suprematista não poderá em nenhuma circunstância, por acrescidas razões,
ser tomada como arma dos que justamente se revoltam em nome de princípios de
igualitarismo e justiça social... Como historiador de arte que sou, admito que
se retirem obras de arte, por razões estéticas ou simbólicas (e quantas o não
foram ao longo da História!), resguardadas em museus ou deslocalizadas da sua
função gratulatória primeva, mas nunca posso tolerar que essas mesmas peças e
monumentos se brutalizem, ou destruam! Na triste saga a que assistimos por
causa da vandalização da estátua do Padre António Vieira, no Largo da
Misericórdia, não existe fronteira que branqueie radicalismos, consoante a
tonalidade ideológica, sabendo-se que, à espreita, temos os extremistas de direita,
sempre ávidos de usar – pelas piores razões – situações como estas em seu
proveito...
Pergunto: não aprendemos nós todos com a
História? Parece que não sabemos, mas devíamos saber, que todas as obras de
arte (independentemente da sua maior ou menor qualidade estética) são sempre
trans-contextuais e, mais!, estão isentas de culpa pelos desmandos da cegueira
humana. Vamos retirar de exposição pública no Metropolitan Museum de Nova
Iorque o excepcional retrato do Cardeal Fernando Niño de Guevara, pintado por
El Greco (c. 1600), porque o retratado é uma figura infame, responsável por
inúmeras fogueiras inquisitoriais, coisa que aliás o próprio pintor bem sabia,
deixando na tela a impressão da sua antipatia pelo modelo? Ora as obras de arte
não se confundem nem esgotam nos temas que representam! Elas são
permanentemente trans-contemporâneas e assim desfilam diante
dos nossos olhares como um permanente e renovado desafio à percepção, à
sensibilidade, à inteligência e aos novos saberes.
No excelente discurso que proferiu na
cerimónia do Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades, Tolentino de
Mendonça lembrou uma parábola que atribuiu à antropóloga e activista social
Margaret Mead (1901-1978) para nos confrontar com os males maiores do nosso
tempo: a cobiça e o egoísmo, parceiros da incultura e, como tal, antíteses da
fraternidade. A parábola, creio, diz-nos diz tudo aquilo que o conceito de
Comunidade encerra: “Um estudante teria perguntado a Margaret Mead qual seria
para ela o primeiro sinal de civilização. E a expectativa geral é que nomeasse,
por exemplo, os primeiríssimos instrumentos de caça, as pedras de amolar ou os
ancestrais recipientes de barro. Mas a antropóloga surpreendeu a todos,
identificando como primeiro vestígio de civilização um fémur quebrado e
cicatrizado. No reino animal, um ser ferido está automaticamente condenado à
morte, pois fica fatalmente desprotegido face aos perigos e deixa de se poder
alimentar a si próprio.
Que um fémur humano se tenha quebrado e
restabelecido documenta a emergência de um momento completamente novo: quer
dizer que uma pessoa não foi deixada para trás, sozinha; que alguém a
acompanhou na sua fragilidade, dedicou-se a ela, oferecendo-lhe o cuidado
necessário e garantindo a sua segurança, até que recuperasse. A raiz da
civilização é, por isso, a comunidade. É na comunidade que a nossa
história começa.”
As obras de arte – todas elas – contribuem para esta configuração
histórica, cultural, espiritual e ética do mundo. Não só o mundo em que foram
produzidas e vivenciadas, mas também os mundos que se seguiram, e o mundo
actual, em que essas mesmas obras continuam a ser vistas, quanto mais não seja
como testemunho vivo de uma História comum.
Sim, as obras de arte, porque social e ideologicamente
comprometidas, dão sempre testemunho e suscitam debate, seja no espaço público,
no museu, no edifício religioso ou civil onde se exponham aos olhares de ontem,
de hoje e de amanhã. É uma experiência dialogal de afectos, capaz de subverter
o silêncio terrível que habita o coração dos homens e de impactar o imperioso
abraço solidário por que todos ansiamos. Neste diálogo estético e afectivo não
pode haver lugar para a vandalização e a destruição.
https://www.publico.pt/2020/06/13/opiniao/opiniao/iconoclasmas-1920437
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