Decorridos mais de cinquenta anos de vivência marítima — sobretudo nos meses estivais — nas graciosas areias da esplêndida Meia Praia, coube-me, por fim, a indesejada honra de experimentar a famosa picada de um peixe-aranha. Aquilo que, num primeiro instante, se me afigurou como o corte infligido por alguma concha mais aguçada, depressa se revelou, para mal dos meus pecados, a inconfundível punção de um Trachinus draco — criatura a que, num exercício de tradução livre e francamente irreverente, poderíamos chamar "Dragão Traquinas".
O apoio de praia e o diligente nadador-salvador prestaram pronta assistência, munindo-se de um recipiente com água quente, no qual mergulhei a patorra dorida — providência que, segundo os cânones da biologia popular, favorece a circulação e dilui os efeitos do veneno, cuja natureza, dizem os entendidos, é glicoproteica e vasoconstritora.
Uma hora volvida, e da minha parte nada restava da ocorrência senão a memória do episódio — ténue cicatriz da alma mais do que do corpo. Quanto ao pobre peixe, receio bem que não tenha tido igual sorte: se não sucumbiu à força do impacto, terá provavelmente perecido no decurso da tóxica troca de impressões. É que, ao longo da última dúzia de anos, venho acumulando consideráveis doses de peçonha víbora — consequência directa de ter sido repetidamente alvejado por uma dessas criaturas rastejantes e maliciosas que o destino se compraz em pôr-nos no caminho.
Assim sendo, picadas de peixe-aranha, peixe-pedra, serpentes-marinhas, medusas e demais espécimes de vocação urticante têm, sobre este vosso correspondente, o mesmo efeito que uma bofetada num rochedo: nulo. Continuo, pois, com uma saúde de ferro — ou, mais apropriadamente, de pedra — firme no canastro e incólume no ânimo.
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