~ Judicialização da politiquice ~
A política abespinha-se com a justiça quando esta invade a
sua suposta esfera de actuação, mas não hesita em instrumentalizá-la sempre que
isso serve os seus propósitos demagógicos.
O mito de que os tribunais são aplicadores passivos das leis
aprovadas pelos órgãos legislativos, que se limitam a resolver conflitos
privados sem impacto na vida pública, não passa de uma verdade arrumada no
arquivo da história do pensamento político. Nas sociedades actuais ninguém
contesta a centralidade da justiça no jogo democrático nem a emancipação do
poder judicial, que de simples função técnico-burocrática se transformou em
verdadeiro poder da política. (...) Os tribunais definem direitos, distribuem
bens e recursos, corrigem medidas e leis e chegam a ser chamados a fazer
escolhas complexas, quando os políticos, apesar de legitimados pelo voto,
transferem o custo de decisões controversas.
Este novo protagonismo da justiça, ainda não inteiramente
compreendido, gera atritos quando, por exemplo, aparecem providências cautelares
administrativas para travar políticas públicas, quando o TC invalida opções
políticas de contenção orçamental (como no “período da troika”) ou quando um
juiz ordena a libertação de pessoas confinadas em hotéis pelas autoridades de
saúde para combater pandemias.
Esta é, se quisermos, a judicialização da política, no seu
plano inevitável e legítimo, comum em todas as sociedades democráticas. Não é
um desafio à autoridade dos outros poderes nem à legitimidade do voto; é o
Estado de direito a funcionar na sua plenitude.
Coisa diferente é a judicialização da politiquice.
Saber se os tribunais são os locais apropriados para lamber
feridas de guerra, quando os políticos se acusam uns aos outros de pertencerem
à “extrema-esquerda ridícula e traidora” ou à “extrema-direita xenófoba e
racista”, ou quando qualificam os adversários como “escumalha”, “caixote do
lixo”, “rasca”, “palhaço” ou “manso”; saber se é à justiça que compete declarar
quem venceu esses ajustes de contas e validar insultos panfletários.
A sala de audiências do tribunal não pode servir para isso.
A política abespinha-se com a justiça quando esta invade a
sua suposta esfera de actuação, mas, contraditoriamente, não hesita em
instrumentalizá-la sempre que isso serve os seus propósitos demagógicos.
O poder judicial é um poder da política; não é um árbitro da
politiquice.
A violência verbal e a agressividade argumentativa fazem
parte do debate político desde sempre. O desejo de visibilidade do sound bite
momentâneo na imprensa e nas redes sociais motiva uma comunicação que
privilegia a forma em detrimento da substância.
Em 1858, num debate entre candidatos presidenciais nos
Estados Unidos, Abraham Lincoln qualificou a política de escravatura de Stephen
Douglas dizendo que era “tão rala como uma sopa homeopática feita na fervura da
sombra de um pombo que morreu de fome”. Não consta que o autor da tirada
irónica tivesse acabado no tribunal, prostrado à frente do juiz à espera do
puxão de orelhas, nem que a vítima tivesse precisado desse desagravo para
seguir em frente.
Há ofícios com ossos mais duros de roer que outros. Faz
tanto sentido um político hipersensível à ofensa ir fazer queixinhas ao
tribunal, como um futebolista exigir que não lhe toquem nas canelas. Levar as
politiquices partidárias para os tribunais desvaloriza a política – porque esta
não precisa da tutela referencial de uma moralidade superior – e desvaloriza a
justiça – porque esta dispensa ver a sua credibilidade metida em intrigas.
Em Outubro do ano passado, Marine Le Pen perdeu um processo
no Tribunal de Cassação de França contra a revista Charlie Hebdo, que tinha
publicado um cartaz de campanha inventado com a imagem de um monte de
excremento fecal fumegante, onde se lia “Le Pen, a candidata que é como tu”. O
tribunal disse que a publicação, mesmo agressiva, reflectia uma opinião sobre
as posições da candidata e constituía uma forma de exercício legal da liberdade
de expressão. É a vida. Há dores que não se curam nos tribunais.
• Manuel Soares
presidente da direcção da Associação Sindical dos Juízes
Portugueses
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