Lutas intestinais*


 

Lembro-me como se fosse hoje, ou ontem… ou talvez anteontem. Na verdade, se não fosse o cocktail de Prozac/Fosgluten nem me lembraria de nada.

Sei que era Agosto e estava calor. No Verão o mar era uma festa diária. Nós, os putos da Aldeia, ali perto do Hotel Lagos, saíamos de casa e ganhávamos asas nos pés voando rumo à Solaria. Corríamos pela avenida que ladeava o rio e mal avistávamos o Forte Ponta da Bandeira já adivinhávamos a praia e o mar imenso que irrompia pelos olhos e nos envolvia com o seu persistente azul salgado. No horizonte moviam-se as velas dos grandes navios de linha em batalha ruidosa e destrutiva.

Fugiam na frente os franceses que tentavam esgueirar-se do Mediterrâneo para o Atlântico para engrossar a armada do almirante De Conflans que iria invadir a Grã-Bretanha, desembarcando na Escócia. De Toulon vieram 15 navios em esquadra chefiada pelo almirante De La Clue, rapidamente detectada pelos ingleses baseados em Gibraltar, que lhes deram perseguição com a esquadra comandada pelo almirante Boscawen. E ali, diante dos nossos olhos, bombardeavam-se uns aos outros, demolindo madeirames, estilhaçando corpos, destruindo tudo numa carnificina sangrenta e barulhenta em que os gritos dos decepados se ouviam à distância. O mar tingia-se de manchas rubras e os ares de novelos de fumo pardacento dos canhões.

Não assistiram a este espetáculo cruel os tripulantes da corveta Mondego, designada para a missão arbitral de país neutral que éramos, por se recusarem a sair do porto dizendo que o navio não apresentava a mastreação em conformidade. Governava Portugal, nesse ano de 1759, o Conde de Oeiras que se irritou e mandou dar um porradão aos marinheiros desobedientes; e o almirante deu-lhes. Estiveram um ror de anos sem comer bacalhau.

Mais eis que, em certo momento da batalha, um dos marinheiros ingleses, de origem lusitana, John Lo, encontra o seu irmão gémeo. Haviam-se perdido e separado em crianças numa festa do Avante, quando ainda se realizava em Monsanto. Um deles foi levado por uma horda de hooligans do Manchester United que veio a Lisboa ganhar por 5 a 1 ao glorioso; o outro introduziu-se numa autocaravana de bretões do PCF, convidados pelo PCP, e foi parar à Normandia. Nunca mais se viram.

O reencontro, acidental, neste cenário de guerra, ocorreu quando o engajado na Royal Navy assestou uma pazada na cabeça do irmão franciú, Mr. De L’O, aspirante a náufrago, com o remo da chalupa que conduzira o grupo de ingleses a bordo do navio almirante francês ‘Océan’ para lhe atearem o fogo que o consumiria completamente. O gémeo inglês, reconhecendo o seu duplo que emergia do mar, saltou para as águas da Salema e amparou a cópia de si próprio em salvífica natação para terra.

Ainda perplexos com o inesperado encontro acolheram-se no forte de Almádena evocando a nacionalidade portuguesa e recusando regressar aos anteriores misteres bélicos. Recuperaram das impactantes emoções bebendo copos de abafadinho com um primo que encontraram servindo na guarnição da fortificação.

Quis o destino que esta história não terminasse serenamente, e, entre copos, alegrias e cantorias, um deles, acidentalmente, fez chegar lume à mecha de uma das peças que recentemente havia sido ali colocada para rearmar a fortificação reparada do malfadado sismo de 1755. E a peça fez fogo sobre o ‘Namur’, navio almirante da frota inglesa, acertando-lhe no paiol e provocando uma sucessão de explosões naquele navio e nos restantes de ambas as esquadras, por efeito dominó das múltiplas peças de artilharia disparando sob acção da intensa e dispersa metralha incandescente qual dilúvio de fogo que caía sobre o mar e os barcos.

A devastação foi terrível, estilhaçando todas as embarcações num raio de uma milha, fazendo desaparecer as duas armadas beligerantes e a cabeça do Zé Rodrigues atingido por uma bala de ferro na altura em que retirava pão do forno na aldeia da Pedralva. O forno ainda hoje exibe a marca do ferrote que o atingiu mortalmente.

Da terrível batalha naval sobraram uma vintena de ‘lusitos’ usados pelos franceses como doris na pesca de alto mar, quando escasseavam os víveres. E foi nesses barquinhos minúsculos da Mocidade Portuguesa que os sobreviventes chegaram a Lagos, remando com bocados de madeira queimada retirada dos navios destruídos, porque o vento amainara e reinava uma calmaria sobre aquele mar de senhoras.

Mais para Sul, o francês ‘Modeste’ encalhou nos cabos da criação de ostras fundeadas perto de Sagres, destinadas à exportação para a terra dos francos, e estes aproveitaram imediatamente para fazer uma tainada na praia da Ingrina. Numa enorme chapa retirada do navio abriram meia tonelada de ostras à Bulhão Pato. Os ingleses chegaram depois para os aprisionar, mas não comeram nada porque os franceses apenas lhes deixaram as cascas.

Na Praia do Barranco alguns ingleses fumavam uns canhões de cannabis (comprada em Ceuta), após capturarem o ‘Témeraire’ na Figueira e garantirem a inoperacionalidade do ‘Redoutable’ encalhado e bombardeado no Zavial. Bebiam Brandymel porque a incursão às aldeias mais próximas não foi proveitosa por os locais não perceberem que ‘béronlicuor’ significava Licor Beirão, o néctar que os sailors de Sua majestade procuravam em terras lusas, desprezando o famoso port wine, bebida de lords e squires. Grandes mocas.

(continua… dependendo do stock de Prozac)

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