A luso-americana Deana Barroqueiro, uma romancista que sabe
muito sobre história dos Descobrimentos, deu uma entrevista ao Diário de
Notícias que teve um título forte, mas perfeitamente sustentado pelas
sucessivas respostas: "Os bem-pensantes querem reduzir os Descobrimentos à
escravatura, fazendo tábua rasa de tudo o resto". Foi um sucesso de
leitura na edição online do jornal, o que confirma o enorme interesse que a
História de Portugal continua a suscitar. Aliás, é esse interesse que também
ajuda a explicar a carreira de sucesso da autora, que agora acaba de republicar
um livro sobre Bartolomeu Dias, o navegador que em 1488 cruzou o extremo-sul de
África, ao qual chamou Cabo das Tormentas, mas depois D. João II preferiu
batizar como Cabo da Boa Esperança.
Se o título da entrevista se referia à polémica que procura
tornar os Descobrimentos uma espécie de sinónimo de escravatura, parte das
reações vieram criar outra polémica, desmentindo mesmo que tenha havido
Descobrimentos, pois a maioria das terras estavam já habitadas. Ficaria assim o
conceito de Descobrimentos, argumentam alguns, aplicado a meia-dúzia de
arquipélagos, como o dos Açores ou o da Madeira, desabitados aquando da chegada
das primeiras caravelas.
Com a devida vénia, cito aqui uma das respostas de Deana
Barroqueiro como uma boa definição do que os Descobrimentos foram, de facto :
"Os Descobrimentos Portugueses - e Espanhóis - com todos os seus defeitos,
levaram o conhecimento do Ocidente para o Oriente e vice-versa, fazendo, além
disso, a primeira globalização da Época Moderna, que provocou uma espantosa
revolução, progresso e transformação do mundo, que já não voltou a ser o mesmo,
não só a nível das Ciências, mas também das Artes, das Letras, das técnicas e
das mentalidades. E, acima de tudo, na alimentação e na culinária dos povos
contactados, que se enriqueceram com a troca dos produtos (e as receitas dos
nossos pratos) que os portugueses levaram da Europa, mas também do Novo Mundo
(Brasil), para África e Oriente, e que trouxeram de lá para cá. Portugal estava
à frente de todas as nações europeias, no período dos Descobrimentos, com
saberes não só teóricos, mas de experiências feitos. Tínhamos os melhores
cientistas - geógrafos, astrónomos, cartógrafos, biólogos, físicos [médicos],
boticários [farmacêuticos], engenheiros e inventores, construtores de navios,
historiadores, letrados, entre outros. As suas obras, copiadas pelas nações
europeias mais avançadas, desfaziam mitos, superstições e ignorância,
consagrados durante toda a Idade Média, abrindo as mentalidades para uma nova
era de Conhecimento, apoiado em provas dadas pela experiência de muitos, pela
descoberta de mundos e povos desconhecidos, em zonas que se julgavam
inabitáveis, pela nova configuração dos continentes, desenhados milha a milha
pelos nossos navegadores nas suas cartas de marear, que os espiões estrangeiros
procuravam obter a todo o custo."
Entre os tais "defeitos" está a escravatura, sem
dúvida, sobretudo o tráfico negreiro transatlântico que os portugueses
iniciaram no século XV e os brasileiros, já independentes, praticaram até bem
dentro do século XIX. É um legado pesado, que merece reflexão, sendo certo que
a escravatura marcou a humanidade em todas as épocas e latitudes até ao
extraordinário triunfo do movimento abolicionista.
Descobrir foi um processo em dois sentidos. Lembro uma
conversa em Nagasáqui em que japoneses me recordaram que graças aos portugueses
descobriram o mundo. Um pouco a ideia que já vi defender um dos nossos mais
prestigiados historiadores, João Paulo Oliveira e Costa, quando diz que os
Descobrimentos fizeram os europeus descobrir o que havia longe e os que lá
viviam e aos que viviam longe descobrir os europeus, na realidade fazendo o
mundo autodescobrir-se, pois antes das caravelas portuguesas e espanholas não
havia sequer noção do que era.
Nisto de Descobrimentos, e para ajudar a perceber o
conceito, sublinho sempre que a historiografia portuguesa nunca reivindica a
descoberta da Austrália, por muito que seja provável (e até possam existir
provas) de visitas ou avistamentos da costa norte no século XVI, muito natural
para quem chegou a Timor. Não houve descoberta da Austrália pelos portugueses
pois a gigantesca ilha não entrou nessa época na pioneira globalização iniciada
com Vasco da Gama. Dizer que descobrimos a Austrália seria como dizer que os
vikings descobriram a América. Nunca se tratou apenas de chegar a um sítio -
fosse a Madeira ou o Japão -, mas sim de esse sítio, e as suas populações
havendo-as, passarem a estar em contacto com o resto do mundo.
Estude-se os Descobrimentos. Ou então leia-se um bom romance
por eles inspirado. Critique-se o que houver a criticar, mas não se negue o
óbvio: foram um momento de transformação do mundo, é impossível pensar o mundo
de hoje se não tivesse havido Descobrimentos. Parabéns Deana Barroqueiro pelos
belos livros que tem escrito, parabéns também pela entrevista informada e
frontal.
Leonídio Paulo Ferreira, 29 Julho 2023
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/29-jul-2023/descobrir-os-descobrimentos-16771387.html?fbclid=IwAR1Iv3WMI8qdUjuXZ9aTyNVtXyd66oVz9Z9wBdD8Qbl4eMF273I14rrwOKk
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