50 anos de Abril - Foguetórios, bandeirinhas e bifanas.

 


Aproximam-se os festejos do meio século da Revolução dos Cravos e, mais uma vez, vamos assistir a incensórios e parlatórios de circunstância, salpicados de exposições artísticas e momentos sonoros ditos culturais e, claro, a mesma ausência de meditação sobre a nossa caminhada colectiva nesta democracia. Sem que se faça um balanço dos 50 anos da qualidade deste Estado de Direito, sem crítica à prestação dos governos e dos políticos, sem auto-crítica à participação cívica, tampouco qualquer reflexão acerca da responsabilidade dos eleitores naquilo que hoje é Portugal. Nada, apenas a melopeia sedativa do costume.

Enlevado nesta sandice de melhorar a escrita, aproveito qualquer assunto para o fazer e disso dou conta a quantos queiram e consigam ler - actividade em acentuado declínio entre gente dita esclarecida. Sendo a vaidade que me impulsiona a publicar, acontece que a indolência, que em mim é mais forte do que o impulso exibicionista, me impede de escrever grande coisa, ou coisa de valor. Por isso escolhi dois textos alheios que me fazem reflectir acerca do assunto, e convosco, incautos leitores, o partilho. Um é recente, o outro produzido ao fechar a década da revolução; ambos obrigam a reflectir sobre esse Abril e os 50 que se lhe seguiram.

Garantidos os foguetórios e as bandeirinhas, deplorável será que a carestia de vida não permita atenuar a larica da festança com umas populares bifanas, deixando-nos apenas uns restos endurecidos de folares da Páscoa.
Entretanto, alimentemos o cérebro.
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“Portugal e o 25 de Abril, a revolução dos cravos 49 anos depois” (excerto)
José Pimentel Teixeira, 2023

«A revolução pacífica promovida pelo oficialato intermédio, exaurido por 13 anos de guerras em África (…) em reacção contra a perda de prerrogativas profissionais, provocada pela necessidade estatal de atrair milicianos para o exército em guerra – o que apoucaria os privilégios materiais e simbólicos dos que haviam cursado a prestigiada Academia Militar. (…) E se esse Movimento era minoritário – pois abarcaria apenas cerca de 200 oficiais dos 1600 dessa patente – veio a mostrar-se imparável diante do insustentável estado da “situação”, da efectiva degenerescência do poder político.

Apesar do que vem sendo afirmado sobre a marginalização internacional do país sob a governação de Marcello Caetano, Portugal não era um estado pária, continuando a colher vários apoios, militares, económicos e políticos internacionais, disponibilizados para a sua insistência na preservação de um anacrónico império colonial. Mas os custos eram já enormes, cerca de 10.000 mortos sofridos. E a população masculina quase monopolizada pelo esforço de guerra – para além do imenso fluxo migratório, causado pela pobreza nacional mas também pela fuga ao serviço militar. Com efeito, em 1974 25% dos homens em idade militar estavam recrutados ou inseridos em unidades policiais. A sua permilagem (30, 83) só era inferior à de Israel (40.09), Vietname do Norte (31.66) e Vietname do Sul (55.36), cinco vezes superior ao Reino Unido, três vezes superior aos Estados Unidos. E o orçamento militar era 7% do PNB, percentagem cativada maior do que a nos EUA, país então em pleno cume da Guerra Fria e da sua militar intervenção no Vietname.

Mas a placidez com que decorreu a “Revolução dos Cravos” - só perturbada pela reacção de agentes da polícia política DGS, que dispararam sobre a população que acorrera à sua sede -teve também outra razão. (…) [entre] verdadeiros camaradas, gente dos mesmos cursos da Academia Militar ou de anos aproximados, e/ou oficiais que haviam ombreado nos palcos das guerras africanas (…) face a um regime notoriamente exaurido, seria improvável que acontecesse um verdadeiro confronto armado.

Enfim, 49 anos depois continuamos a celebrar, com denodo, a efectivação da democracia. Como o lembrou em Lisboa Chico Buarque, durante a sua recepção do Prémio Camões (…) No seu discurso Buarque [enfatizou] o estar a receber o prémio perto de onde “os portugueses celebram a liberdade”, no tradicional desfile na Avenida da Liberdade. Mas, de facto isso não é exactamente verdade. Nem todos “desfilamos”, nem todos comemoramos da mesma forma, não nos associamos com todos os outros para este efeito.

O passado – neste caso o “25 de Abril” – é apropriado para sobre ele exercermos releituras, e nisso estabelecermos debates políticos, com competição e oposição entre grupos sociais. (…) E assim se encontram diferenças nas formas de comemoração, no “desfile” que cada um e cada grupo praticam nesta época do ano. Nessa diversidade notam-se não apenas rupturas ou cesuras na sociedade portuguesa – que não sendo clamorosas se podem ainda assim pensar como rugas ou escaras provenientes do processo democrático do último meio século.
(…)
De facto, poderemos dizer que as formas mais festivas da comemoração anual do nosso regime de democracia liberal são promovidas por forças menos atreitas a esta configuração - um feixe militante ligado à esquerda radical. Nele se congregam aqueles que ficaram mais ligados, ideológica e afectivamente, ao período de “transição” entre o Estado Novo e esta II República, aquele em que vigorou a esperança no “espectro do comunismo que assombra a Europa” (Marx, Karl, Engels, Friedrich, 1997, Manifesto Comunista. Lisboa: Edições Avante). O qual teve mais força durante o período de instalação da democracia, ainda sob alguma tutela militar – acima de tudo com a vigência do Conselho da Revolução, extinto em 1982 -, no qual se evidenciava a dúvida sobre o rumo do futuro: o da instauração democrática, como veio a acontecer; o regresso a formas de poder autoritário pretéritas, como uma minoria defendia; ou a emergência de uma alternativa revolucionária radical, muito em voga no mundo de então.

Mas é também certo que esta afirmação é por demais taxativa, pois muitos dos que anualmente cumprem o ritual de ombrearem nas celebrações de “Abril” com as forças mais avessas ao molde político liberal o fazem não por aversão a este sistema – do qual participam existencial, laboral, afectivamente. Pois estas celebrações conjuntas, uma fusão comemorativa, são a demonstração da ambiguidade manuseada no ritual, a afirmação de um pluralismo real, da possibilidade de articulação de perspectivas reafirmando identidades comuns que ultrapassam as diferentes adesões ideológicas (…)

Essas distinções, essa confluência anual de democratas com os apoiantes de ideologias ditatoriais e totalitárias de extracção marxista, não impedem que se considere a aceitação maioritária – ainda que não acrítica, como é próprio da democracia – do actual regime e de como isso é ritualmente confirmado nas formas pessoais, familiares, vicinais e mesmo institucionalmente conduzidas. De facto, é a cíclica demonstração da concordância, englobante, quanto ao primado da democracia, da aceitação de ser ela, como disse Churchill, “Indeed it has been said that democracy is the worst form of Government except for all those other forms that have been tried from time to time.…” No fundo, trata-se de festejar o apreço, quantas vezes contestatário, pela democracia “sempre frágil, sempre vulnerável, corruptível e muitas vezes corrupta”, algo que vem sendo constantemente reafirmado nas múltiplas eleições decorridas desde 1975.

Esta celebração global, este festivo ombrear com os adversários da própria democracia nisso elidindo o que nos aparta e encenando falsas proximidades, dever-se-á ao facto das expectativas surgidas em 1974 terem sido cumpridas. Os célebres 3Ds (descolonização, democratização, desenvolvimento) foram afirmadas. O final do Império não foi sequer seguido de uma ambição neocolonial, depurando-se o país de tais serôdias ambições. A democratização e a liberalização foram rapidamente conseguidas, de forma simultânea, num processo de obtenção de direitos individuais e colectivos que surgiram como urgente tarefa do novo regime ainda na sua fase transicional. E o desenvolvimento muito se potenciou com a inserção no espaço da União Europeia – então Comunidade Económica Europeia –, em particular durante o último quartel de XX. Algo que implicou um recentramento ideológico nacional, apartando-se de uma vetusta versão nacionalista e soberanista, mas também escapando-se às utopias radicais. Poder-se-á dizer que “desenvolvimento” e “democratização” estão incompletos, e decerto que o estão. Mas essa incompletude é sua condição e é nessa consciência que se fundará o amplo consenso social face ao legado de Abril.
(…)
Enfim, cada um entoa como quer as canções da sua vida.»

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“Os Filhos de Saturno”
António José Saraiva, 1979

«Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril. Na perspectiva de então havia dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles a descolonização e a liquidação do antigo regime.

Quanto à descolonização havia trunfos para a realizar em boa ordem e com a vantagem para ambas as partes: o Exército Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro Portugal e o Futuro do general Spínola, que tivera a aceitação nacional e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações.

As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada e honrosa. Todavia, o acordo não se realizou e retirada não houve mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir. Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas:

Uma foi que o PCP, infiltrado no Exército, não estava interessado num acordo nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato que fizesse cair esta parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram mostrar;

Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas. Era natural que os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tripas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu.

Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de «revolucionários». E nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização num momento em que era indispensável manter a coesão e o moral do Exército para que a retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis.
A operação militar mais difícil é a retirada; exige em grau elevadíssimo o moral da tropa. Neste caso a tropa foi atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos inconscientes ou fanáticos e em qualquer caso destituídos de sentimento nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar esta fuga vergonhosa, mas aos que desorganizaram conscientemente a cadeia de comando, aos que lançaram palavras de ordem que nas circunstâncias do momento eram puramente criminosas. Isto quanto à descolonização, que na realidade não houve.

O outro problema era o da liquidação do regime deposto. Os políticos aceitaram e aplaudiram a insurreição dos capitães, que vinha derrubar um governo que, segundo eles, era um pântano de corrupção e que se mantinha graças ao terror policial: impunha-se, portanto, fazer o seu julgamento, determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas justas, segundo um critério rigoroso e valores definidos. Quanto aos escândalos da corrupção, de que tanto se falava, o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas.

O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial. Em qualquer caso já hoje não é possível fazer a condenação dos escândalos do antigo regime, porque outras talvez piores os vieram desculpar. Quanto ao terror policial, estabeleceu-se uma confusão total. Durante longos meses esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS. Ela chegou, enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha desaparecido e estabelecia um número surpreendentemente longo de atenuantes, que se aplicavam praticamente a todos os casos. A maior parte dos julgados saiu em liberdade.

O público não chegou a saber, claramente, as responsabilidades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da suspeita de conluio com os acusados, antes e depois do 25 de Abril. Havia, também, um malefício imputado ao antigo regime, que era o dos crimes de guerra, cometidos nas operações militares do Ultramar. Sobre isto lançou-se um véu de esquecimento. As Forças Armadas Portuguesas foram alvo de suspeitas que ninguém quis esclarecer e que, por isso, se transformaram em pensamentos recalcados.

Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regime, como não se fez a descolonização. Uns homens substituíram outros, quando os homens não substituíram os mesmos; a um regime monopartidário substituiu-se um regímen pluripartidário. Mas não se estabeleceu uma fronteira entre o passado e o presente. Os nossos homens públicos contentaram-se com uma figura de retórica: «a longa noite fascista». Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral.

A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas, em Portugal, nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres da anterior; mais a vergonha da deserção. E com este começo tudo foi possível depois, como num exército em debandada: vieram as passagens administrativas, sob a capa de democratização do ensino; vieram «saneamentos» oportunistas e iníquos, a substituir o julgamento das responsabilidades; vieram os bandos militares, resultado da traição do comando, no campo das operações; vieram os contrabandistas e os falsificadores de moeda em lugares de confiança política ou administrativa; veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo; veio o controlo da Imprensa e da Radiotelevisão pelo Governo e pelos partidos, depois de se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio honesto de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco.

Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas rasgou-se um véu que encobria uma realidade insuportável. Para começar, escreveu-se na nossa História uma página ignominiosa de cobardia e irresponsabilidade, página que, se não for resgatada, anula, por si só todo o heroísmo e altura moral que possa ter havido noutros momentos da nossa História e que nos classifica como um bando de rufias indignos do nome de Nação. Está escrita e não pode ser arrancada do livro. É preciso lê-la com lágrimas de raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe. Começa por aí o nosso resgate.

Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente. Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de Nação independente.»


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