Calcorreando sítios de imagens na Internet (em busca
de navios e velas), encontrei esta Natureza Morta, pintura de meados dos anos
50, do húngaro Toth Gabor.
Fiquei escorado na imagem, recebendo o sopro dos tempos idos que dela emana. Não a vejo como uma natureza morta, mas como uma confidência, feita em silêncio, a quem se dispõe a escutar.
No centro, repousa uma garrafa de vinho tinto Ouro Velho, da casa Casalinho (acho eu que se disso se trata), daquelas que guardam no nome a promessa de calor e de história. Ao lado, um copo onde o líquido rubi reflecte a luz oblíqua, como se o próprio sol de fim de tarde se tivesse dissolvido no vinho.
À sua frente, o copo parece hesitar entre convidar ao gesto ou preservar intacto o instante. A luz, suave, derrama-se sobre os demais elementos. O cacho de uvas que repousa com a serenidade das coisas que já cumpriram o seu destino. As folhas, rendidas ao amarelecer do tempo, sugerem guardar o cheiro da terra molhada; há, nelas, uma beleza discreta, feita de finitude, como um suspiro telúrico que vem do campo.
Finalmente, o búzio, esse viajante do mar, que desarma qualquer lógica. Está ali, junto ao vinho e às uvas, como um convidado improvável. Não sei se o pintor o colocou ali por capricho ou para fazer alguma ligação com o campo e o vinho, mas sei que é impossível não o ver como uma âncora lançada ao mar da memória. É grande, com as suas espirais de calcário gasto. Basta imaginá-lo junto ao ouvido e logo se ouve um mar que não está na tela, o rumor distante das marés de infância, das tardes lentas à beira da água, dos verões que nunca mais acabavam.
Esta composição não é inocente. Entre o vinho, as uvas e o búzio, constrói-se um diálogo secreto entre a terra, o tempo e o mar, entrelaçados como fios de um mesmo tear. O Ouro Velho é o sabor que envelhece bem, mesmo quando já não temos quem o partilhe. As uvas são o gesto generoso da natureza, sempre cíclica, mesmo que nós não o sejamos. E o búzio é o eco persistente de tudo o que foi mas não se perdeu.
Olho a tela e sinto que nela há uma despedida, resignada, como quem sabe que a vida é feita de breves abundâncias e longas ausências. E, no entanto, há também a promessa de que, enquanto houver memória, o vinho terá sempre o seu rubi, as uvas o seu brilho, e o mar o seu murmúrio.
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