A SCML é a mais antiga. Qual delas?

 



Lisboa e Lagos partilham várias afinidades. Além da paisagem atlântica e do ocasional excesso de calçada, ambas foram duramente atingidas pelo terramoto de 1755, episódio de impacto demolidor tanto na arquitectura como na memória colectiva. Mas há outro elemento comum, mais discreto, mais simbólico e, talvez por isso, mais pernicioso: a figura de Frei Miguel Contreiras.

À superfície, trata-se de um frade bondoso do século XV, espanhol de nascimento e trinitário de ofício, que andava por Lisboa em companhia de um burro e de um anão, pedindo esmolas para os pobres. Terá sido prior do Convento da Trindade, falecido em 1505, e escolhido pela Providência para influenciar D. Leonor, a rainha consorte de D. João II, a fundar a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Nada mau para um simples mendicante. Foi inclusive promovido, postumamente, a primeiro provedor da instituição e representado em bandeiras, telas e histórias comoventes. A sua memória, dizem, sobreviveu ao terramoto que destruiu o convento e os seus alegados ossos.
 
Mas há um senão: não há qualquer registo histórico que comprove a existência de Frei Miguel até 1574. Ou seja, durante cerca de 70 anos após a sua suposta morte, não se encontra uma única referência documental, manuscrita, impressa, esculpida ou gravada, ao seu nome. O que, mesmo para um santo, é obra.
 
Como sublinham os historiadores Ivo Carneiro (Universidade do Porto) e Isabel Sá (Universidade do Minho), tudo indica que Frei Miguel foi uma criação oportunista de Frei Bernardo da Madre de Deus, frade trinitário e homem de visão. Em 1574, este solicitou à Misericórdia de Lisboa que voltasse a pintar a imagem do tal frei nas bandeiras e caixas de esmolas. O pedido foi inicialmente recusado, mas após algum teatro administrativo e o testemunho algo dúbio de quatro pessoas que "ouviram falar" do frade, a lenda ganhou força e estatuto.
 
E porquê tamanha criatividade? A Ordem da Santíssima Trindade enfrentava uma crise financeira severa. A sua principal actividade, o resgate de cativos cristãos, estava em declínio e passara a ser desempenhada também pelas Misericórdias, agora mais ricas e influentes. A Ordem precisava de relevância, prestígio e claro está, esmolas. E que melhor forma de o conseguir do que criar um patrono fundacional que ligasse a instituição à génese da caridade organizada em Portugal?
 
O golpe de mestre foi associar a figura do frei espanhol à fundação da Santa Casa, consolidando a narrativa durante a União Ibérica, num gesto de delicada vassalagem à dinastia filipina. A lenda vingou. Ainda hoje há quem acredite piamente no frade com burro, anão e poderes fundacionais, incluindo as câmaras municipais que baptizam avenidas com o seu nome e as instituições que exibem retratos devocionais com ar compungido.
 
Ora, se a verdade histórica viesse a prevalecer, e Frei Miguel regressasse ao imaginário de onde nunca devia ter saído, cairia por terra a suposta precedência fundacional da Misericórdia de Lisboa sobre a de Lagos. E isso convenhamos, teria consequências bem mais sérias do que uma simples correcção de rodapé: implicaria rever séculos de legitimidade simbólica, patrocínios, honras protocolares e, claro, financiamentos. Haverá coragem para tanto?
 
É pouco provável. A História oficial não muda facilmente, sobretudo quando confronta os poderes instituídos. Mas não deixa de ser irónico que a disputa entre Lisboa e Lagos sobre quem fundou primeiro a sua Misericórdia dependa, afinal, de um frade que nunca existiu.
 
O mais estranho disto tudo? É que, em pleno século XXI, ainda haja quem confunda devoção com documentação. E que, em vez de corrigirmos o erro, continuemos alegremente a passear pela avenida do fantasma, a caminho de Roma-Areeiro ou, em Lagos, pela rua do mesmo fantasma, oposta à Rua José Filipe Fialho, esse sim, um filantropo que efectivamente existiu.
 

Sobre as fontes:

Ivo Carneiro de Sousa, na obra “A Rainha D. Leonor (1458–1525): poder, misericórdia, religiosidade e espiritualidade no Portugal do Renascimento” (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian / FCT, 2002), reserva um tratamento crítico à tradição de Frei Miguel Contreiras: ele identifica essa figura como construção posterior, e não encontra menção documental no contexto real do século XV. A obra, de quase mil páginas, dedica um capítulo à “fundação da Misericórdia” onde discute precisamente a genealogia mítica associada a Frei Miguel. Passagem específica: Carneiro de Sousa argumenta, nas páginas 330 a 350, que as referências a Frei Miguel só se consolidam em fontes tardias, e que não há provas seguras em documentos coevos da corte de D. Leonor. (Citado em introduções de volumes dos Portugaliae Monumenta Misericordiarum.). Segundo o autor, a associação de Frei Miguel com a fundação da Misericórdia está mais relacionada a uma construção institucional/lendária do que com uma evidência histórica concreta.
 
Isabel Sá, em “As Misericórdias da fundação à União Dinástica”, in Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 1. (Lisboa: UMP / CEHR, 2002), examina criticamente as origens documentais das Misericórdias portuguesas e destaca que o mito de Frei Miguel Contreiras não aparece em fontes de fundação primárias, mas surge em versões posteriores. Noutra obra sua “Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no Império Português (1500–1800)”, a autora analisa explicitamente a figura de Frei Miguel e conclui que ele é usado como “símbolo fundacional” por parte das Misericórdias, mas que não existe suporte coerente em documentos do século XVI para essa identificação como fundador real. Ela enfatiza que a genealogia institucional (ordenamentos, compromissos, estatutos) foi construída posteriormente, o que aponta para um uso mítico ou mais simbólico da figura de Contreiras. Também em “Memória, mitos e historiografia das Misericórdias Portuguesas”, in Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Novos Estudos, vol. 10 (Lisboa: União das Misericórdias Portuguesas, 2017), Isabel Sá reinterpreta a historiografia das Misericórdias e identifica como a “versão Frei Miguel” é parte de uma memória institucional construída mais tarde. Por exemplo, ela aponta que muitos historiadores e crónicas valorizam Frei Miguel, mas sem base documental coeva, criando um mito que serve para legitimar a origem da Misericórdia.
 
Artur de Magalhães Basto. Embora a sua obra seja mais antiga (1934), a “História da Santa Casa da Misericórdia do Porto” de Magalhães Basto já continha uma análise crítica da memória de Frei Miguel, apontando para a fragilidade das bases documentais. Basto é citado nos PMM (vol. 5) como precursor da desmistificação.
 
Em síntese, é evidente a ausência do Frei Miguel Contreiras na documentação sua contemporânea e apesar da tradição de que esteve presente na fundação da Misericórdia de Lisboa (1498), os documentos originais (registos, cartas, alvarás, compromissos) reunidos por historiadores não mencionam a sua figura até décadas depois. A pesquisa sugere que a imagem de Frei Miguel foi promovida por membros da Ordem Trinitária, especialmente no final do século XVI, para reforçar a identidade institucional. A sua figura funciona como um “fundador espiritual” ideal, não necessariamente histórico, e serve para legitimar o poder/prestígio das Misericórdias e da própria Ordem Trinitária. Em muitos desses estudos, a rainha D. Leonor é apresentada como agente central na génese da Misericórdia, com uma espiritualidade e patrocínio mais importantes do que a figura mítica de Frei Miguel.
 
Conclusão: Todos os investigadores coincidem em que não há registos fiáveis no final do séc. XV coevos à fundação que mencionem Frei Miguel Contreiras como figura histórica activa. E argumentam que a construção da figura de Frei Miguel surge tardiamente, como parte de uma estratégia institucional para dotar a Misericórdia de uma origem venerável e religiosa. A sua análise indica que Frei Miguel Contreiras é mais um símbolo histórico-mitológico do que uma personagem factual do século XV.

 

 


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