O Negrume

 


A Porta do Postigo, no largo que hoje chamam da Torrinha, era a última a ser encerrada e, ainda assim, a que mais vezes se reabria aos retardatários. Situada no alto da colina, dominava o horizonte e permitia avistar de longe quem quer que se aproximasse, vindo do campo ou do mar, ambos inevitavelmente em plano inferior. Era a mais guardada de todas, contando com um corpo de mais de uma dúzia de homens da milícia, prontos a resistir até à chegada de reforços do quartel situado no extremo oposto da cidade.

Eram quase nove horas da noite quando um cavaleiro, envolto em capa escura, surgiu subindo a íngreme ladeira que conduzia à aldeia. Ao aproximar-se, clamou pedindo entrada. O sentinela, encimado no baluarte, perguntou quem era e ao que vinha. O cavaleiro respondeu com voz grave e pausada, oferecendo as explicações requeridas. Logo outros guardas, postados no plano inferior da fortificação, entreabriram a pesada porta, apenas o suficiente para permitir a passagem do homem e da sua montada.

Uma vez dentro, o forasteiro perguntou se alguém permanecia na igreja cuja torre divisava erguendo-se por cima do casario. Disseram-lhe que talvez o prior ali estivesse. Acomodou o cavalo na estrebaria próxima e, de passo firme, dirigiu-se ao templo, subindo os degraus que o separavam da rua inclinada que descia para a baixa da urbe.

Dentro da igreja rezavam quatro ou cinco almas: um velho que pedia perdão por pecado antigo e algumas mulheres dispersas, que murmuravam preces e orações em surdina. À entrada do homem, uma súbita aragem percorreu a nave, correndo em direcção à sacristia e fazendo sair de lá o padre, alarmado com a porta escancarada que deixara penetrar tal corrente fria.

Ao ver o estranho, erecto e imóvel no meio do templo, rosto semicoberto pelo capuz, figura recortada na ténue luz das velas bruxuleantes, ameaçadas de se extinguir, o clérigo sentiu um frio percorrer-lhe o costado e gelar-lhe o sangue. A inquietação cresceu quando ouviu a voz do visitante, cavernosa e terrível:

- Sim, sou eu o Demónio que tanto temes.

Um grito colectivo ecoou pelo templo. Em menos de três minutos acorreram soldados da guarda - a igreja distava apenas cinquenta metros da Porta e do seu aquartelamento.

- É o Diabo! O Demónio! É Belzebu que entrou na Casa de Deus! - clamava o padre, lívido, erguendo um crucifixo de madeira e brandindo-o contra o intruso.

O estranho ria; um riso seco, metálico, que fazia estremecer as velas e ressoava nas abóbadas. Os guardas, atónitos, investiram com espadas e alabardas; um deles chegou a disparar a velha pistola de pederneira. Tudo foi em vão. As lâminas trespassavam apenas o ar, e o chumbo se desfazia ao contacto do corpo imaterial daquela aparição.

- Detende-vos, tolos! - bradou o Demónio. - Hoje estou aqui para lutar ao lado Dele.

E apontou para o Cristo crucificado que dominava o altar-mor.

- Espero que o Pai envie reforços, pois a batalha será dura, acrescentou, com um sorriso enigmático.

Logo duas colunas de luz incendiaram o ar diante da cruz, e delas se formaram os arcanjos Gabriel e Rafael. Pouco depois, uma fita vertical e resplandecente oscilou sobre o altar, o próprio Espírito Santo manifestava-se.

- Ora vejam! - troçou o Demónio. - Também cá estás, velho Espírito Santo?

Antes que o padre concluísse os esconjuros que balbuciava desde a entrada da criatura, uma nova figura emergiu, Lúcifer, o Portador da Luz, que viera também, censurando a presença de Satanás, naquela convergência de entidades. Pois uma força mais terrível que todas se aproximava.

Gabriel, de semblante grave, voltou-se para os humanos:

- Nenhum de vós se moverá durante o combate. Não brandais armas, não faleis, não temais. Rezai, se o vosso coração o permitir.

Então, lentamente, a cidade foi sendo engolida por um negrume espesso, que obscureceu muralhas e casas, como um manto de pez etéreo descendo sobre o mundo. Até Satanás estremeceu. Era o Nada. O inimigo sem nome, sem forma, sem princípio, aquilo que antecede a própria Criação. E, contra ele, estavam agora lado a lado anjos e demónios, unidos por um pavor comum.

Os homens choravam em silêncio, abraçados, ajoelhados nas trevas. O ar cheirava a enxofre e a desespero. Sobre as ameias, Astaroth comandava legiões infernais, empunhando lanças retorcidas de onde brotavam faíscas de poder inaudito. Travava-se uma batalha entre o que é e o que jamais deveria ter sido; entre o Todo, que compreende o Bem e o Mal, e o absoluto Nada.

Um clarão rasgou o firmamento: Lúcifer lançara um relâmpago de tal força que nenhum trovão terrestre poderia igualar. Mas a luz extinguiu-se a poucas centenas de metros, devorada pelo negrume que tudo engolia.

De súbito, o ruído dos geradores cessou.

- Estamos lixados - murmurou o electricista da produção cinematográfica. - Acabou-se a gasolina. Vamos ficar às escuras.

A energia escura do Universo vencera a batalha.

Por alguns instantes ninguém falou. O realizador, de olhos fixos no monitor apagado, respirava devagar, como quem regressa de um pesadelo. Um dos actores, ainda coberto de fuligem e maquilhagem, ousou romper o silêncio:

- Mas… e aquele cheiro?

Era um odor acre, metálico, como de ferro queimado, que se espalhava pelo plateau. E, por uma fracção de segundo, todos jurariam ter visto, reflectida nas vidraças da igreja verdadeira, lá fora, no largo da Torrinha, uma sombra enorme, fugidia, mover-se contra a luz das estrelas.

Depois, tudo voltou ao normal.
Ou, talvez, apenas parecesse.

-

 


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