PARA ARQUIVO DA MEMÓRIA



«O que acontece em torno de André Ventura não é apenas um fenómeno político; é um espelho psicológico do país inteiro. Em meio século de “democracia”, ninguém conseguiu o que ele conseguiu: rasgar o véu de normalidade que encobria a decadência do regime e obrigar Portugal a olhar-se ao espelho. Ventura partiu o silêncio com uma pedrada no charco e, num país habituado a cochichar, isso foi um maremoto.

O mais interessante, no entanto, não é o homem em si, mas o que ele revela sobre nós. A maioria dos que o odeiam não o compreendem, e a maioria dos que o idolatram também não. Uns projectam nele o medo do autoritarismo, outros o sonho do salvador. No fundo, ambos se alimentam da mesma carência: a ausência prolongada de verdade e coragem na política portuguesa. Ventura é o produto inevitável de um povo exausto de ser enganado com boas maneiras.

Ele não inventou o descontentamento, apenas lhe deu voz. E fê-lo com uma frontalidade rara, num cenário onde a cobardia se disfarça de moderação. Falou do que ninguém queria ouvir: insegurança, imigração, parasitismo, corrupção, o estado que suga e não serve. E por isso tornou-se o catalisador da raiva legítima dos invisíveis. Há mérito nisso, sim. É preciso coragem para nomear o óbvio quando todos vivem de fingir que o óbvio não existe.

Mas há também um perigo real. Ventura joga no terreno da emoção pura, e a emoção é um fogo difícil de controlar. Quando a política se transforma em espectáculo, a verdade torna-se refém da audiência. Ele compreendeu isso antes dos outros, transformou o debate num ringue e as ideias em golpes de impacto. É mediático, provocador e eficaz. O problema é que quanto mais sobe pelo escândalo, mais dependente fica dele. A sua força é o seu vício.

Ainda assim, seria intelectualmente desonesto reduzir o fenómeno a puro marketing. Se fosse apenas teatro, já teria acabado como tantos populismos de ocasião. O que o sustenta é mais fundo, é o ressentimento autêntico de milhões de portugueses cansados de serem tratados como notas de rodapé no próprio país. Ventura é o resultado inevitável de décadas de governação tecnocrática, de elites que falam de “igualdade” enquanto se blindam do povo que fingem representar.

O seu sucesso é, em última instância, o atestado de falência moral da classe política portuguesa. Ele fala alto porque os outros há demasiado tempo sussurram. E o povo, farto de discursos vazios e promessas medidas ao milímetro, reconheceu nesse grito algo vivo.

A questão não é se Ventura é bom ou mau. É o que ele revela sobre o nosso estado colectivo: a fome de autenticidade, mesmo quando bruta; o cansaço com a mentira cortês; a necessidade quase infantil de alguém que, certo ou errado, pareça acreditar no que diz.

Ventura é fenómeno e sintoma, risco e sinal. Mostra o que Portugal pode ser quando se cansa de ser submisso, mas também o que pode destruir-se se confundir raiva com redenção. O futuro dirá se é o início de uma mudança adulta ou apenas o grito de um povo à beira da ruptura.

Mas uma coisa é certa: negar-lhe a importância seria negar a própria verdade do país. Porque Ventura não veio de fora, veio de dentro. É Portugal, finalmente, a reagir.»

 

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